Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A marca da generosidade

Era uma tarde de inverno em Buenos Aires e Tomás Eloy Martínez, apesar do esgotamento causado pelo câncer que o obrigou a suportar muitos tratamentos e cirurgias, estava, como sempre, disposto a dedicar parte de seu tempo a um colega jornalista. Pediu para fazer a entrevista por telefone e após uma hora disse, no tom amável que o caracterizava, que gostaria de encerrar a conversa, pois sua voz já estava cansada.


A generosidade foi uma das grandes virtudes de Martínez, que morreu domingo (31/1), aos 75 anos, depois de uma longa luta contra a doença. Até o final de sua vida, o autor de romances mundialmente famosos (Santa Evita foi traduzido em 30 idiomas) demonstrou seu compromisso com o jornalismo e a literatura e sua capacidade de exercer a profissão que amava, mesmo em condições extremamente limitadas.


Livro mais recente recupera o cotidiano durante ditadura militar


A entrevista concedida ao Globo em meados do ano passado foi uma das últimas dadas por Eloy Martínez, que após 20 anos de exílio havia decidido retornar a Buenos Aires para contar com o apoio da família e amigos.


Durante os anos da ditadura argentina (1976-1983), o escritor, que nasceu na província de Tucumán, em 1934, viveu em vários países, entre eles Venezuela (onde trabalhou como jornalista) e Estados Unidos (seu último destino, onde foi professor e pesquisador da Rutgers University, em Nova Jersey). Embora o escritor observasse com preocupação a situação política de sua terra natal (questionou diversas vezes o autoritarismo do casal Kirchner), em seus últimos meses de vida decidiu abandonar sua casa nos EUA e instalar-se definitivamente em seu apartamento portenho.


Em junho de 2009 o escritor foi integrado à Academia Nacional de Jornalismo da Argentina, reconhecimento que o emocionou profundamente.


Um dos mais importantes escritores argentinos das últimas décadas, Eloy Martínez continuou colaborando com jornais locais e internacionais, entre eles La Nación, The New York Times e El País. Perguntado sobre as novas tecnologias e seu impacto no jornalismo, ele assegurou que ‘blogs, Facebook e Twitter não podem ser considerados jornalismo. São formas de comunicação, bem-vindas, mas não jornalismo’.


– Os jornais devem buscar algo mais caro, de melhor qualidade e menos superficial – argumentou.


Em seu livro mais recente, Purgatório, de 2009 – publicado no Brasil no mesmo ano pela Companhia das Letras, que editou outras obras suas – Eloy Martínez buscou falar sobre ‘tudo aquilo que se perde com os desaparecimentos’ e, também, recuperar o dia a dia dos argentinos nos anos de regime militar.


No meio do processo de escrita, foi internado e submetido a uma delicada cirurgia no cérebro.


– Quando saí da cirurgia senti uma vontade enorme de escrever e em cinco meses terminei o livro. Era como se um vento me arrastasse, as palavras fluíam muito rapidamente. Este livro estava dentro de mim, como um filho que passa um tempo dentro de você e depois precisa sair – revelou.


Em Purgatório Eloy Martínez reviveu seus anos de exílio, uma época marcada por muito sofrimento. A separação dos filhos foi uma das dores mais difíceis de suportar:


– Algumas coisas não se recuperam. O amor que não se vive é irrecuperável – lamentou.


Sua obra recebeu prêmios internacionais, entre eles os espanhóis Ortega e Gasset (de jornalismo) e Alfaguara (para romance). Livros como O voo da rainha, O romance de Perón e O cantor de tango (todos publicados no Brasil) foram grandes sucessos nas últimas duas décadas.


A morte de Eloy Martínez teve imediata repercussão internacional e foi lamentada por importantes personalidades políticas e culturais da Argentina.


Para a ex-candidata presidencial e deputada opositora Elisa Carrió, ‘a morte (de Eloy Martínez) representa uma grande perda para nosso país e para todos os latino-americanos’.


Até mesmo dirigentes aliados da Casa Rosada manifestaram sua tristeza pelo falecimento do escritor.


– Era um escritor comprometido com a realidade política da Argentina e de toda a América Latina – afirmou o senador peronista Miguel Angel Pichetto, líder do governo no Senado.


‘Uma enorme inveja e melancolia em relação ao Brasil e ao Chile’ 


Na entrevista ao Globo, Eloy Martínez também falou com decepção sobre a realidade de seu país.


– Vejo, sobretudo, uma pobreza de pensamento muito grande. Uma pobreza de lideranças. Como argentino sinto uma enorme inveja e melancolia em relação ao Brasil e ao Chile. Países que têm lideranças sólidas e brilhantes. O que vi sobre Lula no governo me entusiasmou. Vejo que teve uma enorme inteligência ao dar continuidade e melhorar as políticas econômicas de Fernando Henrique. No Brasil há continuidade, aqui não. Quem assume quer destruir o feito pelo anterior.


O escritor, que deixa viúva e sete filhos, será enterrado hoje [terça, 2/2] no município de Pilar, a 50 quilômetros de Buenos Aires.

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Correspondente de O Globo em Buenos Aires