Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

As distrações da Pátria Educadora

Alerta a jornalista Celia Perrone, no artigo “Pátria Educadora tão distraída” (Correio Braziliense, de 08/01/2016): “No Brasil, a exclusão social se traduz no jovem empregado pelo narcotráfico ou jogado nas ruas. Urge o resgate desse material humano. O que acontece no país é genocídio programado de uma mão-de-obra escassa e necessária ao mercado de trabalho. É imperioso oferecer educação pública de qualidade nos moldes que o educador Anísio Teixeira quis implantar no Brasil nas décadas de 50 e 60 – estudo em tempo integral que forme para a vida.”

Infelizmente, “formar para a vida” vem ganhando formato muito trivial, protocolar e oportunista. Resume-se, por muitas vezes, ao desenvolvimento de um kit-esperteza para entrar no seleto grupo dos abençoados pelo vil metal. O projeto hegemônico vigente para doutrinar a população consiste em ganhar dinheiro primeiro e ser ético em situações de delação premiada. Pra que ser pilar de uma sociedade, se o modelo consagrado de justiça vem de Pilatos, não é mesmo? A respeito, Alain de Botton, em As consolações da filosofia (2001), esclarece o que está por trás da crônica mania de lavar as mãos: “Reprimimos nossas dúvidas e nos incorporamos ao rebanho porque não conseguimos nos imaginar pioneiros na tarefa de desvendar as verdades até agora desconhecidas e dolorosas.”

Frequentemente, as opiniões consagradas não surgem de um processo de raciocínio irrepreensível, e sim, de séculos de desordem intelectual. Ou incentivamos coletivamente que as nossas escolas sejam autênticas unidades de revolução cultural ou continuaremos a promover um vergonhoso investimento antipedagógico em centrais de adestramento cujo objetivo é formar “gente de estimação” para a alegria dos “senhores-donos-de-tudo”. Sócrates já nos alertava sobre a errônea ideia de educação que forme para a vida. Trocando em miúdos, isso pobremente significa: preterir seu próprio bem-estar mental e moral em favor de vantagens de ordem prática.

Indaga, com pertinência e ousadia, o filósofo ateniense: “Não se envergonha de se interessar apenas em amealhar grandes fortunas em dinheiro e, ao mesmo tempo, adquirir reputação e honrarias e desprezar ou voltar seu pensamento para a verdade e a compreensão e a perfeição de sua alma?” O poder corrompe e destrói, porque o saber é menosprezado como verdadeiro ato de coragem: “Ter coragem é saber resistir com inteligência”, asseverava Sócrates. Como exercício e criação de liberdade, a educação lapida pessoas para o exercício da autonomia com discernimento. Precisamos de educação em tempo integral, não para fazer sucesso ou para ter o saldo bancário nas alturas, mas principalmente para melhor compreender que uma parte da nossa vida consiste em insanidade e a outra em sabedoria. Educação integral, à maneira inspirada pela poética de Caetano Veloso, precisa nos inteirar a respeito da dor e da delícia de ser o que somos.

Morreu e esquecemos de enterrar um tipo de escola que narcisisticamente nos imprime o orgulho de nossa eloquência, de nosso suposto senso de justiça e de nossa capacidade de raciocinar, aprender e julgar. O preço de tudo isso é estranhamente excessivo. E, no entanto, se aceitássemos nossas fraquezas e deixássemos de reivindicar uma supremacia que não temos, estaríamos aptos a concluir – segundo a filosofia generosa e redentora de Montaigne – que, em última análise, somos ainda pessoas bem ajustadas em nosso peculiar modo meio sábio, meio ignorante.

O verdadeiro respeito nasce da democracia

Face ao exposto, optou-se ideologicamente por fundamentar escolas estratégicas, fragilizando todo o nosso empenho em estimular escolas políticas. Desprezamos o poder como energia potente e restringimos equivocadamente o seu sentido ao lado sádico e opressivo da dominação. Ao ignorar a política, a condição humana se assujeita aos cálculos frios da estratégia para sobressair autoritariamente. Nesse âmbito, explica Phillipe Moreau Defarges, em Problemas estratégicos contemporâneos (1999): “O vocabulário militar infiltra-se nas atividades civis. […] A vida social é olhada como um campo de forças e de lutas; os atores seriam como estados em guerra.”

Lamentável constatar que as escolas, em geral, formam mais “homens da manobra” do que homens da obra. Somos ainda treinados a empregar somente a força para resolver os conflitos. Nos acostumamos a silenciar os atritos pelo temor e a ignorar o verdadeiro sentido da prática do respeito mútuo. Assistimos ao triunfo prático das palavras do escritor, capitão do exército inglês e um dos maiores pensadores militares do século 20, Basil Liddell Hart: a estratégia é “a arte de distribuir e de empregar os meios militares para atingir as finalidades da política”. A força foi cinicamente promovida como argumento, escondendo sua manifestação evidente como grosseria absurda e sinal de incompetência diplomática e intolerância entre os povos. Dourar a pílula do sistema bélico tem como um dos seus maiores estragos a difusão da estratégia como sábia virtude educativa. Eis um exemplo de eufemismo criminoso pinçado da obra Introdução à Estratégia (1963), escrita pelo general e escritor militar francês André Beaufre: “O que é estratégia? […] A arte de promover o concurso da força para atingir os objetivos da política. […] É, por conseguinte, a arte da dialética de vontades, empregando a força para resolver seu conflito.” Educação em tempo integral para a vida não pode se afirmar pela ferocidade da competição e pelo triunfo do controle dominador. Uma escola de qualidade é aquela que dá aulas de respeito para toda a sociedade.

O que é, mesmo, respeito? A melhor forma de respeito não é aquela imposta de cima para baixo, de fora para dentro, aquela que implica uma postura reverente, servil; a melhor forma de respeito é aquela que nasce de uma convicção interna, de uma forma madura de consciência: respeitamos o conhecimento, a competência, a dedicação, o valor pessoal de alguém. O verdadeiro respeito nasce da democracia, nasce da igualdade, nasce da liberdade que recorremos, usando a sensibilidade como norma para julgar o bem.

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor universitário, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários