Monday, 18 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Imprensa Alemã debate riscos para a democracia no Brasil

Was ist los mit den Brasilianern? (O que está acontecendo com os brasileiros?). Na manhã de 29 de outubro, a pergunta ecoava na cabeça de muitos alemães. E há razões para isso: alguns dos principais jornais do país cobriram as eleições à Presidência da República do Brasil, em geral, denunciando o clima hostil das campanhas de Fernando Haddad, do PT, e de Jair Bolsonaro, do PSL.

A imprensa destacou também a difícil decisão dos brasileiros no segundo turno, movidos entre eleger um candidato de extrema-esquerda, cujo partido está profundamente associado à corrupção, e um candidato de extrema-direita, cujo discurso faz referências claras à ditadura e à intolerância.

De modo geral, os jornais alemães noticiaram os resultados das eleições alertando sobre os riscos para a democracia. Os articulistas que haviam coberto o segundo turno da disputa faziam ressoar, na figura de Bolsonaro, uma preocupação da vida política da Alemanha: o crescimento da AfD (Alternative für Deutschland: Alternativa para a Alemanha), um partido associado à extrema-direita e aos ideais nazistas.

Talvez por isso, parte da população alemã tenha acordado surpresa ao ver Bolsonaro eleito no domingo, 28 de outubro. Dois dos mais importantes diários do país, o Frankfurter Allgemeine Zeitung e o Süddeutsche Zeitung, haviam reservado espaço para as eleições do Brasil em sua editoria de política.

O preço a pagar

O texto Brasiliens Wandel um jeden Preis — Mudança brasileira a qualquer preço —, assinado pelo jornalista Tjerk Brühwiller, no Frankfurter, chamava atenção para o preço que os brasileiros podem pagar para que o País ganhe novos rumos na administração de Bolsonaro. “Seus eleitores estão contando com a tão esperada reviravolta do deputado ultradireitista do Rio (de Janeiro). Seus oponentes veem a democracia em risco”, diz o texto.

Longe de apresentar Bolsonaro como alguém apaziguador, capaz de conter a crise, o texto alerta para os seus discursos sexistas, machistas, homofóbicos e racistas durante a campanha. O presidente eleito é apresentado como um capitão da reserva de 63 anos, com quase 30 anos dedicados à política, mas sem marcas importantes na vida pública do País. O artigo ainda observa: “um político radical e intelectualmente mediano”.

A matéria traz uma entrevista em vídeo com Cecília Coimbra, vítima da ditadura militar dos anos 70, que alerta sobre o perigo da volta desse tipo de regime. Além disso, o texto ressalta a aproximação de Bolsonaro com o presidente americano Donald Trump e avalia que o político brasileiro pode ser uma porta de entrada da política dos EUA na América Latina em questões como a Venezuela e o tráfico de drogas.

O artigo toca em outro ponto bastante citado na cobertura internacional das eleições brasileiras: a preocupação com as questões ambientais e a promessa de Bolsonaro de tirar o País do acordo de Paris.

“O Brasil é um dos atores centrais na proteção do clima, principalmente por causa de suas enormes reservas florestais”, sublinha o texto.

Nos últimos parágrafos, o artigo tenta responder à questão que traz no título: qual o preço das mudanças tão esperadas pelos brasileiros? “Bolsonaro prometeu concluir a formação do gabinete em novembro. O mais tardar (até esta data), os brasileiros saberão até que ponto a mudança desejada os levará”, diz o texto.

Democracia em questão

O artigo do Süddeutsche, Bolsonaros Sieg stellt die Zukunft der brasilianischen Demokratie in Frage — A vitória de Bolsonaro coloca em questão o futuro da democracia brasileira — é assinado pelo jornalista Boris Herrmann. A matéria destaca que o resultado das eleições marca um ponto de virada na democracia brasileira, que tem apenas 33 anos.

O artigo avalia os motivos para a nova configuração política nacional e do processo que levou Bolsonaro à Presidência. “Eles vão desde uma bem orquestrada campanha de mentira nas redes sociais até a influência das igrejas evangélicas, que apoiaram o católico Bolsonaro, entre outras coisas, em sua cruzada contra o aborto e o casamento gay”.

A matéria cita a referência do presidente eleito a Deus e à defesa da Constituição Federal no seu discurso de vitória, no domingo, 28. Entretanto, problematiza a fala e as intenções de Bolsonaro: “É possível preencher livros com as sentenças antidemocráticas, racistas, misóginas, homofóbicas e violentas do próximo chefe de Estado brasileiro”.

O candidato do PT é destacado como um professor universitário, cujos eleitores levaram livros para a cabine de votação no segundo turno, simbolizando sua escolha. Já o candidato eleito do PSL é associado à evocação da ditadura militar. O texto cita o caso de um dos seus eleitores, que se tornara emblemático no primeiro turno, votando com dedo em riste em referência a armas.

Por fim, a matéria questiona o futuro da democracia e da liberdade de imprensa no Brasil, destacando a fala de Bolsonaro contra a Folha de S.Paulo, que havia denunciado esquemas de fake news em sua campanha. E conclui: “Parte dos 45 milhões de brasileiros que não o elegeram perguntam em que espaços poderão se manifestar contra o Presidente da República no futuro”.

Was ist los?

Nos dois textos, Bolsonaro é referenciado como um conservador de extrema-direita e, como boa parte da mídia internacional, a imprensa alemã chama-o de “Trump brasileiro” ou “Trump dos trópicos”. Ao mesmo tempo, em ambas as matérias, sua ascensão aparece associada à queda do PT, afundado em acusações de corrupção.

O artigo do Frankfurter coloca Bolsonaro como figura de evidência na política brasileira diante da prisão de Lula e da sua vetada concorrência à Presidência. Além disso, cita o caso da Petrobrás, que teria resultado em uma crise econômica e política sem precedentes no Brasil, e chama atenção: “Bolsonaro soube enfrentar a frustração e a raiva dos brasileiros e se vender como candidato contra o establishment”.

O texto do Süddeutsche também vê a vitória de Bolsonaro associada ao declínio do PT: “a terceira grande perda (do partido) depois do impeachment de Dilma Rousseff e da prisão de Lula”. A matéria aponta o antipetismo como elemento favorável para o resultado do dia 28, mas sublinha: “a corrupção ainda grassa no País, ainda que o PT esteja longe do poder há dois anos”.

O discurso carregado de preconceito do presidente eleito é frequentemente evidenciado pela mídia alemã em geral. Esse tipo de fala causa rechaça na população deste país, que aprendeu — de forma imensamente dramática — o quanto uma nação pode perder quando abre mão da tolerância e do respeito pelo outro e pelas liberdades.

Was ist los mit den Brasilianern? O resultado das eleições se tornou inevitável nas rodas de conversa entre brasileiros e alemães por aqui. Para uma nação como a Alemanha, que continua a amadurecer com a diversidade humana que povoa as ruas de suas cidades e que há alguns meses marchou contra casos de xenofobia no país — incitados pelo perigoso partido de extrema-direita, a AfD — justifica-se a pergunta.

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Enio Moraes Júnior é jornalista, professor de Jornalismo e doutor  em Ciências da Comunicação na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo. Trabalha com produção de conteúdo online e cobre eventos culturais na capital alemã (https://enioonline.wordpress.com/).

Christoph Leuschner é um tradutor e professor alemão que mora na cidade de Dresden, na Alemanha, depois de ter residido no sul do Brasil durante mais de 20 anos (http://escola.portugues-alemao.de/).