Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A mobilização do sindicato




AUDÁLIO DANTAS


Na fase das prisões, o sindicato já começava a se transformar numa espécie de ancoradouro, numa espécie de desaguadouro de aflições, porque começavam a aparecer as famílias dos jornalistas presos. Eu me lembro que na primeira delas foram os pais do Sérgio Gomes da Silva, um casal de portugueses, pessoas magníficas, que não entendiam como é que sumiu o filho assim de repente, que tinha ido ao Rio de Janeiro (ele foi preso no Rio). A gente, a gente eu digo os diretores do sindicato, se entreolhou e disse: ‘O que é que nós podemos fazer?’. O que podíamos fazer era tornar público isso, e foi o que nós fizemos.


O sindicato então estava reunindo as pessoas, era uma espécie de referência para essas pessoas. Já na noite de sábado a notícia começou a passar de boca em boca, com jornalistas avisando outros companheiros. No domingo, na parte da manhã, eu peguei com muita sorte um vôo no Bandeirantes que vinha de Presidente Prudente, cheguei cedo em São Paulo, e aí a diretoria – era uma diretoria magnífica, de pessoas empenhadas e leais – estava reunida, a maioria dos diretores, e começamos a tomar as providências. Aí começaram a chegar jornalistas ao sindicato. Eu fui à casa da Clarice [Herzog] e à casa do Fernando [Pacheco] Jordão e começamos a discutir várias providências, inclusive a nota sobre o caso, o assassinato, já absolutamente não aceitando a versão do suicídio que tinha sido divulgada no comunicado do 2º Exército e que foi distribuído no domingo também. Nós não aceitamos desde o início, mas tomamos as cautelas necessárias para que… Nós percebemos, e isso é um fato importante e fundamental, que devíamos preservar o sindicato como vetor daquele movimento que estava nascendo. E dizíamos que não aceitávamos a versão do suicídio nessa nota, mas dizíamos que a autoridade era responsável por ela, porque tinha sob a sua guarda o preso Vladimir Herzog.


Essa nota começou a ser redigida na casa do Jordão, mas não podíamos ter como coisa definitiva porque tínhamos que submeter à diretoria; à tarde, marcamos a reunião para a redação final. Houve muita discussão, evidentemente, mas aí já tínhamos o que se pode considerar uma assembléia, porque na sala da diretoria do sindicato, que era uma sala aberta, pois não havia divisórias, estava tomada por vários jornalistas. A nota foi rigorosamente discutida e aprovada por um grupo muito grande de jornalistas. E aí nós começamos a perceber o que estava nascendo, começamos a perceber a força que o Sindicato dos Jornalistas passava a ter em função da presença não expressamente convocada dos jornalistas. E daí para frente o movimento foi crescendo, porque uma das ousadias dessa nota foi convocar os jornalistas para o sepultamento, no dia seguinte – o que era problemático, já que a ordem era o silêncio. O sepultamento, que foi na segunda-feira, dia 27, teve a presença de centenas de pessoas – uns calculam em mil, outros em 800, por aí. E o protesto foi num crescendo que acho que a nota [do sindicato] distribuída no domingo é um grande momento; e, depois, o grande momento que culminou com tudo isso foi a realização do culto ecumênico na Catedral da Sé, aí já com os reflexos do protesto atingindo à sociedade como um todo.


A sociedade civil começou a participar e esse culto teve a presença de oito mil pessoas, apesar da repressão que se armou, do verdadeiro cerco que foi feito por ordem do [então] secretário de Segurança [Pública de São Paulo], Erasmo Dias, com quase 400 barreiras em volta da cidade para impedir o acesso à Praça da Sé. Esse culto foi decidido na primeira assembléia – que nós não denominávamos assembléia porque, segundo a lei, o sindicato é submetido ao controle governamental e uma assembléia só se podia realizar com os editais publicados com tantos dias de antecedência em tantos jornais, e mandados para a Delegacia do Trabalho e tudo isso. Nesse ponto já não estavam [no sindicato] só jornalistas: nesses encontros estavam estudantes, representantes de outras categorias como advogados, engenheiros, arquitetos, artistas, e nós denominados isso de ‘reuniões’ e as decisões não eram da assembléia, não podiam ser da assembléia, porque daí haveria intervenção imediata. Esta foi uma coisa avaliada, medida. As propostas eram aprovadas oficialmente pela diretoria do sindicato. Nessa primeira reunião, na noite do dia 27, dia do sepultamento, foi proposto o culto ecumênico. E aí, na semana toda, começou a ser trabalhada a convocação para o culto.




ALBERTO DINES


Eu estava a 500 quilômetros de distância, no Rio de Janeiro. Vinha a São Paulo com alguma freqüência, mas não poderia largar a sucursal para vir a um enterro, a um culto ecumênico. Mas a coisa foi ganhando uma dimensão importante, graças à máquina do Partido Comunista, que era muito bem articulada, ligada ao então MDB, e conseguia realmente chegar à opinião pública, como num caso forte como esse, com muita força. A morte do Herzog foi transmitida com muita força graças à atuação dos pessoas próximas ou ainda membros do Partido Comunista.


A luta ideológica contra o regime militar foi comandada por liberais clássico da UDN, alguns do PSD, o Tancredo Neves, o Ulisses Guimarães, e pelo Partido Comunista. Infelizmente, e injustamente, a cúpula do PC é que pagou, porque foi logo nesse momento, ou um pouco antes, que a linha-dura começou a eliminar o comando do Partido Comunista porque eles [da linha-dura militar] queriam radicalizar, provocar, fazer alguma coisa. Hoje o comunismo está um pouquinho por baixo, mas naquele momento, e em outros seguintes, o Partido Comunista (ou o que dele restou) e os seus simpatizantes tiveram um papel fundamental. Tanto que quando o [general] Golbery [do Couto e Silva] quis quebrar o sistema bipartidário, ele quis quebrar sobretudo a força do MDB, que era orquestrado pela máquina do PC – e foi procurar uma liderança sindical não identificada com os comunistas, mas identificada com a igreja católica e alguns setores trotskistas, não é? E aí criaram-se as duas dissidências, os dois partidos de esquerda, cujo nascimento foi orquestrado pelo Golbery, que são o PDT e o PT. Disso não há a menor dúvida. Ele queria quebrar o MDB e fez a coisa com uma genialidade perfeita. Ele então [decidiu que] os partidos tinham que mudar de nome, tinham que botar um ‘P’ na frente: aí o MDB tinha que abrir mão da sua sigla ou botar um ‘p’ na frente, ficou PMDB. E facilitou a volta do Brizola, e facilitou a soltura do Lula, desde que eles fizessem parte dos novos [partidos], para quê? Para enfraquecer o MDB. E qual era o interesse? Não era o MDB do Chagas Freitas não, era um MDB orquestrado pelos autênticos que eram muito próximos ao Partido Comunista. Isso também tem que ser dito com clareza, embora eu não sou nem nunca fui membro do Partido Comunista.


Os jornalistas ficaram todos chocados, sobretudo porque a maioria dos jornalistas de esquerda eram todos muito próximos ao Partido Comunista.




AUDÁLIO DANTAS


Para mim é difícil reconstituir exatamente o que aconteceu, aliás é uma das dificuldades que eu tenho para escrever essa história, porque, no meu caso, como se eu estivesse suspenso. A imagem mais apropriada para descrever o [nosso] sentimento é que estávamos no fio da navalha, numa situação do olho do furacão ou coisa equivalente. E as coisas iam num torvelinho, uma coisa assim que a gente não parava.


Nessa semana, acho que fomos duas vezes chamados ao 2º Exército; e no próprio dia do sepultamento, à tarde, porque no cemitério decidimos ir ao sindicato para uma reunião do às 7 horas [da noite]. Em função disso recebi um telefonema do 2º Exército, de um oficial cujo nome mão me lembro, dizendo que o meu discurso no sepultamento tinha sido considerado muito perigosos e havia uma grande preocupação em relação à assembléia da noite, e que em função disso nós estávamos sendo convocados para o 2º Exército mais uma vez. O meu discurso tinha sido apenas uma introdução e a recitação dos versos do Castro Alves, do Navio Negreiro, que diz ‘senhor Deus dos desgraçados’. E isso foi considerado um incitamento à lei, subversão.


Às 5 horas da tarde já não tinha espaço [no sindicato]. Nos corredores, no auditório, nas escadarias não cabia [mais ninguém]. Jornalistas e outras categorias estavam lá presentes. [A reunião] estava marcado para as 7, e às 6 horas tivemos que ir ao 2º Exército – a diretoria, não toda, mas os que estavam lá foram. E fomos recebidos pelos generais Ferreira Marques e Ariel Pacca da Fonseca, e pelo coronel Paes, que era o homem da 2ª Seção, da inteligência, cuja participação em tudo isso e outros casos ainda não está devidamente esclarecida, porque ele era o ‘homem da inteligência’, entre aspas aí, era um sujeito que vivia meio lateralmente por lá, mas aí ele estava presente. E aí eles exibiram as fotos do Vlado morto, o cadáver já com sinais da autópsia, aquela foto que se tornou um símbolo do Vlado enforcado, com as pernas dobradas. Naquele momento foi um choque muito grande ver essas fotos, claro, e ao mesmo tempo o reforço da convicção de que não tinha sido um suicídio. O general Ferreira Marques, que era um homem muito nervoso, um neurastênico mesmo, uma figura meio mirrada, disse: ‘Olha, aí estão as provas! Estão as provas!’. Que provas? Para nós não era.


Aí a nossa preocupação é o que estava acontecendo no sindicato, que tinha aquela gente toda, e nós tínhamos pedido a uma pessoa que não era da direção do sindicato, mas uma pessoa que tinha o sentimento da gravidade da situação, um participante magnífico da política. Era o Perseu Abramo. Eu me lembro que à saída do sindicato, indo para o 2º Exército, eu pedi: ‘Por favor, Perseu, você dá uma controlada aí, e avisa que nós estamos indo para o 2º Exército’. Mas como já começava a haver divisões dentro do grupo de jovens ligados à Libelu [tendência trotskista Liberdade e Luta] e outros grupos, dizendo ‘por que não vão fazer a reunião?’ e esses tipos de problemas, a tensão era muito grande inclusive em função disso. Nós passamos essa semana toda em absoluta tensão.


A sociedade de modo geral, e aqueles setores mais esclarecidos, sabiam que a reação dos jornalistas não foi uma coisa da corporação. Os jornalistas tinham notícias de outros casos, acho que 11 ou 12 jornalistas tinham sido mortos antes, desaparecidos, e não podiam noticiar. Aí, [nesse momento] acho que eles disseram também: ‘Chega, chega! Vamos dizer o que está acontecendo nesse país’. Mas a classe média, a média da população e a parte mais desinformada não tinham idéia do que acontecia; tanto que na quarta-feira, portanto dois dias antes do culto, me ligou a minha irmã Olga, chorando e dizendo: ‘Olha, mas eu eu vi as notícias e você está se expondo muito, você podia não fazer isso, é muito perigoso’. Eu digo: ‘Ué, mas o muito perigoso já aconteceu, mataram uma pessoa’. Aí ela disse: ‘Mas você tem certeza disso?’. Eu digo: ‘Sim, eu tenho, porque eles mataram outros’. ‘Outras pessoas?!’, [disse Olga]. Quer dizer, as pessoas não sabiam, não tinham idéia do que realmente estava acontecendo no país. Mas a partir daí as coisas começaram a mudar.







A Praça da Sé, em São Paulo, no dia do culto ecumênico pela morte de Vladimir Herzog; a catedral à direita; 31 de outubro de 1975 (acervo do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo)



Imprensa e censura
AUDÁLIO DANTAS


Desgraçadamente, precisou a morte [de Vladimir Herzog] para que alguns grandes jornais começassem a ter um mínimo de coragem de noticiar. Como eu disse, a morte dele foi noticiada como suicídio, com base no comunicado do 2º Exército, no dia seguinte, mas já na segunda-feira, em função do comunicado do sindicato, alguns jornais que estavam em silêncio começaram a publicar. E, justiça se faça, desempenhou um papel importantíssimo o Estado de S.Paulo, que já estava sem censura. A melhor cobertura que se fez do caso foi do Estado de S.Paulo e o Jornal da Tarde, inclusive em editoriais.


E falando em editorial, a Folha de S.Paulo não tinha editorial, não publicava editorial, era um jornal sem opinião desde janeiro de 1969, logo depois do AI-5, e ficou assim até outubro de 1975. No dia seguinte ao culto ecumênico, a Folha voltou a publicar editoriais. Mas os jornais, de um modo geral, começaram a noticiar, inclusive aqueles que estavam sob censura. A Folha não estava sob censura, pelo menos censura estabelecida, assim como os outros também não estavam.