Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Alberto Dines

‘Tudo às avessas: Deus escreve certo por linhas tortas proclamam os crentes, enquanto os otimistas conformam-se com o fato de que no Brasil a carroça seja colocada à frente dos bois. Desta maneira arrevesada, antes mesmo de ficar claro o que seja desenvolvimento, decretou-se a criação de dois partidos políticos e, à revelia, foram enfiados neles os desenvolvimentistas e os anti-desenvolvimento. Do debate, em geral, produz-se a luz, mas desta quizila resultam trevas.

A demissão de Carlos Lessa da presidência do BNDES e, dias depois, a morte de Celso Furtado esquentaram um confronto que sendo basicamente fictício ou, na melhor das hipóteses, artificial, coloca os envolvidos no plano do realismo mágico, nome terrivelmente simpático para designar o reino da imaginação.

Em primeiro lugar: todos são desenvolvimentistas, ninguém pode ser anti-progresso, anti-avanço, anti-expansão. As diferenças residem nos diferentes caminhos para alcançá-los. Monetaristas, progressistas e suas respectivas musas (ou musos) pretendem a mesmíssima coisa, divergem apenas na metodologia e, principalmente, na capacidade de enxergar ou não a esterilidade do conflito.

Quando em 1963, no conflagrado mandato de João Goulart, Celso Furtado, ministro do Planejamento, enfrentou Leonel Brizola e as Reformas de Base com o seu Plano Trienal, mostrava didaticamente o que era um programa de desenvolvimento sustentável e revelava o que era progresso ‘na marra’. Celso Furtado perdeu a parada porque Jango não percebeu as diferenças e porque Brizola, espertamente, envolveu as suas propostas com a inflamada bandeira da xenofobia.

Cerca de uma década antes, Juscelino Kubitschek lançou em Minas o binômio ‘Energia e Transportes’. Ao invés de deixar-se arrastar pelos falsos dilemas ‘Entreguismo vs. Nacionalismo’ e ‘Estatismo vs. Privatismo’, atraiu a iniciativa privada nacional e internacional, buscou recursos tanto no BNDE como no BIRD e criou uma holding de economia mista para administrar seu vasto programa de eletrificação cujo primeiro grande cliente foi a Manesmann, empresa na época 100% alemã.

JK não politizou o desenvolvimento, foi um precursor das Parcerias Público-Prívadas e, simultaneamente, dos organismos de fomento e controle. Hoje, assistimos estarrecidos ao desgaste e à paralisia da idéia das PPP porque os desenvolvimentistas do governo não desejam perder poder com o fortalecimento das agências reguladoras.

JK sonhava com uma indústria automobilística nacional e para implantá-la criou o GEIA, Grupo Executivo da Indústria Automobilística que no seu início funcionou como uma agência de fomento e controle sem qualquer estrilo de algum dos players (para usar palavra da moda).

Lula da Silva não existiria como torneiro, líder sindical, político ou presidente da República sem o pragmatismo que norteou a implantação da indústria automobilística brasileira. Não percebeu que, de certa forma, é filho do GEIA e herdeiro do desenvolvimento sem viés ideológico. Se o salto para a frente de 1956 fosse hifenizado pelo repertório de prefixos gerados pela Guerra Fria estaríamos ainda no 3º Mundo, enrascados pelos politólogos, caudilhos e coronéis.

Eleito pelo conservador PSD, aliado ao populista PTB, Juscelino soube driblar a enfezada UDN graças à sua capacidade de empolgar a nação com seus projetos. Não permitiu que o seu entusiasmo fosse diminuído por mesquinharias, incompetências e pelas manobras para aumentar a ‘base de apoio parlamentar’. JK sabia negociar, barganhar até, mas jamais admitiria que seu governo se achincalhasse com um comércio político tão obsceno como esta transação (ou transa) entre o PT e o PMDB.

Quando lançou o programa de eletrificação e transportes, JK não estava apostando no confronto entre o progresso agrícola e progresso industrial, queria os dois, sabia que eram complementares. Hoje, nas assembléias, a palavra de ordem é condenar o agro-negócio sem perceber a influência positiva sobre a agroindústria.

Binômios são somas e materializam-se sem exclusões. Naqueles anos dourados, a ninguém ocorreria classificar Lucas Lopes, Lúcio Meira ou Roberto Campos como ‘brasileiros sem B maiúsculo’. Justamente por isso aqueles foram anos dourados.’



João Domingos

‘‘Eu fui até meu limite’, diz Kotscho’, copyright O Estado de S. Paulo, 28/11/04

‘Anteontem, o jornalista Ricardo Kotscho deixou o cargo de secretário de Imprensa do governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Amigo de mais de 25 anos de Lula, ele diz que vai embora porque não agüenta mais de saudades da família. Seu plano é escrever um livro em que narrará os 40 anos de experiência como jornalista.

Ele foi o único assessor de Lula a tentar impedir a decisão do chefe de expulsar do Brasil o jornalista Larry Rohter, que publicou reportagem sobre uma suposta preocupação dos brasileiros com um suposto hábito do presidente de beber cachaça. Menos de uma semana depois, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, conseguiu reverter a situação e o ato de cassação do visto de Rohter foi revogado. Kotscho diz que foi seu melhor e pior momento no governo.

O que o levou a se demitir no meio de um governo cujo presidente é seu amigo?

Saio porque já estou há três anos no governo (dois em Brasília e um na campanha). Sou muito ligado à família. Quando você trabalha no jornal, viaja muito e tem a perspectiva de voltar para casa. Aqui, viajo muito e volto para um quarto de hotel. Nunca trabalhei tanto. Estou no bagaço.

Por que dois amigos de Lula, você e Frei Betto, deixam o governo no mesmo momento?

É coincidência. Frei Betto e eu somos amigos do Lula da mesma época, o fim dos anos 70, no ABC. O Betto era da Pastoral Operária e eu cobria o movimento sindical. A gente trabalhou com o Lula em todas as campanhas. No meu caso, vou embora porque estou longe da família. O Betto é escritor, palestrante. Nós dois, ao contrário de muitos, não temos projeto político. Foi uma coincidência, de verdade. Mas muitos querem que vire tese.

Você ganhou dinheiro?

Só perdi. Mas quando vim para o governo já sabia quais eram as condições salariais. Era um terço do que recebia na imprensa.

E quanto ganha o secretário de Imprensa?

R$ 7.400 brutos.

E mais o quê?

Auxílio-moradia. Pagavam o hotel. As despesas, claro, eram muito maiores, porque tinha gasto com passagens para ver a família. Acabou minha poupança, acabou minha milhagem. Saio zerado.

Você sai pobre?

Pobre, não, porque tenho casa e trabalho. Isso é o mais importante. Um monte de gente já me ligou, oferecendo trabalho, mas penso mais em descanso.

E depois, vai fazer o quê?

Pretendo ter uma sala, com minha mulher. Vou também dar consultoria para o governo. Mas não é só isso. Pretendo escrever um livro para contar a experiência de 40 anos de jornalismo. Vai se chamar Do Golpe ao Planalto, 40 anos de Estrada.

Pretende voltar à reportagem?

Não de forma fixa. Não quero estar vinculado ou só a governo ou só a empresa. Eventualmente, posso fazer reportagem e uma coluna. Meu ganha-pão é escrever.

Do tempo em que você conheceu Lula a hoje, o que mudou nele? Ele reclama de algo?

O que ele sente mais é a falta de liberdade. Não pode ir a um restaurante, ir à rua. Não tem liberdade. Além do mais, ele tem de ser muito mais cuidadoso. Como líder de sindicato, sempre falou com todo mundo, sempre se abriu. Hoje, qualquer coisa que ele fala tem uma repercussão muito grande.

Como você avalia seus 40 anos de jornalismo?

A gente sempre sonha um monte de coisa, critica o que acha errado. Quando chega ao governo, acha que tem oportunidade de colocar em prática aquilo que sonhou quando era de oposição, era de jornal. Porque jornal e oposição é tudo a mesma coisa. Mas no governo não demora para você perceber os limites entre o que quer fazer, o que precisa fazer e o que é possível fazer. De fora a gente sempre pergunta: por que não resolvem isso, por que não dão aumento para o mínimo, por que não consertam as estradas, por que o País é tão injusto? Na campanha, o Lula falou que o País precisava de 10 milhões de empregos. Alguns amigos acharam que ele criaria 10 milhões de empregos. Veja só: quando fui para o governo, comuniquei ao caseiro do sítio que estava indo para o governo e ganharia menos. Portanto, teria de mandar um dos dois ajudantes embora. Ele ficou ouvindo e disse: ‘Seu Ricardo, não entendo, aqui na cidade dizem que agora é que o senhor vai se arrumar. Vai trabalhar no governo. Aí, nas primeiras semanas, pessoas me ligavam o dia todo pedindo emprego, anúncio, tudo, até para tirar alguém da cadeia, reabrir Santa Casa que fechou.

Como secretário de Imprensa, você acabou tendo alguns problemas que pessoas que cobrem o Palácio do Planalto. É difícil conviver com jornalista?

Não dá para generalizar. Dentro de um mesmo veículo você tem profissionais diferentes. Aqui conheci alguns dos melhores profissionais, bons, sérios, dedicados, e alguns dos piores também. Brasília alimenta muito a vaidade não só dos políticos mas também dos jornalistas. Tem jornalista em Brasília que é mais importante do que a notícia. E, como a competição é muito grande, a concorrência é muito grande, às vezes dentro de um mesmo veículo, vale tudo. É um tal de turbinar a matéria, transformar uma pequena frase em manchete.

Essa foi sua maior dificuldade como secretário de Imprensa?

Tive a dificuldade de conciliar duas naturezas diferentes: a de quem governa e a da imprensa. Tive várias reuniões com Ana Tavares (sua antecessora) e ela me mostrou isso: olha, o governo sempre tem crise, você nunca vai conseguir atender a imprensa do jeito que ela quer e sempre vai ter gente no governo reclamando da imprensa. Esse é o desafio diário, tirar informação do governo e passar para a imprensa, que é a intermediária da sociedade. Eu fui até meu limite.’



Helena Chagas e Diana Fernandes

‘‘É um outro mundo. Foi um choque cultural’’, copyright O Globo, 24/11/04

‘Observador privilegiado da chegada do PT ao poder e dos dois primeiros anos do mandato de Lula, o jornalista Ricardo Kotscho deixou o ‘serpentário que tem vida própria’ do Planalto na última sexta-feira. Com 40 anos de profissão, 56 de idade, viveu o choque dos que chegam a Brasília achando que vão mudar tudo e cumprir todas as promessas de campanha, mas que, em pouco tempo, descobrem que a tarefa de governar tem mais limites do que pensavam. Em entrevista ao GLOBO, o agora ex-secretário de Imprensa da Presidência revela seu espanto com peculiaridades da vida palaciana como as fofocas e a mania de todos que chegam lá para pedir alguma coisa. Fala do que considera o momento de maior frustração do presidente Lula – quando ele não pôde dar ao salário-mínimo o aumento que queria. E lembra daquela que foi, para ele próprio, a maior saia-justa desses dois anos: a decisão do governo, revista logo depois, de expulsar do país o jornalista americano Larry Rhoter.

Amigo de Lula, Kotscho vai continuar colaborando com o governo à distância. Da relação nem sempre pacífica do governo do PT com a imprensa, guardará boas e más lembranças. Critica jornalistas que acham que sua função é ‘hostilizar o governo’. Mas admite que, ‘infelizmente’, também existem pessoas no governo que acham que têm que hostilizar a imprensa.

Por que os amigos do presidente Lula estão indo embora do governo?

RICARDO KOTSCHO. Dos que têm saído, cada um tem motivações diferentes. O que têm em comum é que são pessoas que não têm vida político-partidária, projeto político, não são candidatos… Na verdade, de amigo mais próximo neste caso só eu e o Frei Betto. Vínhamos conversando sobre sair no fim do ano. No meu caso, por causa da família. E, no caso dele, porque tem uma vida própria, é escritor, faz palestras…

Não há aí uma dificuldade de adaptação, um desconforto com a vida no poder?

KOTSCHO: É um outro mundo. Para mim, foi um choque cultural. Primeiro, trabalhar no governo, segundo, numa outra cidade, e terceiro, longe da família. O pior, para mim, foi isso. Nos tempos de jornal, eu viajava e voltava para casa. Agora não, eu viajei para mais de 30 países, pelo Brasil inteiro, e voltava para ficar sozinho num quarto de hotel.

Como é esse choque cultural? Ele atingiu quase todo mundo do PT ao chegar ao poder?

KOTSCHO: Vou falar por mim. Completei 40 anos de jornalismo e sempre fui um cara meio sonhador, idealista. Criticava as coisas erradas do país, os governos, e achava que era uma forma de tentar consertar. Quando você chega ao governo, acha que vai ter condições de fazer isso. Não demora muito, em poucos dias, semanas, você vê os limites, que são de várias ordens. E engraçado, quase todo mundo que vem ao Palácio do Planalto vem pedir alguma coisa. De uma forma geral, no Brasil acha-se que o governo resolve tudo. E você descobre, sentado aqui, que não resolve. E nem é tão rápido quanto se gostaria. A demanda do país é tão grande, e as possibilidades tão limitadas, que às vezes parece que a conta não fecha…

O presidente também tem essa frustração?

KOTSCHO: É, a gente quer fazer as coisas andarem mais rapidamente. Foi traumático o primeiro ano. Uma das coisas que Lula sempre falou desde a primeira campanha era em aumentar o salário-mínimo. Ano passado ainda aumentou um pouco, este ano menos. É uma frustração muito grande dele, da equipe econômica, dos amigos, de não poder atender essas coisas vitais para um partido como o PT e para um homem como o Lula. Foi um dos piores momentos para ele.

Como é a vida dentro do Planalto? Não é o lugar do Brasil onde há mais intrigas por metro quadrado?

KOTSCHO: Há 15 dias, fui almoçar com Ana Tavares, minha antecessora aqui, e ela falou uma frase que é perfeita: ‘Olha, dentro do Palácio do Planalto tem um serpentário, que independe do governo e das pessoas que porventura passem por aí…’ Depois que saiu, ela nunca mais entrou aqui. É um serpentário que tem vida própria. Eu li agora o livro do Elio Gaspari ‘A ditadura encurralada’ e é impressionante: era outro momento do país e era uma intrigalhada danada. Até falei para o Gilberto Carvalho: ‘Perto daquilo, isso aqui parece um convento. Não que todas as freiras sejam virgens…’ Mas é uma diferença brutal. O grupo palaciano hoje é gente que se conhece há muito tempo, ou da Igreja, ou do PT…

E gente que briga há muito tempo…

KOTSCHO: É verdade. As discussões vêm de lá de trás, desde a fundação do PT. Elas são permanentes, fazem parte e isso não quer dizer que as pessoas romperam, brigaram. Uma vez, durante uma reunião ministerial no salão leste – depois de várias matérias nos jornais dizendo que o Dirceu e o Palocci estavam brigados – eu avisei aos dois: vê se vocês fazem cara simpática para os fotógrafos. Aí um deu a mão para o outro… Não precisa tanto, brinquei.

Um livro sobre o governo?

KOTSCHO: Não. Vou fazer um livro sobre meus 40 anos de jornalismo. Vou usar o título ‘40 anos de estrada: do golpe ao Planalto’. Por coincidência, comecei a trabalhar em 1964. É um livro sobre imprensa, jornais, e personagens da política, mas não é um livro sobre o governo. Minha experiência em Brasília entra no último capítulo, a relação com a imprensa…

Como avalia a relação do governo do PT com a imprensa?

KOTSCHO: Não dá para generalizar. São diferentes áreas de governo, diferentes formas de relacionamento. Vou dar um exemplo: um articulista de um grande jornal, numa reunião, falou que uma das funções do jornalista é hostilizar o governo. Não concordo. Pode dizer que tem que controlar, fiscalizar, mostrar o que tem de errado, mas não hostilizar. Da mesma forma, infelizmente, existem também pessoas no governo que acham que têm que hostilizar a imprensa. Então a função minha, que não seja nem uma coisa nem outra.

Como você conheceu Lula?

KOTSCHO: Pela capa de uma revista, ‘IstoÉ’, que um amigo me mandou (morava na Alemanha), dizendo ‘leia esta matéria que este cara vai ser importante no Brasil’. Eu não conhecia, não sabia quem era. Por coincidência, quando voltei em 1978, o Mino Carta me convidou para trabalhar na revista e disse: você vai ser setorista do ABC, vai grudar nesse cara aí. Fui lá me apresentar ao Lula. Ele disse: ‘Pô, mais um barbudinho da USP para me encher o saco, mais um intelectual’. E a gente logo ficou amigo.

Você bota a mão na maçaneta e entra na sala do presidente?

KOTSCHO: Sempre, desde o primeiro dia. Duas coisas combinei com ele antes de vir para cá: uma, tenho que ter acesso a você sempre que for preciso; e a outra, que sou subordinado a ele, respondo a ele e só a ele.

Qual sua maior decepção e sua maior alegria no governo?

KOTSCHO: Foram muitas alegrias pelo Brasil e pelo mundo. Sempre pela forma como Lula era recebido. Eu chorava às vezes, me emociona até hoje. O episódio mais difícil foi o do Larry Rhoter, que acabou sendo resolvido do jeito que eu queria. Eu achava que estava errado aquilo (a expulsão do jornalista). O ministro Thomaz Bastos estava viajando e, quando ele voltou, foi resolvido. Mas foi uma questão difícil.

No episódio falou mais alto a parte mais autoritária do governo.

KOTSCHO: Eu não uso essa expressão. Houve uma divergência, pontos de vista diferentes e eu fui voto vencido, mas no fim houve uma solução. De fato, foram os dias mais difíceis. Mas quero aproveitar e dizer que não pedi demissão naquele episódio. E o episódio não influenciou em nada, estava decidido desde o início do ano que eu sairia agora.