Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Agência Carta Maior


ENCONTRO
Bia Barbosa


Donos da mídia criticam participação popular e regras para setor


‘Em evento organizado pelo Instituto Millenium, em São Paulo, diretores e representantes dos principais veículos de comunicação do país criticaram mais uma vez os mecanismos de democracia participativa e defenderam a auto-regulação para o setor de mídia no Brasil. ‘No estágio atual, é melhor deixar tudo como está. O mercado tem conseguido resolver isso. Conferências são nada mais que a instrumentalização de um projeto político ideológico que tem como alvo minar a liberdade de imprensa e o capitalismo’, afirmou Denis Rosenfield, articulista do Estadão.


***


Depois de sete horas de discurso sobre o que seriam os principais riscos para a democracia e a liberdade de expressão no Brasil de hoje, foram apresentadas as conclusões do evento promovido pelo Instituto Millenium na última segunda-feira (1). Entre elas, afirmações categóricas de uma linha de pensamento que a imprensa brasileira já não tem mais vergonha de defender:


– o setor de comunicação no país não precisa de mais leis, e sim de auto-regulação


– as Conferências Nacionais representam a estatização da opinião de minorias e são promovidas por entidades da sociedade civil cujo teor é decisivamente determinado por interesses partidários, governamentais ou ambos


– é urgente fazer um debate forte contra o Programa Nacional de Direitos Humanos para impedir que ele seja implementado


Tamanho espírito democrático foi propagado por figuras como Denis Rosenfield e Alberto Di Franco, articulistas do jornal O Estado de S.Paulo; Roberto Civita e Sidnei Basile, do Grupo Abril; Reinaldo Azevedo, colunista da revista Veja e William Waack, editor da Rede Globo, todos palestrantes convidados do 1o Fórum Democracia e Liberdade de Expressão, apoiado por entidades como a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), ANER (Associação Nacional de Editores de Revista), ANJ (Associação Nacional de Jornais) e Abap (Associação Brasileira de Agências de Publicidade) e realizado num hotel de luxo esta semana em São Paulo.


Alvo favorito da grande imprensa desde o final de 2009, a terceira edição do Programa Nacional de Direito Humanos foi duramente atacada durante o seminário como um ‘ambicioso plano de implantação de um regime autoritário no Brasil’.


‘O Plano (sic) agride gravemente o direito de propriedade e sugere o controle dos meios de comunicação. Será um autoritarismo cuidando da história de outro autoritarismo. E o Brasil autoritário e intolerante que o governo quer construir é sustentado nesses dois pilares: o exercício da democracia direta e o controle dos meios de comunicação’, acredita Di Franco. ‘Você lê que o governo se dá ao direito de criar uma classificação dos programas de acordo com os direitos humanos e que o invasor de terras passa a decidir junto com o juiz se vai sair dali ou não e deixa barato? Será que ninguém tinha lido isso?’, esbravejou Reinaldo Azevedo, que fez questão de assumir a paternidade das ‘denúncias’ contra o PNDH-3 para além da polêmica da criação da Comissão da Verdade, que já ocupava as páginas dos jornais.


Para os convidados e membros do Instituto Millenium, o PNDH-3, documento construído num processo amplo de participação popular, que envolveu mais de 14 mil pessoas em todo o país – ‘organizações de fachada’, segundo William Waack -, é uma clara escalada da intervenção do Estado na vida da população. Num texto publicado na página da organização no internet, intitulado ‘Panfleto contra o PNDH-3’, afirma-se que ‘os verdadeiros direitos humanos são garantir a propriedade privada e as liberdades individuais básicas’.


Tanta fúria contra o Programa surge de pouquíssimas de suas mais de 500 propostas de ação, como a que propõe um ‘projeto de lei para tornar obrigatória a presença no local, do juiz ou do representante do Ministério Público, à ocasião do cumprimento de mandado de manutenção ou reintegração de posse de terras, quando houver pluralidade de réus, para prevenir conflitos violentos no campo’; a que sugere ‘elaborar critérios de acompanhamento editorial a fim de criar um ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de Direitos Humanos, assim como os que cometem violações’ – algo implementado há vários anos pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados – e ‘garantir a possibilidade de fiscalização da programação das emissoras de rádio e televisão, com vistas a assegurar o controle social sobre os meios de comunicação e a penalizar, na forma da lei, as empresas de telecomunicação que veicularem programação ou publicidade atentatória aos direitos humanos’.


Em síntese, criar mecanismos para que os meios de comunicação cumpram o que já prevê a Constituição brasileira, que segue periodicamente ignorada por grande parte das emissoras de rádio e TV, concessionárias públicas. Para seguir nesta toada e convencer a opinião pública de que sua teoria está correta, a estratégia das grandes empresas de comunicação é travestir tais iniciativas de violadoras da liberdade de expressão.


‘Vivemos um debate democrático no Brasil e o PT, por intermédio da liberdade de imprensa, propõe subverter a democracia pelos processos democráticos’, afirma Denis Rosenfield.’A tendência é de implementação do PNDH-3, mas isso depende de como a sociedade vai reagir. Houve reação dos militares e da Igreja, e os dois setores foram contemplados. Então não há muito convencimento do governo em relação ao plano. Mas as entidades empresariais estão contemporizando. Se fizerem isso, serão as vítimas’, sentencia.


A dificuldade fica maior quando vozes do próprio Partido dos Trabalhadores embarcam neste discurso. ‘Vira e mexe aparece uma vontade no governo de controlar a mídia. O Brasil tem caminhado num sistema democrático, embora apareça fatos como o PNDH (…) Não vejo necessidade de uma ação governamental pra ver se o jornal tal está respeitando os Direitos Humanos’, disse o deputado federal Antonio Palocci, também presente ao evento do Instituto Millenium.


O ‘autoritarismo’ da participação popular


Como pano de fundo da crítica ao Programa Nacional de Direitos Humanos 3 está a aversão das grandes empresas de comunicação a quaisquer mecanismos de participação popular na definição das políticas públicas no país. As conferências nacionais, realizadas há décadas no país e potencializadas nas últimas gestões do governo federal, seriam controladas, como apontou a conclusão do Fórum do Instituto Millenium, por interesses partidários e governamentais.


‘Em termos éticos, 90% dessas organizações são totalitárias e querem impor um modelo e padrão da vida pública’, afirmou Roberto Romano, professor de Ética e Filosofia Política da Unicamp, fonte favorita da grande imprensa quando se trata de criticar a esquerda. Não se concebe compreendê-las como espaços abertos e plurais, onde qualquer cidadão e cidadã pode manifestar sua opinião. Nem mesmo os mecanismos de democracia direta previstos no artigo 14 da Constituição Federal – que a grande mídia afirma defender – são respeitados. Para Carlos Alberto Di Franco, do Estadão, por exemplo, plebiscitos e referendos devem ser vistos como ‘formas excepcionalíssimas de consulta’.


Para Denis Rosenfield, as conferências são ‘meios de participação política de movimentos sociais e sindicatos que têm objetivos específicos contra os meios de comunicação, apresentando isso de forma palatável como o controle social e a defesa dos direitos humanos, quando o alvo evidente é cercear a liberdade de expressão’.


No bojo das críticas à democracia participativa, tais grupos econômicos desqualificaram, mais uma vez, a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), da qual as mesmas entidades que organizaram o evento em São Paulo se recusaram a participar. ‘As entidades empresariais colocaram premissas para sua participação, já que a pauta da Confecom era revisão do marco regulatório e o controle social. Nós dissemos que não poderia ficar de fora a liberdade de expressão, a livre iniciativa, o combate à pirataria. Insistimos para que isso viesse à pauta e isso não sobreviveu à agenda das demais entidades que lá estavam’, tentou explicar Sidnei Basile, do Grupo Abril, ignorando que todos esses temas foram de fato debatidos na Confecom. ‘Então nos retiramos. Foi bom, foi correto marcar nossos princípios. E o conto do vigário que estava sendo vendido não vigorou’, afirmou o jornalista, que minutos antes taxou de cínica e hipócrita tal iniciativa do governo.


Um dos temas mais criticados pela grande imprensa nos debates da Confecom foi justamente o controle social da mídia, que voltou ao centro do alvo no Fórum do Instituto Millenium. Os dardos vieram de todos os lados.


‘Estranho que, justamente quando vivemos uma democracia plena, se esteja falando em maior controle dos meios de comunicação. Mais estranho ainda é falar isso quando mais de 60 milhões de brasileiros já têm acesso à internet, onde o fluxo de idéias e opiniões é totalmente livre e felizmente impossível de censurar e controlar’, avaliou Roberto Civita, para quem, talvez, baste o fluxo de idéias e opiniões na rede mundial de computadores.


‘Não pode haver controles além da própria constituição de um país (…) Não se pode fazer lei a torto e a direito. E a Constituição de 88, no que diz respeito a concessões, publicidade e meios de comunicação, é muito explicita. E o que se vê hoje são tentativas de cada vez mais frequentes de se inibir a publicidade ou a notícia. (…) Tem muita gente querendo uma nova lei de imprensa. Da vontade de dizer: ‘faz’. Não existe boa lei de imprensa em nenhum lugar’, sentenciou o deputado federal pelo PDT Miro Teixeira, ex-Ministro das Comunicações.


Já o atual ministro, num rompante de seu espírito democrático, deixou claro: ‘em hipótese alguma o governo aceitaria uma discussão sobre o controle social da mídia. Não será permitido discutir isso do ponto de vista governamental; é algo que consideramos absolutamente intocável’, afirmou Hélio Costa, para quem a Confecom – que, diga-se de passagem, aprovou resolução em defesa do controle social e da participação popular nos meios de comunicação – não determina o que o governo deve fazer, levantando apenas sugestões ‘que não necessariamente devem ser colocadas em prática’.


A lei do mercado


O recado, em suma, é o seguinte: nada de povo e nada de lei nas comunicações brasileiras. ‘Quanto menos legislação melhor’, disse Civita. ‘No estágio atual, é melhor deixar tudo como está. O mercado tem conseguido resolver isso’, garante Rosenfield. Para não parecer que o que se defendia ali era a lei da selva, Sidnei Basile, do Grupo Abril, sacou da cartola a palavra mágica: auto-regulação. ‘O que se pode fazer conosco só nós é que podemos definir (…) Faço o convite para uma cultura da auto-regulação e da prevalência da boa fé’, disse. Alguém consegue acreditar? Di Franco emendou: ‘Não é o Estado que tem que ser o tutor da sociedade. O mercado e a auto-regulação fazem isso extremamente bem’.


‘Vejam a última resolução da Anvisa, que diz que os medicamentos não podem ficar ao alcance do consumidor. Agora o Estado deve dizer tudo o que devemos fazer e como nos comportar? Liberdade de consumo, cinto de segurança, etc. Somos idiotas? O capitalismo também se caracteriza pela liberdade de escolha em todos os seus sentidos’, teorizou Denis Rosenfield.


Com a auto-regulação concordaram até Hélio Costa e o deputado federal Antonio Palocci: ‘Os códigos de conduta das empresas, que educam sua equipe e organizam o trabalho da maneira adequada para tratar temas sensíveis, têm funcionado de forma eficiente. Não será o Estado que dirá como fazer’, disse o petista.


Mas nem esta linha redutora do dever do Estado em promover a pluralidade, a diversidade e a participação popular e combater as violações de direitos humanos nos meios de comunicação foi suficiente para que os pensadores do Instituto Millenium abrissem mão da tese de que a liberdade de expressão está mesmo ameaçada no Brasil por iniciativas do governo federal e o autoritarismo dos movimentos sociais.


‘Os grandes grupos empresariais estão satisfeitos com este governo. Se preocupam apenas com seus interesses materiais imediatos e se esquecem do espírito do capitalismo: a afirmação da liberdade de escolha e de expressão. Será que não estão colocando a corda no pescoço a médio e longo prazo?’, questionou Rosenfield. Quem dera…’


 


Washington Araújo


Liberdade de Expressão e seus 30 novos significados


‘Cotejando os temas abordados no Millenium e, principalmente, os conferencistas que lá foram vivamente aplaudidos, podemos imaginar novos significados para o verbete ‘liberdade de expressão’.


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Organizado pelo Instituto Millenium realizou-se em São Paulo no dia 1º de março de 2010 o I Fórum Democracia e Liberdade de Expressão congregando a fina flor do empresariado da comunicação brasileira e acolhendo representantes de grandes grupos de mídia da América Latina, em especial da Venezuela e da Argentina, além renomados nomes do colunismo político que brilham em nossos veículos comerciais. Pretendeu ser um contraponto à I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), cuja etapa nacional ocorreu em Brasília entre os dias 14 a 17 de dezembro de 2009. A Confecom envolveu mais de 20.000 pessoas em todo o país, recepcionou 6.000 propostas originárias das etapas estaduais e aprovou 500 resoluções.


A Confecom de Brasília trouxe à discussão temas como Produção de Conteúdo, Meios de Distribuição e os Direitos e Deveres da Cidadania, o Fórum de São Paulo propunha a defesa de valores como Democracia, Economia de Mercado e o Individualismo.


Todo cidadão brasileiro era bem-vindo para participar da 1ª Confecom. Para assistir ao Fórum Millenium era indispensável o pagamento de R$ 500,00 a título de inscrição. Na Confecom as seis maiores corporações empresariais de veículos de comunicação do Brasil fizeram questão de marcar sua ausência. No Millenium as ausentes se fizeram presentes. Dentre as quais destaco: Associação Brasileira de Empresas de Rádio e Televisão (Abert) e a Associação Nacional dos Jornais (ANJ), entidades que envolvem a Globo, o SBT, a Record, a Folha de S. Paulo, o Estado de S. Paulo, a RBS, Instituto Liberal, Movimento Endireita Brasil (MEB), e outras empresas que decidiram boicotar a I Conferência Nacional de Comunicação, numa demonstração de forte apreço pela democracia. Se essas entidades desejaram evitar o confronto na Confecom mostraram-se pintadas para guerra no Millenium.


Cotejando os temas abordados no Millenium e, principalmente, os conferencistas que lá foram vivamente aplaudidos, posso imaginar que se pretende agregar novos significados ao verbete ‘liberdade de expressão’.


São eles:


1. Liberdade de expressão é interditar todo e qualquer debate democrático sobre os meios de comunicação.


2. Liberdade de expressão só pode ser invocada pelos que controlam o monopólio das comunicações no país.


3. Liberdade de expressão é bem supremo estando abaixo apenas do Deus-Mercado.


4. Liberdade de expressão é moeda de troca nas eternas rusgas entre situação e oposição.


5. Liberdade de expressão é denunciar qualquer debate sobre mecanismos para termos uma imprensa minimamente responsável.


6. Liberdade de expressão é gerar factóides, divulgar informações sabidamente falsas apenas para aproveitar o calor da luta.


7. Liberdade de expressão é deitar falação contra avanços sociais, contra mobilidade social, contra cotas para negros e índios em universidades públicas.


8. Liberdade de expressão é cartelizar a informação e divulgá-la como capítulos de uma mesma novela em variados veículos de comunicação.


9. Liberdade de expressão é não conceder o direito de resposta sem que antes o interessado passe por toda a via crucis de conseguir na justiça valer seu direito.


10. Liberdade de expressão é explorar a boa fé do povo com programas de televisão que manipulam suas emoções e suas carências oferecendo uma casa aqui outro carro ali e assim por diante.


11. Liberdade de expressão é somente aprovar comentários aptos à publicação em sítio/blog da internet se estes referendarem o pensamento do autor e proprietário do sítio/blog.


12. Liberdade de expressão é ser leviano a ponto de chamar a ditadura brasileira de ditabranda e ficar por isso mesmo.


13. Liberdade de expressão é imputar ao presidente da República comportamento imoral tendo como fundamento depoimento fragmentado da memória de um indivíduo acerca de fato relatado quase duas décadas depois.


14. Liberdade de expressão é apresentar imparcialidade jornalística do meio de comunicação mesmo quando os principais jornalistas fazem de sua coluna tribuna eminentemente partidária.


15. Liberdade de expressão é fazer estardalhaço em torno de um sequestro que não ocorreu há quase 40 anos com a clara intenção de tumultuar o processo político atual.


16. Liberdade de expressão é assacar contra a honra de pessoa pública utilizando documentos de autenticidade altamente duvidosa e depois fazer mea culpa na seção ‘Erramos’.


17. Liberdade de expressão é submeter decisões editoriais a decisões comerciais de empresas e emissoras de comunicação.


18. Liberdade de expressão é somente dar ampla divulgação a pesquisas de opinião em que os resultados sejam palatáveis ao veículo de comunicação.


19. Liberdade de expressão é não ter visto ‘Lula, o filho do Brasil’ e considerá-lo péssimo produto cinematográfico sem ao menos tê-lo assistido.


20. Liberdade de expressão é minimizar o descaso do poder público ante as enchentes de São Paulo e reduzir candidato à presidência a mero poste.


21. Liberdade de expressão é ter dois pesos em política externa: Cuba é o inferno e China é o paraíso.


22. Liberdade de expressão é demonizar movimentos sociais e defender a todo custo latifúndios vastos e improdutivos.


23. Liberdade de expressão é usar uma concessão pública para aumentar os níveis de audiência com o uso perverso de crianças no papel de vilões.


24. Liberdade de expressão é desqualificar quem não aprecia a programação servida pelo Instituto Millenium.


25. Liberdade de expressão é rejeitar in totum toda e qualquer proposição da Conferência Nacional de Comunicação.


26. Liberdade de expressão é apostar em quem ofereça garantias robustas visando manter o monopólio dos atuais donos da mídia brasileira.


27. Liberdade de expressão é obstruir qualquer caminho que conduza mecanismos de democracia participativa.


28. Liberdade de expressão é fazer coro contra qualquer governo de esquerda e se omitir contra malfeitorias de qualquer governo de direita. Ou vice-versa.


29. Liberdade de expressão é fugir como o diabo foge da cruz de expressões como liberdade, democracia, cidadania, justiça social, controle social da mídia.


30. Liberdade de expressão é lutar para manter o status quo: o direito de informar é meu e ninguém tasca.’


 


Gilberto Maringoni


O rosnar golpista do Instituto Millenium


‘Não é bom subestimar os pitbulls da imprensa brasileira. A direita não costuma se unir apenas para tomar chá com torradas. Só não articulam um golpe por sua legitimidade social ser reduzida.


***


Vale a pena refletir mais um pouco sobre os significados e conseqüências do 1º Fórum Democracia e Liberdade de Expressão, realizado pelo Instituto Millenium em São Paulo, na segunda-feira, 1º. de março.


A grande questão é: por que os barões da mídia resolveram convocar um evento público para discutir suas idéias? Ta bom, vamos combinar. A R$ 500 por cabeça não é bem um evento público. Mas era aberto a quem se dispusesse a pagar.


No subsolo do luxuoso hotel Golden Tulip estavam o que se poderia chamar de agregados da Casa Grande dos monopólios da informação, como intelectuais de programa e jornalistas de vida fácil. Todos expuseram suas vísceras, em um strip-tease político e moral inigualável. Um espetáculo digno de nota. Nauseabundo, mas revelador.


Uma observação preliminar: os donos, os patrões, os proprietários enfim, tiveram um comportamento discreto e comedido ao microfone. Não xingaram e não partiram para a baixaria. Quem desempenhou esse papel foram os seus funcionários.


Nisso seguem de perto um ensinamento de Nelson Rockfeller (1908-1979), relatado em suas memórias. Quando resolveu disputar as eleições para governador de Nova York, em 1958, falou de seus planos à mãe, Abby Aldrich Rockefeller. Na lata, ela lhe perguntou: ‘Meu filho, isso não é coisa para nossos empregados’?


Os patrões deixaram o serviço sujo para os serviçais. Estes cumpriram o papel com entusiasmo.


Objetivos do convescote


Os propósitos do Fórum não são claros. Formalmente é a defesa da liberdade de expressão, sob o ponto de vista empresarial. Quem assistiu aos debates não deixou de ficar preocupado. Aos arranques, os pitbulls da grande mídia atacaram toda e qualquer tentativa de se jogar luz no comportamento dos meios de comunicação.


Talvez o maior significado do encontro esteja em sua própria realização. Não é todo dia que os donos da Folha, da Globo e da Abril se juntam, deixando de lado arestas concorrenciais, para pensarem em táticas comuns na cena política nacional.


Um alerta sobre articulações desse tipo foi feita por Cláudio Abramo (1923-1987), em seu livro ‘A regra do jogo’, publicado em 1988. A certa altura, ele relata uma conversa mantida com Darcy Ribeiro (1922-1997), no início de março de 1964. ‘Alertei-o de que dias antes, o dr. Julinho [Mesquita, dono de O Estado de S. Paulo] havia visitado Assis Chateubriand [dos Diários Associados], e que aquilo era sinal seguro de que o golpe estava na rua. Porque a burguesia é muito atilada nessas coisas, não tem os preconceitos pueris da esquerda. Na hora H ela se une’.


Pois no Instituto Millenium estavam unidos Roberto Civita [Abril], Otávio Frias Filho [Folha] e Roberto Irineu Marinho [Globo]. Sem mais nem porquê.


Não se pode dizer que a turma resolveu botar o golpe na rua. Mas é sintomática a realização do evento quase no mesmo dia em que a candidatura de Dilma Roussef empatou com a de José Serra, de acordo com o Datafolha. Ou que ele aconteça quando os partidos conservadores – PSDB e DEM – estejam às voltas com crises sérias.


O que isso quer dizer? Quer dizer que as representações institucionais da direita brasileira estão se esfarelando. Seu candidato não sabe se vai ou se não vai. Apesar de o governo Lula garantir altos ganhos ao capital financeiro, deixando intocada a política econômica neoliberal, este não é o governo dos sonhos da plutocracia pátria. Elas não suportam conviver com a ala popular, minoritária na gestão do ex-metalúrgico. Deploram a política externa, a não criminalização dos movimentos sociais e a possibilidade de um governo Dilma acatar indicações das várias conferências temáticas realizadas nos últimos anos, como a de Direitos Humanos e a de Comunicação (Confecom).


Incômodo com a Confecom


Falar nisso, há um nítido incômodo com os resultados da Confecom. A grande mídia não tolera que o tema da democratização das comunicações tenha entrado na agenda nacional.


A reação a tais movimentações sociais tem mudado substancialmente a imprensa brasileira. Para pior, vale sublinhar. Para perceber isso, vale a pena fazer uma brevíssima recuperação histórica.


Nos anos anteriores a 1964, a grande mídia – O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, O Globo, Folha de S. Paulo e Diários Associados, entre outros – tornou-se propagandista e operadora do golpe militar. Colheu desgaste e sofreu censura, anos depois.


O primeiro órgão a notar que, para viabilizar seus propósitos empresariais, necessitava mudar de comportamento foi a Folha de S. Paulo. Com um jornal sem importância antes até o inícios dos anos 1970 e acusado de auxiliar o aparato repressivo da ditadura, seus proprietários perceberam que para mudar sua inserção no mercado valeria a pena abrir páginas para a oposição democrática.


Apostando na democratização


O projeto editorial de 1984 do jornal (http://www1.folha.uol.com.br/folha/conheca/projetos-1984-3.shtml) dizia o seguinte:


‘A Folha é o meio de comunicação menos conservador de toda a grande imprensa brasileira. (…) É com certeza o que encontra maior repercussão entre os jovens. Foi o que primeiro compreendeu as possibilidades da abertura política e o que mais se beneficiou com ela, beneficiando a democratização. É o jornal pelo que a maioria dos intelectuais optou. É o mais discutido nas escolas de comunicação e nos debates sobre a imprensa brasileira’.


Ou seja, percebendo que a democratização lhe granjeava dividendos comerciais, o jornal deu espaço para lideranças, intelectuais e temas identificados com a mudança, em tempos finais da ditadura.


Topo da pirâmide


Vinte e três anos depois, em 11 de novembro de 2007, a Folha publicaria uma pesquisa sobre seu público, intitulada ‘Leitor da Folha está no topo da pirâmide social brasileira’ (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1111200715.htm). Logo na abertura, a matéria destaca:


‘O leitor da Folha está no topo da pirâmide da população brasileira: 68% têm nível superior (no país, só 11% passaram pela universidade) e 90% pertencem às classes A e B (contra 18% dos brasileiros). A maioria é branca, católica, casada, tem filhos e um bicho de estimação’.


Saem de cena os ‘os intelectuais’, ‘os debates sobre imprensa brasileira’ e entram os endinheirados. Do ponto de vista empresarial é isso mesmo. Jornal tem de vender e veicular anúncios a quem tem alta capacidade de consumo.


Mas para atender a essa lógica, movimentações editoriais são feitas. Ao invés de se priorizar um limitado pluralismo anterior, passam-se a criar cadernos e atrações voltados para os novos desígnios do público. E a linha editorial e os colunistas passam a ser cada vez mais conservadores.


A Folha beneficiou-se e soube utilizar em proveito próprio do formidável impulso democrático da sociedade brasileira dos anos 1980. Quase três décadas depois, percebe que a continuidade desse movimento não lhe interessa. E se insurge contra ele, com seus pares empresariais, entrando de cabeça nos fóruns do Instituto Millenium.


Golpe em marcha?


Articulações desse tipo são geralmente danosas à democracia. Sempre que ficam carentes de representações, as classes dominantes (chamemos as ‘elites’ por seu nome real) entram no jogo institucional de forma truculenta e atabalhoada. Buscam impor sua vontade a ferro e fogo, uma vez que as regras do convívio político não lhes interessam mais. Seus impulsos são sempre pela ruptura dessas regras. Pelo golpe.


Foi o que aconteceu na Venezuela, em 2002. Com a falência dos partidos de direita e com a avassaladora legitimidade do governo Hugo Chávez, as oligarquias locais – em associação com a Casa Branca, com a cúpula das forças armadas e com a grande mídia – partiram para a ignorância. E se deram mal.


Não é pouca coisa a afirmação do ex-filósofo Roberto Romano, durante o Fórum do Instituto Millenium: ‘O aspecto ditatorial do Plano Nacional dos Direitos Humanos passaria em branco, não fosse o descontentamento manifestado pelos militares’. Logo quem o professor de Ética (!) invoca como paladinos da democracia…


A tática golpista vingará por aqui? Pouco provável, pois seus defensores encontram-se isolados. O destempero exibido por alguns palestrantes durante o evento – notadamente Romano, Jabor, Reinaldo Azevedo, Marcelo Madureira, Sidnei Basile, Denis Rosenfield e Demetrio Magnoli – é uma patente demonstração de seu reduzido apoio social.


No entanto, não se pode subestimar essa turma. Como interpretar a delirante intervenção de Arnaldo Jabor, ao dizer que ‘A questão é como impedir politicamente o pensamento de uma velha esquerda que não deveria mais existir no mundo’? Como chegar a tal objetivo se não pela quebra da democracia?’


 


Venício Lima


Falácias no argumento dos donos da mídia


‘O argumento de que a mídia deve ser regulada exclusivamente pelo gosto do consumidor pressupõe um mercado democratizado, onde estariam representadas a pluralidade e a diversidade da sociedade brasileira que, por óbvio, não existe.


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Qual o papel que a televisão e o cinema desempenham na formação do ‘gosto’ cultural do brasileiro(a)? Perguntado de outra forma: quais as chances que uma criança nascida no Brasil – independente de sua origem de classe – tem de desenvolver ‘gosto’, por exemplo, por desenhos animados brasileiros ou por cinema brasileiro?


Para facilitar a reflexão: pense a mesma questão substituindo ‘criança nascida no Brasil’ por ‘criança nascida nos Estados Unidos’ ou por ‘criança nascida na França’ e desenhos animados ou cinema, respectivamente, de produção ‘americana’ ou francesa.


Como se formam os gostos culturais?


Como se formam, se desenvolvem e se consolidam os hábitos culturais, incluindo aqui os hábitos de assistir determinados canais e/ou programas de TV ou de ler determinadas revistas e/ou jornais?


Este é um fascinante campo da complexa sociologia do gosto e, por óbvio, não se pretende aqui, responder categoricamente a qualquer dessas questões. Elas, no entanto, são pertinentes e atuais em relação à conhecida e repetida falácia no argumento sobre a ausência da necessidade de qualquer forma de regulação da mídia tendo em vista que essa regulação já é feita cotidianamente pelo leitor/espectador/ouvinte que lê/vê/escuta aquilo que quer, podendo, a qualquer momento, simplesmente não ler/ver/escutar aquilo que não quiser ou não gostar.


Em recente debate sobre ‘controle social’ da mídia, Sidnei Basile, vice-presidente de relações institucionais da Editora Abril e vice-presidente do Comitê de Liberdade de Imprensa da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) para o Brasil, afirmou:


‘Ela (a mídia) precisa ter um controle. É o controle que o ouvinte, o telespectador, o leitor, o internauta fazem toda hora, é o melhor controle que existe. Você compra sua revista na banca, não gostou, está ruim, está mal feito, não compra mais. Esse controle social é perfeito e não precisa de outro’ [cf. http://g1.globo.com/bomdiabrasil/0,,MUL1511585-16020,00-FORUM+DISCUTE+DEMOCRACIA+E+LIBERDADE+DE+EXPRESSAO.html ].


Deslocar a questão da regulação da mídia apenas para o gosto, além de reduzir toda a problemática da comunicação de massa a uma única dimensão – do ‘consumo’ individual no mercado – ignora toda a complexa questão da formação social do gosto e do enorme papel que a própria mídia nela desempenha.


Além disso, o argumento pressupõe um mercado de mídia democratizado, onde estariam representadas a pluralidade e a diversidade da sociedade brasileira que, por óbvio, não existe. Ignora ainda o fato elementar de que não se pode gostar ou não gostar daquilo que não se conhece ou cujas chances de se conhecer são extremamente reduzidas?


A historiadora Amara Rocha (UFRJ), mostra no seu ‘Nas ondas da modernização: o rádio e a televisão no Brasil de 1950 a 1970’ (Aeroplano/FAPESP, 2007), como a adoção do ‘trusteeship model’, entre nós, respondia a pressões de um programa do governo Roosevelt (1882-1945) cujo objetivo era ‘estabelecer as bases para as relações econômicas e culturais com a América Latina, priorizando o papel que a proximidade com o american way of life poderia significar para as mudanças consideradas necessárias à sociedade e à cultura dessa região’.


Como ignorar que o Estado brasileiro, ainda na década de 30 do século passado, priorizou a exploração dos serviços públicos de radiodifusão por empresas privadas e, a partir daí, se instalou na sociedade brasileira um modelo de exploração da mídia que trouxe com ele uma determinada visão de mundo que inclui o gosto e os hábitos culturais?


E a noção de serviço público?


Por outro lado, é preciso insistir que, se é verdade que a mídia impressa é uma iniciativa privada que está excluída de qualquer forma de licença e/ou regulação, e pode, por opção, ignorar suas responsabilidades sociais, o mesmo não se aplica ao serviço público de radiodifusão. Concessionários de rádio e televisão são prestadores de um serviço público que se obrigam a um contrato, por tempo determinado e sob prioridades e condições definidas em Lei.


Nunca é demais lembrar a célebre frase do juiz Byron White em sentença da Suprema Corte dos Estados Unidos: ‘É o direito dos telespectadores e ouvintes, não o direito dos radiodifusores, que é soberano’.


O ‘controle’ do cidadão


De qualquer maneira, o vice presidente da SIP, não deixa de ter sua dose de razão. A acentuada tendência de queda nas audiências e na leitura dos veículos da grande mídia tradicional, revelada nos últimos anos, não deixa dúvidas de ‘que o ouvinte, o telespectador, o leitor, o internauta’ estão, de fato, exercendo o seu ‘controle’. A grande mídia vai aos poucos tendo que conviver com uma nova mídia, alternativa e interativa, e, em alguns casos, construída pelo sistema público.


Novos tempos. Nova mídia. Novos atores. Novos poderes. E muitos ainda acreditam nas falácias de seus próprios argumentos.’


 


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