Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Alberto Dines

‘Tratamento para cardeais, eminência significa relevo, relevância. Figuras de proa, príncipes da Igreja, os cardeais usavam habitualmente a cor púrpura para distinguirem-se do baixo-clero sempre de preto. O Cardeal Richelieu, o manda-chuva de Luís XIII (1610-1643), conhecido como o Eminence Rouge, mandava ostensivamente.

Mas o poder atrás do poder, invisível, inacessível, intocável era o confidente do rei, o obscuro pére, padre, Joseph (François Leclerc, ex-Marquês de Tremblay antes de ordenar-se Capucho) conhecido como Eminence Grise.

A mutação do discreto cinza francês para a cor parda em português pode explicar-se através dos meandros da nossa preconceituosa tinturaria antropológica mas o que interessa no momento é a sábia e sofisticada distinção estabelecida há quase quatro séculos no esquema absolutista com os dois tipos de eminências, a rubra e a cinza.

José Dirceu saiu – ou caiu, dá no mesmo — porque não prestou atenção à sutil nomenclatura francesa. Entregou-se ao fascínio de ser o todo-poderoso iluminado pelos holofotes e imaginou que, ao mesmo tempo, poderia ser o mandarim que desliza nas sombras. Não podia dar certo, esta é uma duplicidade impossível de administrar. Richelieu mandava e desmandava mas o ex-aristocrata e agora padre Joseph cochichava nos ouvidos do rei o que estava certo ou errado.

O ex-chefe da Casa Civil talvez tenha reparado na armadilha mas faltou um Luis XIII para desarmá-la. O rei nada tinha de fantoche, talvez sequer soubesse o que era dialética mas soube usá-la com maestria servindo-se de Richelieu como operador e pére Joseph como seu aparador. Nada acontecia sem o seu consentimento. Não foi incluído no rol dos reis-filósofos mas teve o bom-senso de controlar a adrenalina que pode ser decisiva no processo de chegar ao trono mas costuma ser letal depois da coroação.

Adrenalina ou delírio onipotente, a verdade é que o governo desperdiçou mais da metade deste mandato e antes mesmo de arrancar para uma nova fase o Campo Majoritário do PT parece ainda intoxicado pelos mesmos e perniciosos agentes.

Quando Dirceu e Genoíno denunciam uma campanha de desestabilização promovida pela oposição e Marta Suplicy deblatera contra o ‘macartismo’ apenas exibem a desgastada estratégia da ‘eleição permanente’ e da ‘guerra continuada’. Por enquanto ainda não apareceu o desvairado de plantão para acusar a Justiça Eleitoral de programar a propaganda eleitoral do PSDB para a noite de quinta-feira quando o PT deveria anunciar o contra-ataque. Aparecerá.

A oposição e principalmente o PSDB, erraram ao insistir no nome do senador César Borges (PFL-BA) para presidir a CPI dos Correios. Ao escolher um afilhado do suspeitíssimo e decadente senador ACM para presidir um inquérito sobre corrupção demonstraram não possuir qualquer sensibilidade política e senso crítico. Queriam apenas forçar a imagem da ‘operação-abafa’.

Ninguém está berrando ‘Fora Lula !’ como aconteceu nos dois mandatos anteriores quando o mesmo ‘macartismo’ agora denunciado por Marta Suplicy levava a militância às ruas para berrar ‘Fora FHC !’. Não será desta forma que o deputado José Dirceu e o Campo Majoritário do PT conseguirão reverter ou disfarçar os reveses das últimas semanas.

Desfalcado da eminência rubra e com as eminências cinzas (ou pardas) reunidas em assembléia, o presidente Lula deverá valer-se da sua proverbial intuição para tomar decisões cruciais que tornam quase irrelevante a substituição de José Dirceu. A mais importante será provar que acabou a fase das eminências.’



Mino Carta

‘Quando a esquerda é necessária’, copyright Carta Capital, 21/06/05

‘A mídia quer desestabilizar o governo, demolir o PT e preparar o retorno dos tucanos. Esquece a conveniência da mediação com um povo tão injustiçado

Os donos da mídia nativa não nutrem maior simpatia uns pelos outros, cultivam, porém, interesses comuns e se unem quando os consideram em xeque. Há décadas e décadas de exemplos destas alianças, logo desfeitas quando passa o perigo.

Não é que, encarada a ameaça, costumem sentar-se à mesma mesa para definir planos de batalha. De hábito agem como orquestra afinada sem precisar de pauta e maestro. Movem-se, automaticamente, em perfeita sintonia, porque todos prezam o status quo, o bem-bom do establishment, e não medem esforços para mantê-lo intocado.

Desta vez, diante das denúncias de um Jefferson nada jeffersoniano, parece esboçar-se alguma alteração nos comportamentos usuais. Correm rumores de encontros entre os senhores da comunicação, e até informações precisas sobre tertúlias de confraternização. Talvez novo capítulo esteja a ser escrito na história do jornalismo pátrio.

O risco tem origem antiga, nasce no fim da década de 70, nas greves do ABCD paulista, tempo em que Lula presidia o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema. Primeiro, testou-se ali uma geração de líderes operários distantes da tradição pelega. Depois, brotou a idéia de um partido de esquerda, autenticamente popular.

O projeto não desagrada o Richelieu do Planalto, o general Golbery do Couto e Silva, cuja reforma partidária visa a estilhaçar a oposição emedebista, cada vez mais eficaz sob a batuta de Ulysses Guimarães. Os mais radicais do MDB, calcula o general, irão para o PT. Os liberalões para o PP de Tancredo. Os iludidos para o PDT de Leonel Brizola. No meio, linha auxiliar, o PTB, entregue de bandeja a Ivete Vargas.

O plano não deu certo. Com as bombas do Riocentro e a preponderância no governo Figueiredo do general Octavio Medeiros, Golbery demitiu-se e seu sucessor, Leitão de Abreu, introduziu na receita as suas trapalhadas. Tancredo voltou à casa paterna, agora PMDB, enquanto o PT crescia. A ponto de concorrer, com Lula candidato contra Fernando Collor, na reta final das primeiras diretas presidenciais pós-ditadura.

A mídia uniu-se contra o petista e não hesitou em apoiar o outsider atrabiliário. Contra Lula, resistente tenaz, cinco anos após o establishment aceitou Fernando Henrique Cardoso, que temia em odor de esquerdismo e descobriu ser o homem do seu destino. De sorte que na reeleição comprada com o ‘propinão’, engoliu o maior engodo eleitoral de todos os tempos. Reeleito à sombra da bandeira da estabilidade, FHC desvalorizou o real exatos 12 dias depois da posse. E quebrou o País.

Em 2002, preces, contribuições e apoio foram para o candidato de FHC, apontado depois do pleito como primeiro responsável pela derrota, em virtude, dizia-se, de sua semelhança com o Conde Drácula e imitadores. Estranhamente, José Serra, hoje prefeito de São Paulo, é apontado pelas pesquisas como o preferido dos eleitores entre os possíveis aspirantes tucanos à Presidência em 2006.

Quem perdeu há três anos foram mesmo o príncipe dos sociólogos e sua desastrada política econômica. O que não impediu, para tristeza dos sonhadores da mudança, a repetição da mesma rota por parte de Palocci e Cia.

Ecoa no panorama o aviso sinistro de FHC, pronunciado há dois meses: não sou candidato, declarou, mas poderia ser em caso de crise gravíssima. Profeta ou mensageiro? Estrategista? Titereiro? Certo é que a manobra desenvolvida nestes tristes dias pela mídia chega a ofuscar: trata-se de desestabilizar o governo e de preparar o terreno para a desforra tucana.

Trata-se de solapar a autoridade de Lula, como se, em vez de derrubar a estátua, o objetivo fosse destruir-lhe o pedestal. No ataque há açodamento, embora temperado pela postura cautelosa de quem percebe a longa distância que ainda nos separa da próxima eleição. Os próprios vigias instalados no topo dos mastros da nau dos senhores não têm olhos para outros riscos, amoitados no horizonte.

Uma crise gravíssima, além de atingir o mercado financeiro e o câmbio, com conseqüências imprevisíveis sobre a situação econômica e social, tende a favorecer o populismo. A promessa messiânica da redenção impossível. Digamos, candidaturas à la Garotinho.

Por outro lado, há o toque da irresponsabilidade, a visão medieval, na campanha feroz. No País vice-campeão mundial em má distribuição de renda, um partido de esquerda (seria mesmo o PT de hoje?) e uma CUT e um MST da vida representam a mediação necessária junto ao povo infeliz, em larga parte privado da consciência da cidadania. Seria lamentável a perda de um intermediário tão ativo e pontual quanto já foi o PT.

Não há outro lugar no mundo em que a injustiça social atinja proporções tão imponentes. Os donos do poder sempre apostaram na resignação do povo, que chamam de cordialidade. Apostaram na herança da escravidão. É verdade, não há sinais de fumaça, iguais àqueles que se erguem nas alturas rochosas dos domínios apaches dos filmes do Oeste selvagem. Mas vale perguntar: até quando?’



Dalmo de Abreu Dallari

Não há provas para que Lula seja investigado pelo mensalão‘, copyright Revista Consultor Jurídico (www.conjur.com.br), 19/06/05

‘É lição da história que quando as ambições políticas são exacerbadas, ou pela ambição de ocupar os cargos de mando, pelo prestigio social ou pela sensação de poder que isso proporciona, ou ainda pelo proveito pessoal que poderá ser tirado da situação de poder, o bom senso, a racionalidade e o respeito pelos interesses gerais são substituídos pela leviandade ou pela cegueira moral e intelectual. O Brasil está vivendo agora uma dessas situações.

A ditadura militar implantada no país em 1964 com a participação ativa das elites econômicas e sociais favoreceu a prática de violências e de corrupção, a tal ponto que algum tempo depois muitos de seus apoiadores passaram a sofrer os efeitos negativos do sistema arbitrário. Houve, então, uma associação das vitimas da primeira hora, pessoas e organizações das camadas mais humildes da população, cujas reivindicações tinham sido taxadas de ‘perigo comunista’ para justificar o golpe militar, com pessoas e organizações das elites tradicionais, que já não queriam a ditadura militar e decidiram dar apoio as camadas populares, onde estava a vanguarda resistência, para juntos lutarem pela reimplantação de uma ordem inspirada nos princípios democráticos. A rememoração dessa historia recente é necessária para que se entenda a lógica da tentativa de enquadrar o presidente da República em crime de responsabilidade.

Restabelecida a normalidade constitucional no Brasil e reiniciadas as disputas eleitorais, surgiram vários partidos de esquerda, ganhando muito expressão o Partido dos Trabalhadores, expressão político-eleitoral dos movimentos de resistência e de reivindicação de operários. Foi por essa legenda que se candidatou à Presidência da República e foi eleito por ampla maioria popular, em eleição regulares que não sofreram qualquer contestação, o principal líder operário Luiz Inácio Lula da Silva, sucedendo Fernando Henrique Cardoso, professor universitário aposentado e adepto do neoliberalismo, linha que implantou em seu governo, inclusive patrocinando trinta e cinco emendas à Constituição, promovendo privatizações de setores básicos da economia brasileira, entre eles as telecomunicações, setor da energia elétrica e mineração do ferro.

Essas privatizações foram efetivadas num ambiente de muita corrupção, noticiada com minúcias pela grande imprensa, revelando fatos e nomes de altas personalidades envolvidas como a participação do presidente do BNDES na criação de um consórcio para ganhar uma das licitações e o financiamento, com dinheiro público, de compras de empresas privatizadas.

A par disso, outra farsa foi minuciosamente noticiada; uma empresa que valia 500 foi avaliada em 50 para efeito de licitação e acabou sendo vendida por 100, o que foi anunciado com grande estardalhaço como se tivesse havido uma grande vantagem, obtendo-se na venda um ágio de cem por cento. Coroando esse processo, foi efetuada uma emenda constitucional que permitiu a reeleição de Fernando Henrique Cardoso, sendo ampla e minuciosamente divulgada pela grande imprensa a ocorrência de corrupção na compra de apoio de parlamentares para essa emenda.

Como foi notificado com pormenores, o grande comprador de votos de parlamentares foi o então Ministro, agora já falecido, Sérgio Motta. Um grupo de juristas sem vinculação partidária, pretendendo que se aplicassem os dispositivos constitucionais que previam a punição dos corruptos, fez uma representação ao presidente da Câmara de Deputados, Aécio Neves, que usou as prerrogativas de seu cargo para jogar no lixo a representação, embora os fatos e nomes fossem conhecidos, tendo-se tornado públicos e notórios pelo minucioso noticiário de imprensa.

Embora uma falta não possa nem deva ser tomada como pretexto para a justificativa de outra, a lembrança desses antecedentes é importante para a avaliação da pretendida intenção de promover a cassação do mandato do atual presidente da República ‘por não ter promovido a responsabilidade de altos servidores federais envolvidos em corrupção’.

A base legal para essa proposta seria o fato de que um político, o governador de Goiás, Marconi Perillo, havia levado o fato ao conhecimento do presidente e este nada teria determinado para a punição dos responsáveis. Pelo que tem sido noticiado ultimamente com ares de escândalo, o governador de Goiás, que é membro de partido que faz oposição ao governo, fez um comentário ‘por ouvir dizer’ sem oferecer qualquer elemento de prova e sem assumir a responsabilidade por sua denuncia. Essa atitude é agora confirmada por declarações do governador Marconi Perillo publicadas no jornal ‘O Estado de S. Paulo’ de 9 de junho, página A6, onde aparecem entre aspas, sendo, portanto, textuais, as seguintes palavras do governador, referindo-se aos fatos por ele denunciados: ‘Não tenho provas’.

Evidentemente, seria irresponsável iniciar qualquer procedimento visando promover responsabilidades com base num comentário verbal, sem nenhum elemento concreto que pudesse servir, ao menos, de início de prova. Nenhum juiz honesto e imparcial admitiria a existência de base legal para uma investigação fundada apenas num comentário verbal, sem nenhum responsável pelas denuncias e com toda a possibilidade de se tratar de mera intriga entre adversários, muito comum no ambiente político brasileiro.

Lamentavelmente, o Brasil está presenciando mais um espetáculo de comédia política, em que políticos de reputação duvidosa aparecem, com apoio da imprensa, como pilares da moralidade política e da legalidade. O mais grave disso tudo é a desmoralização da instituições, pois muita gente reage com indignação ao baixo nível dos confrontos políticos e poderá ser levada a concluir que o fechamento do palco dos comediantes poupará despesas inúteis e não fará falta para defesa dos verdadeiros interesses do povo.’



Alcione Araújo

‘Quando a encenação soberba queima o filme ‘, copyright O Estado de S. Paulo, 19/06/05

‘Roberto Jefferson, o homem que com palavras e sem provas abalara as estruturas políticas da Nação, irrompeu na sala do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados com tal altivez que impôs à platéia um silêncio pasmo. Acusado de enxovalhar a honra de parlamentares, querem cassar-lhe o mandato – é um réu. O desavisado é tomado pelo orgulho cívico diante do Conselho, supostamente habituado com os labirintos da sutil ciência da ética e preparado para julgar com isenção os desvios dos próprios pares. Em cada um, a gravidade da conduta ilibada, sem dúvidas morais e carreiras sem máculas. A pátria será salva.

‘Senhor presidente’ – o réu improvisa sua defesa com voz firme – ‘senhores deputados, cidadãos do Brasil que me ouvem…’ A tensão não abala a confiança: gestos serenos, encara a platéia com olhar duro. ‘Inicio meu depoimento agradecendo ao deputado Valdemar Costa Neto, presidente do PL, pela oportunidade que me deu de falar ao Brasil.’ Se surpreende a firmeza do réu, espanta a ironia com que se dirige ao deputado que quer cassá-lo: ‘O ódio que V. Exa. tem vituperado nas TVs, vou devolver com serenidade; a hipocrisia que tenho ouvido de V.Exa. nas TVs, vou devolver com sinceridade’.

Difícil entender: o réu agradece ao desafeto? De que remotas vivências viriam as reservas de dignidade que, nas circunstâncias, explicariam o ar superior? Gotas de suor crescem na fronte do acusador, que masca chicletes – único movimento na sala muda. O réu mostra que sabe usar as palavras e, sobretudo, as pausas – deixa a platéia em suspense pelo tempo exato; a cada idéia que quer valorizar, imobiliza gesto e olhar, e mantém o silêncio: ‘Não corro, não temo; haverei de enfrentar cada passo, cada momento desse processo, que vai longe. Começa aqui e deságua na CPI dos Correios e do Mensalão’. O réu ameaça, o Conselho se cala. O homem que parou o país assusta os de moral ilibada? Ousado, desafia: ‘Não renuncio ao meu mandato, vou com ele até o fim, apesar de não ser o mais importante a defender aqui. Há coisas acima do mandato, que não abro mão’. Se a perda do mandato não o intimida, a pena máxima não o ameaça. Se ele se põe acima do mandato, o Conselho, que julga desvios éticos, não o alcança. O tribunal ficou aquém do réu.

Cresce o interesse pelo instigante réu. Numa guinada espetacular, ele salta da condição de réu, citado no flagrante de corrupção filmado nos Correios, para a de acusador, em legítima defesa, da corrupção do mensalão. Ataca com pureza ética e bravura de paladino. Seu passado cheira mal, seu partido transita nas sombras e ele foi guarda-costas de Collor, que deve tê-lo atraído aos rasgos teatrais – mas, que diabo, os homens mudam, há os que se redimem; colloridos ocupam respeitáveis postos da República, e seu fogo tem alvo certo. O país acompanha suas palavras, gestos, olhares, pausas e respiração. Compartilha sua angústia, sofre seu drama, sente suas emoções, identifica-se com ele. Assim como o Conselho, que, mesmo na nova condição de suspeito, está fascinado com a coragem do acusador, que assume o papel de mártir e faz sua auto-incriminação. E, súbito, me dou conta de que – vício do ofício – eu próprio me envolvera na audiência como me rendo a um espetáculo teatral. Talvez a expectativa, grávida de esperança com os rumos do País, reunira emoções dispersas que eclodiram numa catarse. Restauro a realidade como quem junta os cacos do espelho que Shakespeare queria como palco.

A passagem de réu a acusador, de acusador a vítima, de vítima a mártir – estrutura típica da dramaturgia de manipulação – desvelou o espetáculo sob aquela audiência. Antes de deputado e líder do PTB, Roberto Jefferson é ator, com ambição a cantor lírico. Rosto expressivo, diabolicamente versátil, passa sem transição do choroso ao irado, do atormentado ao contemplativo, do irônico ao indulgente, do arrependido ao eufórico. Gestos definidos apóiam as intenções, olhar frontal que inibe, palavras contundentes, voz poderosa, pausas precisas. Não poupa nem o velho aparte teatral. Rompe a cena, dá recados insolentes: ‘Zé, se você não sair daí rápido, vai fazer réu um homem decente como o presidente Lula’.

Nas cenas a dois tem desempenho soberbo. Com V.C. Neto, que, suado, aflito, gesticulando como polvo, lê aos berros seu papel, Jefferson encara-o imóvel, até ele exigir: ‘Quem são os deputados do PL que recebem o mensalão?’ Jefferson: ‘V. Exa. recebe’. V.C. explode: ‘Eu sabia que V. Exa. viria desmoralizar esta casa’. Jefferson: ‘Esta casa, não: o senhor’. Exasperado, o deputado Sandro Mabel fica de pé, bradando pífios argumentos. Queixo na mão, Jefferson acompanha quieto, tal como Marlon Brando no Poderoso Chefão, ciente de que o poder é sereno, não ergue o corpo nem a voz, como reis, papas, caciques e juízes. Políticos denunciam o uso dos recursos teatrais – diante da platéia, que é real, o artista se empenha para tornar verdadeira a personagem que não existe; já o político quer tornar personagem a pessoa que é real. Jefferson é um ator em busca de personagem – passa de uma situação a outra, segundo as conveniências, e convence em muitas delas. Porém, exibida inconclusa, sua obra deixa os andaimes à mostra e, ao reconstituir seu trajeto, o que liga aquelas caras é o mais glacial cinismo.

Finda a audiência, não se disseram tantas novidades – o teatro não tem sofreguidão pelo novo -, mas se disse o que nunca foi ouvido – o teatro serve à denúncia. Bom ator, Jefferson deve ser cínico – superior a seus pares porque é inteligente e informado, corajoso e convincente. Talvez não tenha dito a verdade, mas é verossímil o que disse – para o teatro basta. Sua performance polêmica – elogio para o teatro – perturbou os membros do Conselho de Ética da Câmara – reserva moral da Nação,não sabia se o desqualificava ou o admirava, se o glorificava ou destruía. Instalou-se o medo. Quem entrou como réu saiu paladino da moral. Numa Câmara que extrai cardeal do baixo clero, Roberto Jefferson pode fazer papel de papa. (Alcione Araújo é dramaturgo,roteirista de cinema, romancista e filósofo. Seu mais recente livro é Urgente é a Vida (Record))’



Carlos Chaparro

‘É hora de assumir o poder da elucidação’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 17/06/05

‘O XIS DA QUESTÃO – O acesso fácil e amplo às modernas tecnologias de difusão, que permitiu a Roberto Jefferson sacudir a Nação sem a intermediação jornalística, é face de um tempo em que os itinerários da notícia já podem excluir as redações. Tempo, portanto, de enfraquecimento do jornalismo, no seu poder de arbítrio sobre a notícia. Mas que o fortalece como espaço público de compromissos éticos e linguagem confiável de elucidação. É preciso, porém, que as redações não cedam, aos produtores dos fatos, o espaço da elucidação – que não lhes pertence nem lhes é devido.

1. Safadeza ou idealismo?

A crise em que o país mergulhou contém tais complicações, nas causas como nas conseqüências, que nem os mais conceituados colunistas do ramo conseguiram até agora tocar-lhe o âmago. Os comentários que tenho lido são superficiais, com incursões de curto alcance, tanto no mergulho aos antecedentes quando na construção de argumentos que nos ajudem a olhar à frente. Ao menos, por enquanto, a pauta jornalística está tomada apenas pela contundência e pelo nervosismo dos fatos.

Ao dar fôlego e temperatura aos desdobramentos factuais dos conflitos desta crise, o jornalismo assume bem a função de espaço público das contendas. Mas ainda não as elucida. Pelo menos neste caso, nada elucidou até agora..

Assim, a crise se expande sem que o jornalismo tenha exercitado o verdadeiro poder que detém, nos jogos democráticos em que se insere – o poder de ser linguagem eficaz e credível para a elucidação dos conflitos que movem a atualidade. Um poder, diga-se de passagem, com enorme capacidade de produzir transformações.

Como tudo é ainda muito recente, e além de recente, complicado, há que ter paciência e compreensão. Numa crise cabeluda como esta, em que a ala incendiária está apenas interessada no ‘quanto pior, melhor’, e os mais sérios evitam imprudências no dizer de coisas noticiáveis, a estratégia jornalística enfrenta enormes dificuldades. Mas é preciso que as redações não cedam, aos produtores dos fatos, o espaço da elucidação – que não lhes pertence nem lhes é devido.

Como por enquanto nos falta o material jornalístico da elucidação, só daqui a algum tempo saberemos se a operação montada por Roberto Jefferson foi honesta ou desonesta, e se o gigantesco trauma produzido nas instituições políticas prejudicou ou beneficiou o país. Precisamos esperar que a perplexidade passe e que a sabedoria do tempo nos revele se o que preponderou, no dito e no feito pelo presidente do PTB, ante a Comissão de Ética, foi o veneno da safadeza ou a coragem do idealismo.

2. Na cabeira da notícia

Os fatos, porém, têm sempre a eloqüência de argumentos irrecusáveis. E a verdade é que Roberto Jefferson realizou um feito e tanto. Exerceu o poder extraordinário de falar simultaneamente a milhões de pessoas, e o fez de forma convincente. Moveu mentes e as razões do pensar, para efeitos que nem ele próprio poderia controlar. O Brasil político existente antes do explosivo depoimento sofreu imediata e complicada desorganização. Que agora exige profunda reorganização – e esse terá sido o mais importante ganho gerado pela crise.

Para realizar ação política de tal poder transformador, Roberto Jefferson usou o espaço e o tempo do jornalismo, mas não precisou dos jornalistas. O acesso fácil e amplo às modernas tecnologias de difusão, que permitiu a Jefferson falar à Nação sem a intermediação jornalística, é face de um tempo em que os itinerários da notícia já podem excluir as redações.

Essa é uma outra crise, que nos envolve diretamente, mas que, estranhamente, alguns colegas ainda não perceberam. Crise que enfraquece o jornalismo, no seu poder de arbítrio sobre a notícia. Mas que o fortalece, extraordinariamente, como espaço público de compromissos éticos e linguagem confiável de elucidação.’