Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Agência Carta Maior

CASA BRANCA
Boaventura de Sousa Santos

A Cultura do Ludíbrio, 2/6

‘O ex-secretário de imprensa do Presidente Bush, Scott McClellan, acaba de publicar um livro intitulado ‘O que Aconteceu: Dentro da Casa Branca de Bush e a Cultura do Ludíbrio em Washington’. O furor político e mediático que causou decorre de duas revelações: quando ordenou a invasão do Iraque, a Administração Bush sabia que o Iraque não tinha armas de destruição maciça (ADM) e montou uma poderosa ‘campanha de propaganda’ para levar a opinião pública norte-americana e mundial a aceitar uma ‘guerra desnecessária’; os grandes meios de comunicação foram ‘cúmplices ativos’ dessa campanha, não só porque não questionaram as fontes governamentais como porque incendiaram o fervor patriótico e censuraram as posições céticas contrárias à guerra.

Estas revelações e as reações que causaram têm implicações que as transcendem. Antes de tudo, é surpreendente todo este escândalo, pois as revelações não trazem nada de novo. As informações em que assentam eram conhecidas na altura da invasão a partir de fontes independentes. Nelas me baseei na altura para justificar em vários artigos a minha total oposição à guerra que, além de ‘desnecessária’, era injusta e ilegal. Isto significa que as vozes independentes foram estigmatizadas como sendo ideológicas e anti-patrióticas, tal como hoje criticar Israel equivale a ser considerado anti-semita. Em 2001, no Egito, e antes da máquina de propaganda ter começado a devorar a verdade, o próprio Secretário de Estado, Colin Powell, dissera que não havia nenhuma informação sólida de que o Iraque tivesse ADM.

Isto me conduz à segunda implicação destas revelações: o futuro do jornalismo. A máquina de propaganda do Departamento de Defesa assentou em três táticas: impor a presença de generais na reserva em todos os noticiários televisivos com o objectivo de demonstrar a existência das ADMs; ter todos os media sob observação e telefonar aos seus directores ou proprietários ao mínimo sinal de cepticismo ou oposição à guerra; convidar jornalistas de confiança de todo o mundo para serem convencidos da existência das ADMs e regressarem aos seus países possuídos da mesma convicção belicista. Vimos isso trágica e grotescamente em muitos países da Europa e da América Latina. A verdade é que em Washington e em todo o país circulavam nos media independentes informações que contradiziam o ‘brainwashing’, muitas delas provindas de generais e de antigos altos funcionários da Casa Branca. Porque não ocorreu a esses jornalistas ‘de confiança’ fazer uma verificação cruzada das fontes como lhes exigia o código deontológico?

Para o bem do jornalismo, alguns deles procuraram resistir à pressão e sofreram as consequências. Jessica Yellin, hoje na CNN, e na altura no canal ABC, confessou publicamente que os diretores e donos do canal a pressionaram para escrever histórias a favor da guerra e censuraram todas as que eram mais críticas. Um produtor foi despedido por propor um programa com metade de posições a favor da guerra e metade de posições contra. Quem resistiu foi considerado anti-patriótico e amigo dos terroristas. Isto mesmo aconteceu nos nossos países. Quantos jornalistas não foram sujeitos à mesma intimidação? Quantos artigos de opinião contrários à guerra foram rejeitados? E os que escreveram propaganda e intimidaram subordinados alguma vez se retrataram, pediram desculpa, foram demitidos? É que eles colaboraram num crime: um milhão de iraquianos mortos, dezenas de milhares de soldados norte-americanos feridos e mortos e um país totalmente destruído. Tudo isto terá sido preço, não da democracia – ridículo conceber como democrático este estado colonial e mais fraturado que a Somália – mas sim do controle das reservas do petróleo do Golfo e da promoção dos interesses do petróleo, da indústria militar e de reconstrução em que os donos dos media têm fortes investimentos.

Para disfarçar o problema moral dos cúmplices da guerra e da destruição, alguns comentadores de direita têm-se socorrido da mais desconcertante e desesperada justificação da guerra: se não havia ADMs, havia pelo menos a convicção de que elas existiam. Ora o livro de McClellan acaba de lhe retirar este argumento. De qual se socorrerão agora? O trágico é que a ‘máquina’ de propaganda continua montada e está agora dirigida ao Irã. O seu funcionamento será mais difícil e sê-lo-á tanto mais quanto melhores condições tiverem os jornalistas para cumprir o seu código deontológico.

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).’

 

 

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