Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Afra Balazina

‘Ribeirão Preto, fazenda da Barra, 16h: um grupo de cerca de 30 trabalhadores rurais sem terra se reúne em torno de alto-falantes para ouvir, entre uma música e outra, por cerca de 80 minutos, elogios à invasão de terras e críticas à concentração fundiária do Brasil, ao agronegócio, aos agrotóxicos e aos transgênicos.

De cerca de dez alto-falantes instalados na área, ocupada desde terça-feira, vem a abertura: ‘Está entrando no ar a Camponesa Rádio Poste, a voz forte contra o latifúndio. Malditas sejam todas as cercas, malditas sejam todas as propriedades privadas que nos privam de viver e amar. Malditas sejam todas as leis amanhadas por poucas mãos para amparar cercas e bois, para fazer a terra escrava e escravos os humanos’.

A transmissão em forma de programa de rádio é, na verdade, um programa produzido pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) em Ribeirão Preto para ser distribuído a acampamentos e assentamentos de diversos Estados.

Os programas são gravados em CDs -até agora foram cinco- em um estúdio que fica no centro de formação do MST, no sítio Pau D’Alho, da Igreja Católica.

‘Como é complicado promover palestras nesses locais, o programa serve para levar formação e informação aos sem-terra. Além disso, eleva a auto-estima deles’, afirma o idealizador do programa, Hemes Lopes, 40.

Os militantes concordam. ‘A gente acorda às 6h com ânimo quando começa a passar o programa. Eu acho muito chique a gente ter a nossa própria rádio’, diz Selma Aparecida da Silva Reis, 34, há 11 meses em Ribeirão.

As mensagens fazem, entre outras coisas, apologia à invasão de terras, que ‘representa uma das mais importantes lutas contra a estrutura fundiária existente no país’. Para o MST, ‘ocupar é tomar posse daquilo que não cumpre a sua função social’.

As notícias abordam a reforma agrária no país, a trajetória de 20 anos do MST e as atividades do grupo, além de ter uma função didática ao explicar, por exemplo, qual é a diferença entre ocupação e invasão -para a rádio, o MST apenas ‘ocupa’ áreas griladas, devolutas ou latifúndios.

Tudo no programa é diferente de uma rádio comercial. Não há propaganda. Além disso, apesar de ter um formato estruturado, incluindo vinhetas, as músicas têm letras de cunho político ou falam das pessoas do campo que migraram para a cidade. ‘A música caipira fala de ecologia, da roça, do sonho de ter uma terra, e o acampado se identifica muito com essa realidade’, diz Lopes.

Além do locutor falar ‘no ar’ o nome da música e do cantor, ele cita quem é o compositor. ‘Aqui damos todos os créditos’, disse Lopes. E não entram músicas com palavrões ou duplo sentido nem de neosertanejos como Zezé Di Camargo & Luciano.

Como as outras regionais do MST não têm estúdio de rádio, a idéia é que sejam produzidos boletins informativos em cada Estado para serem acrescentados ao programa feito em Ribeirão, que deve ser mandado via Correios para outras regiões.

Como os programas são gravados em CDs, podem ser ouvidos em aparelhos de som. Os CDs já foram para assentamentos de Santa Catarina e para a França, onde integrarão programa sobre movimentos sociais do Brasil.

Na rádio, trabalham duas pessoas fixas e dois apresentadores, que mudam a cada programa -todos são assentados ou acampados ligados ao MST. Além disso, há mensagens gravadas de convidados ou pessoas que visitam o Centro de Formação.

A intenção do MST é montar uma emissora de rádio que funcione em tempo integral.’



MÍDIA & VIOLÊNCIA
Carlos Chaparro

‘Temática da violência precisa ser ampliada’, copyright Folha de S. Paulo, 23/07/2004

‘O XIS DA QUESTÃO – O jornalismo deixa-se tolher por uma visão tacanha, quando reduz a temática da violência às emoções dramáticas do crime urbano. Editores, pauteiros e repórteres esquecem que da mesma temática fazem parte os acontecimentos, os estudos e os debates produzidos por pessoas e instituições que combatem a violência. Com a captação desses conteúdos, o jornalismo poderia fazer a contextualização educativa que hoje falta ao noticiário do crime.

1. ‘Temos o dever de fazer’

Um amigo antigo, com quem às vezes troco idéias antes de escrever a coluna, dizia-me há dias, em estado de angústias: ‘Vivo com medo. E sinto que nada posso fazer para mudar as coisas. Não quero um país só para os meus netos; quero um país em que eu próprio possa viver, em paz. Mas perdi a esperança, porque não enxergo esse país, nem para mim nem para os meus netos.’

Ou seja, esse meu amigo, homem de bem, jornalista com larga tarimba, cidadão de convicções cívicas e democráticas, não vislumbra respostas às duas perguntas que fiz a semana passada:

– O que podemos e devemos mudar no jornalismo que fazemos, em favor da paz e contra a violência?

– O que podemos fazer para acabar com o entrelaçamento ‘violência e mentira’, no relato jornalístico?

As duas perguntas motivaram a reunião na Voice, realizada nesta quinta-feira (dia 22), com um grupo de jornalistas, para discutir a questão da violência urbana. A Voice é a empresa de assessoria de imprensa onde trabalhava o jovem jornalista Leonardo Blaz Cicoti, seqüestrado e assassinado dia 3 de julho. Havia, portanto, uma motivação muito especial para que a reunião e a discussão se realizassem no espaço onde Leonardo desenvolvia a sua carreira profissional e a inserção no mundo do jornalismo.

Em redor da mesa, dez profissionais, um deles o professor Laurindo Leal Filho, especialista em estudos sobre televisão e sociedade, integrante e fundador da ong TVer. Criada em 1997, a TVer nasceu para organizar na sociedade atitudes e atividades de observação crítica da televisão, por meio de ações práticas, discussões e produção/difusão de conteúdos, tendo como razão de luta os direitos do telespectador. Foi a partir de uma iniciativa da TVer que o Superior Tribunal de Justiça, em decisão de última instância, obrigou Ratinho a deixar de usar crianças defeituosas como atração do seu programa.

Laurindo foi à reunião com a experiência e as idéias de quem acreditou no ‘vale a pena fazer’ e já pode exibir resultados de ações realizadas. Uma delas o site www.tver.org.br, que recomendo.

Mais do que o ‘valer a pena’, o que deu tom às discussões do grupo foi a convicção de que ‘temos o dever de fazer’.

2. Temática ampliada

Se quisermos encarar o medo urbano e os motivos que o geram, temos, sim, o dever de fazer alguma coisa. Mas, fazer o quê?

A limitação maior está na natureza do próprio jornalismo, que não é linguagem nem ambiente de militância, mas de relato confiável dos fatos relevantes da atualidade. Jornalismo não se pode entregar a campanhas e a slogans, sob risco de perder a confiabilidade que lhe dá essência. Nem tem a vocação de produzir conteúdos, mas a de captá-los nos conflitos humanos e institucionais de que se alimenta a narração jornalística.

Pois aí está, nessa aptidão própria do jornalismo – a de captar, confrontar e socializar conteúdos que a sociedade produz – um vasto campo de possibilidades, na contribuição que pode ser dada ao debate da violência.

Não se pode pedir ao jornalismo a não divulgação dos atos de violência urbana que hoje recheiam o noticiário de todos os dias. Qualquer insinuação de censura seria inaceitável. Mas o jornalismo deixa-se tolher por uma visão tacanha, quando reduz a temática da violência às emoções dramáticas do crime urbano. Editores, pauteiros e repórteres esquecem que da mesma temática fazem parte os acontecimentos, os estudos e os debates produzidos por pessoas e instituições que combatem a violência.

São muitas, e atuantes, as entidades e pessoas que, no seu agir, produzem conteúdos desprezados ou não percebidos pelas antenas do jornalismo. Além dos grupos organizados que lutam pela paz e contra a violência, existe uma enorme quantidade de instituições atuando em campos segmentados dos direitos humanos, com linhas de ação que, direta ou indiretamente, têm a ver com a construção de cidades menos violentas e mais fraternais – cidadãos e instituições que não conseguem penetrar na agenda jornalística.

É o caso, por exemplo, das entidades que atuam na defesa dos direitos da criança, do idoso, da mulher, do negro, do telespectador, do consumidor e de uma vasta gama de segmentos, no campo das minorias.

Pela sensibilidade, percepção e competência dos seus profissionais – principalmente dos seus pauteiros – o jornalismo pode ampliar, enriquecer e problematizar a temática da violência. E, com isso, fazer a contextualização e a polêmica que hoje falta ao noticiário do crime.

3. Atuação cívica

O grupo reunido na Voice chegou também à conclusão de que, à margem do relato e do comentário dos fatos, existe no jornalismo um espaço de atuação e responsabilidade cívica para os seus profissionais. Tal como acontece com outras profissões, os jornalistas deveriam, no mínimo, empenhar-se na discussão das coisas do seu ofício. E nessa fronteira, há que produzir eventos nos quais, por exemplo, se possa debater, de forma crítica, a maneira como a informação jornalística trata o noticiário do crime.

Com esse foco, várias possibilidades de ação foram aventadas, algumas delas de fácil maturação e execução, em alianças que envolvam órgãos profissionais do jornalismo, universidades, ongs, igrejas, portais e sites de internet etc.. Surgiram propostas concretas, que virão a público no tempo certo.

Outra fronteira de atuação possível está na capacitação de instituições produtoras de conteúdos para, como função de fontes, atuarem no processo jornalístico. Há conteúdos valiosos, de interesse da sociedade, que deixam de ser divulgados por despreparo dessas instituições. A própria TVer, que tão bons conteúdos produz, tem como ponto fraco a divulgação. E queixa-se disso.

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Claro que, nessa questão da violência, o grande objeto de preocupação e discussão terá de ser a televisão, pelo poder de alcance e influência que detém. Foi lembrado, na reunião, que 98% dos domicílios brasileiros têm televisão, enquanto a tiragem somada dos jornais diários não passa do seis milhões de exemplares, alcançando no máximo otimizado, 24 milhões de leitores.

Mas a mídia impressa, por suas características seletivas e pelo seu potencial de permanência e socialização dos conteúdos, tem um papel fundamental a desempenhar em qualquer esforço de ampliar e aprofundar discussões que interessam à sociedade.

NOTAS DE RODAPÉ

* Todos os comentários feitos ao texto da semana passada foram levadas à reunião e resumidos. Uma das idéias que influenciaram a discussão foi a de que devem ser enxergadas, criticamente, todas as formas de violência, numa sociedade que se caracteriza pelas políticas, culturas e práticas de privilégios de uns poucos e exclusão social de muitos.

* Por falar em outras violências, é um escândalo que possa ser noticiado, sem contestação, as benesses concedidas a esposas de três ministros, num governo que se propôs à moralização pública e à construção de cenários de justiça social. Nomes e números desse noticiário: Maria Rita Garcia, esposa do ministro José Dirceu, ganharia R$ 17.000,00 como assessora da Presidência da Escola Nacional de Administração; Margareth Rose Silva Palocci, assessora da presidência da Fundação Nacional de Saúde, estaria hoje com um salário de R$ 14.850,00; e Sonia Lourdes Rodrigues Berzoini, bancária aposentada, esposa do ministro Ricardo Berzoini, ganharia mensalmente R$ 18.500,00, como assessora do deputado federal Paulo Bernardo – todas nomeadas nos primeiros meses do governo, em 2003.’