Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Alberto Dines

‘Faltou a percepção do trágico. A data foi lembrada com toques festivos, sem desassossego. Comemoravam-se os 40 anos de uma penosa ditadura desaparecida há quase duas décadas mas não se rememorou a pérfida armação. Convertido em efeméride, com reminiscências e fúrias pessoais nem sempre significativas, o capítulo mais negro da nossa história perdeu parte da sua carga dolorosa. Comoveu alguns, não incomodou a maioria dos infelicitados.

Das tragédias de Shakespeare, a mais política, por isso sempre atual, é Júlio César. Hoje não está em cartaz mas amanhã, onde quer que seja remontada, com as mesmas dramatis personae parecerá um flagrante do inevitável choque de ambições e cegueiras palacianas.

Cena segunda: Shakespeare introduz os protagonistas e, com eles, um obscuro vidente de rua que tenta chamar a atenção do séqüito dos despreocupados governantes. Brutus leva-o até Júlio César e o homem repete diante do imperador: ‘Cuidado com os Idos de Março’. Não lhe dão atenção, reaparecerá. (*)

No rol dos presságios romanos, os Idos aconteciam nos dias 15 dos meses de Março, Maio, Julho, Outubro e nos dias 13 dos demais meses. Os nossos Idos de Março, chegaram mais cedo, dia 13, no coliseu armado em frente à Central do Brasil, Rio, e estendeu-se ininterrupto ao longo dos 7.683 dias seguintes até 15 de Março de 1985.

Nas tragédias todos são vítimas, não há inocentes, o capricho dos fados é tão rigoroso que ninguém é poupado: mesmo o espectador deve sair machucado através da catarse. Não se pode entender uma tragédia sem os antecedentes: se João Goulart tivesse mantido a solução parlamentarista e se Tancredo Neves – primeiro premiê da nossa história republicana – não tivesse sido sabotado pela chusma de candidatos presidencialistas comandados por Leonel Brizola, certamente não teria sido eleito 24 anos depois como o primeiro presidente civil depois de cinco generais-ditadores.

A história no condicional é um exercício especulativo que não convém desprezar, é dialética, pela negação ajuda a dimensionar o drama. As oportunidades perdidas contam tanto quanto as doidices perpetradas. Se Darcy Ribeiro (Chefe da Casa Civil, um dos principais conselheiros de Goulart), fosse um pouco mais prudente, a esquerda não teria desperdiçado figuras tão excepcionais como San Tiago Dantas (1911-1964). Se em vez das ‘reformas de base’ inventadas apenas para azucrinar (o verbo é de João Pedro Stédile e não de Francisco Julião, das Ligas Camponesas), o governo tivesse levado adiante o Plano Trienal de Celso Furtado, teríamos criado o primeiro projeto de desenvolvimento sustentável e, talvez, evitado as décadas perdidas e heranças malditas. Sobretudo, teríamos abortado o ‘milagre brasileiro’ e a esdrúxula aparição do seu inventor, Delfim Netto.

Ao relembrar o estrago que a ditadura causou à imprensa, primeiro cooptando-a e, em seguida, emasculando-a, não se pode esquecer que na tarde de 31 de Março (Goulart ainda no poder), um pelotão de fuzileiros navais do Almirante Aragão entrou atirando a esmo no prédio do Jornal do Brasil e chegou até a redação. Não queriam nada, apenas intimidar, a ação fazia parte do manda-brasa generalizado. E o JB naquela manhã fora plácido, comparado com o incendiário Correio da Manhã que dera o sinal para a derrubada de Jango.

O bem intencionado esforço de periodização para diferenciar as diferentes fases da ditadura, obviamente não leva em consideração que os atos desabridos coincidiram com os acanhamentos. JK foi cassado nove dias depois junto com outros 102 cidadãos brasileiros, a brutal alteração do calendário eleitoral com o adiamento das eleições presidenciais de 1965 para 1967 deu-se em julho, em plena fase ‘envergonhada’. A exposição didática facilita a compreensão mas disfarça o tamanho do infortúnio.

Ao reviver 1964, a ausência mais notada e mais dolorosa é a daquela pergunta que o Coro costuma repetir ao longo das tragédias: por que, por que? Não é propriamente indagação, é lamento e revolta, resignação e inconformismo, esforço para entender em meio ao turbilhão de desatinos. Qual a mecânica que transformou nossa tradição de quarteladas incruentas numa sucessão incrível de crueldades? Onde meteu-se aquela sociedade capaz de absorver todos os choques e contradições?

O homem cordial sumiu e ninguém deu por ele – esta é uma tragédia à parte.

(*) Os Idos de Março e a Queda em Abril (José Álvaro Editor, Maio de 1964), livro-reportagem, foi escrito por oito jornalistas do Jornal do Brasil (pela ordem da entrada: Araújo Netto, Pedro Gomes, Eurilo Duarte, Cláudio Mello e Souza, Wilson Figueiredo, Antônio Callado, Carlos Castello Branco e o articulista), prefaciado por outro, Otto Lara Resende.’



Zuenir Ventura

’40 anos hoje’, copyright O Globo, 31/03/04

‘Quase não tenho me ocupado de outra coisa senão de responder à pergunta ‘Onde você estava no dia 31 de março de 1964?’, feita por estudantes para trabalhos de escolas e faculdades. Ser testemunha ocular da História, que é um outro nome para a velhice, dá nisso: você passa a substituir os livros. Ou passaria, se tivesse tido algum papel relevante. O pior é quando o aluno mistura 1964 com 1930 e quer saber onde você estava no dia em que nem nascido era.

Nunca pensei que o golpe militar viesse a ser tão revisitado e analisado 40 anos depois, posto que somos, como se diz, um país que sofre de amnésia crônica. Ou terá sido justamente por isso? Ou será porque o trauma talvez não seja cicatriz, mas ainda ferida? Não sei. O fato é que o passado que a ditadura militar tanto quis apagar da memória nacional está sendo revivido, e isso é positivo. Lembrar o que os vencedores querem esquecer é a vingança permitida aos derrotados.

A História, aconselhava Mário de Andrade, não deve servir de exemplo, mas de lição. O movimento de 64 deixou várias, a primeira das quais é que não adianta suprimir a liberdade. Basta recordar que todos os excessos da repressão – censura, tortura, assassinatos- foram cometidos a pretexto de livrar o país da subversão e da corrupção. A primeira, encarnada pela ameaça comunista, não passava de um fantasma, como se viu. Quanto à segunda, bem, esta dispensa comentários. Continuou atuante com ou sem regime militar. O comunismo não precisou da força para acabar, a corrupção não acabou nem à força.

Revogar a democracia também não ajudou a curar nossas mazelas. Em cerca de 20 anos de poder absoluto, em que faziam o que queriam sem dar satisfação à sociedade, os cinco ditadores e mais a Junta Militar não resolveram os graves problemas sociais do campo ou da cidade – nem reforma agrária ou urbana, nem da saúde, nem da educação. Mesmo quando a economia foi bem, o povo foi mal, como admitiu o próprio Médici.

Ah, sim, onde eu estava hoje há 40 anos? Em Brasília, por acaso. A convite do jornalista Pompeu de Souza, eu fora assumir uma cadeira no curso de comunicação da UnB. Cheguei no dia 31 de março e encontrei a capital em meio a um fogo cruzado de boatos e notícias desencontradas. Brasília, desorientada, desconhecia o que estava acontecendo nas outras partes do país. Não sabia que Jango, no Rio, estava caindo, nem que daí a pouco os anos de chumbo iriam começar.’



Otavio Frias Filho

‘Ecos de 64’, copyright Folha de S. Paulo, 1/04/04

‘Um dia desses, numa dessas conversas entreouvidas em filas de espera, um garoto de seus dez anos perguntava ao pai, que lia jornal, que história era essa de golpe militar em 1964. Distraído, o pai respondeu que o Brasil estava indo para um rumo muito ‘social’ -foi a expressão- e que por isso os militares resolveram intervir para instalar uma ditadura.

Explicação bastante simplista, mas na qual muitos adultos, sobretudo os que eram crianças na época, acreditam piamente. É cômodo enquadrar situações complexas em julgamentos morais categóricos, mesmo quando eles se fazem necessários. E não há dúvida, como lembrou ontem Marcelo Coelho, de que a história é sempre contada com olhos e valores de hoje.

É difícil entender 64 se não se tomar a data como episódio de uma longa guerra internacional, nunca declarada, mas que dividiu o planeta em dois blocos antagônicos, liderados pelos Estados Unidos e pela então União Soviética. Embora sem enfrentamento aberto, essa guerra era total, estendendo-se da política à economia, à cultura, à própria visão de mundo que cada lado pretendia impor ao outro.

Cada facção desconfiava mortalmente das intenções da outra. No plano doméstico, a radicalização que precedeu o golpe militar foi em boa parte uma escalada de retaliações retóricas, em que direita e esquerda se superavam em termos de paranóia recíproca. Chegou-se a uma dinâmica em que ou bem o governo Goulart seria deposto ou teria de aplicar um golpe para manter-se no poder.

A esquerda foi irresponsável, pois não contava com forças capazes de sustentar suas bravatas -conforme ficou demonstrado pela facilidade com que o governo constitucional caiu. A direita foi oportunista, exagerando os temores de que Goulart (ou Brizola) pudesse tornar-se ditador a fim de resguardar interesses ameaçados pela maré montante de reivindicações sociais, como dizia o pai daquele garoto.

Outra meia-verdade é a idéia de que a oposição ao regime militar era necessariamente democrática. Válida para amplas parcelas do parlamento, das associações de classe e da imprensa, essa idéia é falsa no que se refere à oposição armada. Alimentada pelo delírio de imitar o exemplo cubano, a guerrilha foi uma aventura criminosa que custou a vida de centenas de jovens ingênuos e idealistas.

Se, por um acaso milagroso, os grupúsculos armados tivessem derrubado a ditadura dos generais, seria para instalar uma ditadura de partido único, nos moldes de tantas outras implantadas à força, com respaldo soviético ou chinês, na África e na Ásia ao longo das décadas de 50 e 60. Fracassada, a aventura guerrilheira conferiu legitimidade ao período de ditadura nua e crua, entre 68 e 74.

A favor dos militares, faça-se a ressalva de que somente intervieram quando a agitação de esquerda já ameaçava a disciplina, cerne dessa corporação hierárquica por excelência. Contra pesa o crime, moralmente nefando e politicamente intolerável, de haverem permitido que a tortura se tornasse instrumento de ação do Estado -e contra adversários já indefesos. Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.’