Monday, 16 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Seis alertas entre um e outro passaralho

selo_rev_jorn_espmÉ hora de mudar o lado do disco e tratar do que realmente interessa: a qualidade dos serviços que as redações prestam à sociedade. Um assombro e um paradigma viciado nublam os debates sobre o futuro da imprensa. O assombro é o estupor seguido de atonia gerado pelas sucessivas inovações tecnológicas a que alguns dão o nome de revolução digital. As pessoas se entreolham como quem espera para qualquer momento o anúncio de um chip a ser implantado na unha do pé que, conjugado com uma pílula radioativa matinal, atualizará o cidadão com bancos de dados novíssimos, notícias frescas em 25 línguas, e, pior, tudo de graça. Mutações genéticas serão domesticadas por softwares invasivos e o jornalismo entrará nisso de carona. O assombro é inevitável, mas enganoso.

O paradigma viciado é a forma empresarial que a imprensa assumiu entre os séculos 19 e 20. É a forma dominante, mas não era, não é e não será a única possível. Jornais já foram “devezenquandários” sem fins lucrativos e hoje podem ser blogs colaborativos de espírito público, sustentados por redações profissionais (isso, sim, é indispensável) de ótima qualidade. A empresa não é a única forma possível para o exercício do jornalismo, e discutir o futuro da imprensa não deveria se limitar às considerações acerca de “modelos de negócio”. Existe imprensa além da morte do negócio.

Do ponto de vista da democracia, a instituição da imprensa, enraizada na sociedade e desvinculada do Estado, é indispensável. Por todas as razões. Ela não é uma das esferas em que se pode criticar publicamente o poder a partir de uma perspectiva independente: é a única. A qualidade da imprensa, a qualidade que interessa, é aquela que ajuda na realização dessa missão insubstituível, que só a imprensa (cujo idioma é o jornalismo) é capaz de realizar. É disso que se trata.

Pensando nisso, seguem-se alguns alertas, em número de meia dúzia, para contribuir com aqueles que buscam elevar a qualidade dos serviços que suas redações prestam à sociedade.

1. Estudar. Uma redação que se contente com a tarefa industrial de cuidar do “fechamento” de pacotes editoriais já está morta. Ou ela é um núcleo pensante, capaz de elaborar com densidade sobre o que cobre e publica, o que requer que seus integrantes sejam intelectuais e estudiosos, ou já era. Uma redação deve se ver como uma “situation room” permanente debruçada sobre assuntos de interesse público. Organizar o estudo dentro da redação se tornou um imperativo. A cada dia mais, o “hardnews” é “no news”. A notícia migra do fato para o nexo entre os fatos – e, para cobrir o nexo, é preciso compreendê-lo por antecipação.

2. Internacionalizar. Lembremos as iniciativas nos moldes do ICIJ (International Consortium of Investigative Journalists), que vêm sendo capazes de mobilizar e coordenar o trabalho de dezenas de repórteres de dezenas de países em coberturas coletivas. Como as redações atuais – as convencionais, as estabelecidas nos mercados nacionais – estão se preparando para isso?

3. Laicizar. Aqui temos um desafio mais grave no Brasil do que em outros países. A promiscuidade entre religiões, igrejas, meios de comunicação e, pior ainda, partidos políticos está degradando a perspectiva analítica do jornalismo, além de estar deteriorando a esfera pública brasileira. Jornalismo dócil a autoridades religiosas é uma contradição em termos.

4. Desentreter. Há os jornalistas que festejam a indústria do entretenimento (futebol, shows musicais, novelas, confraternizações melosas), como se isso fosse uma questão de bom humor. Não é. Sem olhar crítico distanciado em relação à indústria do entretenimento não se enxerga o mundo em que vivemos. O jornalismo que escolhe cair na folia escolhe cair fora de si mesmo. Um pouco de austeridade vai bem.

5. Desigualar os desiguais. Não basta ser rigoroso com os dois lados. Não basta não ter lado. É preciso bater com mais força nos de cima. Ou o público desconfia de servilismo.

6. Honrar o idioma. Chega de vilipendiar o vernáculo. A língua, como a terra e a chuva para o agricultor, é força produtiva na imprensa. Se não cuidarem dela, os profissionais de imprensa abastecem sem se dar conta do desastre ecológico que já começa a corroê-los por dentro.

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Eugênio Bucci é diretor de redação da Revista de Jornalismo ESPM e professor da ECA-USP.