Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Alberto Dines

‘Já percebemos a sua intensidade, reconhecemos o barulho, sentimos a sua persistência mas ainda não conseguimos identificar a natureza e as dimensões do atual confronto. Uma coisa é certa: somos parte dele.

Gradual e inexoravelmente deixamos de ser circunstantes mais ou menos distantes, testemunhas mais ou menos interessadas e começamos a perceber que esta crise é bem maior do que uma disputa entre partidos pela conquista do poder. Não se trata de um exercício pré-eleitoral, muito menos de uma queda de braço entre ‘primos’ ideológicos. O embate envolve toda a família política e começa a mexer na estrutura institucional.

O furacão está ai, a ilusão de que a sua duração é limitada serve apenas para disfarçar o implacável ciclo de devastação que se segue ao furor dos ventos. Esta crise avolumou-se justamente porque aqueles inicialmente convocados para gerenciá-la não avaliaram o seu potencial destrutivo. Pecado mortal dos bombeiros é minimizar a extensão do incêndio. Melhor ser pessimista preventivamente do que otimista no meio da queda.

Não se trata apenas de formalizar a cassação do deputado José Dirceu: ele perdeu o seu mandato a partir do momento em que a Câmara tirou o de Roberto Jefferson. A ilicitude do corrompido é igual à do corruptor, não fosse assim o publicitário Marcos Valério estaria dormindo tranqüilamente.

O guilhotinamento político do ex-ministro da Casa Civil lembra o inútil embate entre Danton e Robespierre em pleno Terror. Ambos foram abatidos e junto com eles esgotou-se o furor revolucionário. Por mais talentoso e aguerrido que seja o deputado, ele não é o problema – é a sua conseqüência.

As linhas de abastecimento do valerioduto começam a ser desenterradas, algumas partem dos paraísos estatais (aqui mesmo) e, outras, dos paraísos fiscais (no exterior). O mapeamento completo destes vasos comunicantes é tarefa que levará anos, transcende aos prazos de uma ou mais CPI’s. É tarefa do Estado mas o Estado brasileiro não tem maturidade e, reconheçamos, não tem quadros capazes de sobrepor-se aos interesses pessoais ou partidários para tocar um saneamento destas proporções.

As denúncias de ‘grampeamento’ dos telefones de parlamentares fazem parte do grande desarranjo institucional desta originalíssima República sem republicanos, implacável devoradora valores básicos. Moralidade tornou-se antiqualha, ética virou moda, decoro tornou-se peça decorativa, agora assistimos à ruína da compostura e da civilidade. Falta pouco para a instalação do vale-tudo.

Num mundo em tensão, carente de referências e lideranças, qualquer faísca acende um tremendo fogaréu. A tensão que precede a cúpula das Américas tem origem na mesma timidez (ou tibieza) que desde o início da atual crise política confina o governo num canto do ringue.

Hugo Chávez é oriundo das catacumbas políticas, Gaddafi tropicalizado. Seus interlocutores brasileiros (exceto talvez José Dirceu quando brevemente incursionou no campo da diplomacia) não se deram conta de que o caudilho venezuelano sonha apenas em substituir Fidel Castro e converter-se no paladino anti-Bush da América Latina. Está em vias de consegui-lo e, de quebra, colocar o Brasil na inconfortável e imerecida condição de queridinho da Casa Branca. Graças à ambigüidade (ou indeterminação) dos formuladores e operadores da nossa política externa que não enxergaram sua esperteza. Ou não tiveram a esperteza para desativá-la.

Em qualquer esfera desta crise, o diagnóstico é o mesmo: falta competência, ou pulso, ou ousadia ou, simplesmente, inspiração para ser grande. Quando o tiroteio é no escuro, seria mais seguro que os atiradores fossem profissionais.’



Kennedy Alencar

‘Reeleição será dolorosa, diz o chefe-de-gabinete de Lula’, copyright Folha de S. Paulo, 7/11/05

‘Chefe-de-gabinete de Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio do Planalto, Gilberto Carvalho conta que o presidente ficou ‘magoado’ com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ‘quando percebeu’ que o tucano ‘começou a tirar proveito na crise como alguém interessado em aprofundá-la’. Na primeira entrevista em quase três anos de governo, Carvalho, 54, disse à Folha na última sexta-feira que Lula tem interesse num ‘diálogo verdadeiro’ com a oposição, no qual se ‘definam as armas da batalha com clareza’ para a eleição de 2006.

Amigo e um dos mais importantes auxiliares do presidente, com quem trabalha desde 1984, Carvalho acredita na reeleição, mas diz: ‘Será doloroso’.

O chefe-de-gabinete afirma ter ‘convicção’ de que o presidente não sabia do caixa dois de Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT.

Repete que nunca levou dinheiro para Dirceu, como acusam irmãos de Celso Daniel, prefeito petista de Santo André morto em 2002. Desconfia que os irmãos de Daniel o atacam por ele discordar da tese da família de que há um ‘mandante’ e acreditar em ‘seqüestro comum’, como concluiu a Polícia Civil paulista. Seguem os principais trechos da entrevista:

Folha – Por que há tantos acusados de corrupção em prefeituras do PT?

Gilberto Carvalho – O PT nasceu com proposta ética renovadora. Quando vira partido de massas, é natural haver processos em que se corrompam pessoas que vêm de uma idoneidade e militância. Todo processo humano tem isso. A diferença do PT é que historicamente combate seus erros e os reconhece em público.

Folha – Dois irmãos de Celso Daniel citam seu nome e detalhes, como oferta de bolo de aipim, em uma conversa na qual o sr. teria dito que levou dinheiro para [o deputado petista] José Dirceu. Um ex-assessor de [Antonio] Palocci [ministro da Fazenda] fala que havia financiamento das prefeituras do PT para o partido. Não é razoável acreditar que é verdade?

Carvalho – É razoável acreditar em acusações que consigam apresentar provas com fundamento. Não disse que levava dinheiro ao Zé Dirceu porque nunca levei dinheiro ao Zé Dirceu.

Folha – Por que eles o acusam?

Carvalho – Durante a vida do Celso Daniel, eles tiveram um distanciamento efetivo do irmão. Mesmo após a morte, quem cuidou do Celso fomos nós, o partido. Durante 60 dias, a família ficou absolutamente omissa. Só quando a Polícia Civil concluiu o inquérito, a família começou a se movimentar, na medida que a investigação não atendeu a um prejulgamento que tinha. […] Criaram uma tese e não se conformaram que os fatos não a atendiam.

Folha – Qual tese?

Carvalho – A tese de que o Sérgio Gomes [da Silva, que estava com Daniel na hora do seqüestro e foi apontado pelo Ministério Público como o mandante do crime] e outras pessoas eram mandantes do assassinato.

Folha – Qual é sua opinião sobre o crime?

Carvalho – A do último relatório da Polícia Civil de São Paulo: seqüestro comum. Não há indicação de que houve mandante. Qualquer fato diferente que surgir, estarei aberto.

Folha – O governo disse ser ‘fantasiosa’ a hipótese de Cuba ter dado dinheiro à campanha de Lula. O ‘mensalão’ e o dólar na cueca [do petista José Adalberto Vieira da Silva, preso com R$ 200 mil numa mala e US$ 100 mil sob a cueca] não soaram fantasiosos no princípio e se confirmaram?

Carvalho – Considero fantasiosa a história de Cuba. Outros eventuais erros já admitidos não significam que são verdadeiras todas as acusações contra nós. Tudo que se fala contra o PT e o governo passa a ser verdade automática. É importante que a imprensa e os cidadãos tenham critérios, sob pena de cometer injustiça. O ‘mensalão’, nos termos da acusação inicial do [deputado cassado] Roberto Jefferson [PTB-RJ], não está provado.

Folha – Versão de bastidor dá conta de que Lula se sente traído por Delúbio, que teria sido alçado ao comando petista por não confiar em Dirceu. Delúbio, porém, teria se aliado ao ex-ministro e traído Lula. É verdade?

Carvalho – A versão verdadeira é que Delúbio ganhou autonomia e tomou iniciativas que não eram de conhecimento do presidente e que não ganhariam jamais respaldo do presidente. O resto são ilações. Dirceu não pode virar bode expiatório.

Folha – Por quem o presidente se sente traído?

Carvalho – Por aqueles que faltaram com a verdade, que tiveram posturas que colocaram o governo nessa crise.

Folha – Delúbio é traidor?

Carvalho – Prefiro evitar a palavra traidor. Tem um juízo de intencionalidade moral que não sei se mobilizou o Delúbio. Acho que o Delúbio errou gravemente. Está sendo punido por isso.

Folha – Como é possível que o presidente não tenha sabido do esquema Marcos Valério-Delúbio, se o ex-tesoureiro viajava com ele, freqüentava o gabinete e segurava até cigarrilha quando ele não queria ser gravado ou fotografado fumando?

Carvalho – Com toda a intimidade que tenho com o presidente, tenho absoluta convicção de que em nenhum momento o Delúbio o informou das relações com Marcos Valério e dos procedimentos que adotava. De fato, o presidente tinha amizade com Delúbio. A relação do Marcos Valério com Delúbio começou no final da campanha de 2002, quando o presidente estava preocupado em se eleger e depois com o governo. As informações que o presidente recebeu eram de que a campanha tinha recolhido fundos para ser quitada integralmente. Nunca entrou em detalhes.

Folha – O sr. faz a agenda de Lula. Houve algum encontro dele com Valério, um telefonema?

Carvalho – Lula conhece Marcos Valério por fotografia. Soube da existência dele a partir da entrevista do Roberto Jefferson. Nunca se falaram por telefone ou se viram pessoalmente.

Folha – O que Lula fala de Valério?

Carvalho – Que é muito impressionante uma pessoa que não tinha nenhuma relação com o PT ter recebido um poder e a possibilidade de tamanho trânsito no partido e entre nossos dirigentes.

Folha – E de Delúbio?

Carvalho – Que cometeu erros muito graves que nos levaram a uma crise indesejada. Mas faz uma ressalva: acha que ele não fez apropriação de dinheiro para si, não se locupletou.

Folha – Lula acha que Dirceu cometeu erros? Afinal, o ministro deixou a Casa Civil.

Carvalho – O presidente concordou que o Zé Dirceu saísse porque as condições políticas que se formavam conduziam a essa saída. Não se pode atribuir a Zé Dirceu os erros do Delúbio. É um erro achar que Delúbio agia sob orientação do Zé Dirceu.

Folha – Foi Lula quem pediu para Dirceu sair ou Dirceu que pediu para ir embora?

Carvalho – Foi um processo de discussão. Um momento tenso. Dirceu oscilava entre sair e ficar. O presidente também tinha dúvidas. Houve acordo.

Folha – Como Lula reage quando surgem acusações?

Carvalho – No caso Cuba, foi diferente das demais. Como era muito folclórica, muita falta de base na realidade, reagiu com muita indignação. Viu como peça de acusação política. É diferente de uma acusação como essa da Visanet [de que dinheiro público do Banco do Brasil teria abastecido o ‘valerioduto’] e outras. Fica preocupado e rapidamente quer saber o que aconteceu, quer investigações. Se for comprovado algo, as pessoas serão punidas.

Folha – Por que relatórios do governo de transição não geraram apurações contra o PSDB?

Carvalho – O processo de transição nos induziu a ter muito mais preocupação com a economia. Era de tamanha grandeza a tarefa que tínhamos que não podíamos gastar energia naquele momento olhando para trás. O presidente disse que deveríamos olhar para a frente.

Folha – No PT, há quem argumente que, se suspeitas do governo FHC tivessem sido investigadas, o partido não seria acusado de ter montado a maior rede de corrupção da história.

Carvalho – Pode ser que o partido tenha sido prejudicado, mas o país saiu ganhando. Não posso dizer que foi um acerto pleno, mas foi uma atitude mais madura. A respeito da acusação de que o PT promoveu a maior corrupção da história, com o passar do tempo, ela ganhará sua devida proporção. Não é verdade.

Folha – O que o sr. diria para as pessoas que acreditaram na seriedade ética do PT e agora o vêem envolvido em corrupção?

Carvalho – O presidente, os ministros e as pessoas do governo são gente da maior seriedade. Dedicam-se ao país. Nosso projeto não será sepultado. Continuo acreditando na reeleição do presidente. Sairemos desse processo purificados. A imagem do PT será reconstruída. Não tenho ilusão, vai demorar muito.

Folha – Será difícil a reeleição.

Carvalho – Não será fácil. Será doloroso.

Folha – O que Lula e o PT dirão aos eleitores em 2006?

Carvalho – O grande discurso será o da nossa ação. No momento em que pudermos mostrar ao povo brasileiro os detalhes de tudo o que realizamos, não tenho dúvida de que venceremos.

Folha – Há versões de que Lula manda muito e de que nada é feito no governo sem o seu aval. Há outra versão de que só viaja, delega a Palocci a economia e, recentemente, delegou a gestão administrativa a Dilma [Rousseff, ministra da Casa Civil].

Carvalho – A verdade está muito mais na primeira. Viajar e estar em contato com o povo é um combustível essencial na vida dele. As viagens internacionais o enchem de entusiasmo. A história vai avaliar melhor o significado do governo Lula para a posição do Brasil no mundo. O Lula chama os ministros permanentemente para dar dura.

Folha – Como é o dia de Lula?

Carvalho – Ele acorda muito cedo, por volta das 5h30. Faz esteira entre as 6h e as 7h. Fazia caminhada antes, mas diz que a esteira mantém um ritmo. É comum ele dizer: ‘Hoje dei um show na esteira’. Faz a leitura dos jornais e toma café. Sai da Granja do Torto para cá [Palácio do Planalto] por volta das 8h45. Às vezes, atende alguém lá e dá uns telefonemas. Faz reuniões em série até as 13h. Tem despacho fixo semanal com a Coordenação de Governo e despachos diários com a ministra Dilma. Depois, faz reuniões temáticas. Pára para almoçar entre as 13h e as 13h30. Na grande maioria das vezes, almoça na Granja do Torto. Nós o induzimos a evitar o almoço aqui para ter um mínimo de respiro. A agenda da tarde combina despachos internos com atendimentos externos. É comum receber presidentes de empresas. Recebe sempre informações antes de atender uma pessoa. É um trabalho muito bem-feito pela assessoria coordenada pela Clara Ant. Todas as reuniões têm uma ata. Há um digitador com um computador. É comum ele pedir a ata da reunião anterior para cobrar. Raramente recebe individualmente um parlamentar, salvo lideranças e presidentes de poder. Normalmente, o dia acaba lá pelas 21h. Raramente antes. É comum ir até as 22h30.

Folha – No almoço, o presidente faz a sesta?

Carvalho – Tem tentado, mas normalmente não tem dado. Ele reclama. Dez ou quinze minutos o deixam de novo em forma.

Folha – Houve momento em que o sr. pensou em sair do governo?

Carvalho – Perguntei a ele [Lula], quando comecei a ficar muito exposto nessa história de Santo André, se era conveniente a minha permanência. Ele me mandou ficar onde eu estava.

Folha – Qual foi o momento mais duro para o presidente nesses meses de crise?

Carvalho – O presidente teve muitos momentos de tristeza e preocupação. Me recordo especificamente da sexta-feira em que teve aquele episódio do rapaz que tentou levar dólares para o Ceará [na cueca]. Foi um dos momentos em que o vi mais quebrado, mais decepcionado, mais triste.

Folha – O que ele fez e disse?

Carvalho – Abaixou a cabeça, colocou as mãos no cabelo e disse: ‘Não é possível. Parece um pesadelo. O que está acontecendo?’. Por outro lado, em meses de crise o governo não ter ficado parado e o apoio à sua popularidade ter se mantido consistente, apesar de menor, dá a ele muita força. Não vi em nenhum momento sinal de jogar a toalha. É um leão.

Folha – Há versão de que ele se incomoda com os ataques da oposição, mas mais com os de FHC. O que ele achou do comportamento de FHC durante a crise?

Carvalho – Evidente que incomoda. O tempo todo ele procurou manter relação de cordialidade com o ex-presidente. Nunca estimulou ataques. Só ficou magoado quando percebeu que FHC começou a tirar proveito na crise como alguém interessado em aprofundá-la. Achou indevido. Disse que não podia jogar lenha nesse tipo de fogueira.

Folha – Há articulação de diálogo com a oposição?

Carvalho – O presidente está interessado num diálogo verdadeiro, em que se definam as armas da batalha com clareza e fique fora tudo aquilo inadequado para uma disputa civilizada. Mas diz: ‘Para a gente fazer a paz, não dá para a gente só receber pancadas e ficar quieto. Tem de reagir’.’



Ricardo Melo

‘Mídia é pior que a Inquisição, diz Marilena Chaui ‘, copyright Folha de S. Paulo, 5/11/05

‘A filósofa Marilena Chaui, 63, não tem dúvidas: a crise que corrói o governo Lula é encomendada e teve como gatilho o trabalho de um jornalista especializado em vender dossiês. Tudo isso amplificado pela ação da mídia, que chega a ser pior do que a Santa Inquisição [antigo tribunal da igreja que investigava e punia crimes contra a fé católica].

Uma das fundadoras do PT e personalidade do mundo acadêmico, Chaui expôs sua visão ontem em debate realizado pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo (SP).

Para sustentar seu raciocínio, Chaui se baseia em artigo publicado pela jornalista Marina Amaral na revista-jornal ‘Caros Amigos’, edição especial de setembro. A reportagem fala de um jornalista que ganha a vida atualmente dissolvendo ou criando crises, um gerenciador de crises, no jargão do mercado. ‘É apavorante, porque eu sabia que a crise era encomendada, eu sabia que tinha sido uma operação de produção da crise, isso todos nós sabemos’, disse Chaui para os cerca de 200 metalúrgicos presentes ao evento.

‘Mas eu não pensei que fosse dessa maneira. Digamos que eu pensei que fosse mais sofisticado, mais político. Mas não: o cara vendeu para alguns políticos os dossiês que ele tinha acumulado, alguns verdadeiros, outros ele recheou segundo a fantasia dele, para derrubar o Lula, porque ele não gostou do Lula.’

A versão conspiratória recebeu aplausos da platéia, que na verdade compareceu ao sindicato não exatamente para ver uma palestra sobre ‘Ética na Política’, como constava da faixa colocada à frente da mesa. O jornal do sindicato, distribuído logo na entrada, já dava o tom do que deveria ser o debate, ao pôr em manchete: ‘Filósofa responde por que a direita quer criar, a imprensa alimenta e você deve entender a crise’.

Escalada como alvo, a imprensa, ou a mídia, não foi poupada por Chaui. Ao responder a pergunta de um metalúrgico sobre o poder da mídia em comparação com o poder da Igreja Católica nos tempos inquisitoriais, a filósofa afirmou que a ação dos meios de comunicação é mais nefasta.

Para Chaui, a mídia só age com alguma isenção quando os donos dos meios de comunicação se sentem ameaçados por algum governo ou ordem política. Ou quando os interesses econômicos desses mesmos donos podem ser beneficiados por uma mudança de governo. Fora isso, ‘a ação deles é pior do que a Igreja Católica’, pensa Chaui. Na visão dela, o poder da Inquisição era pelo menos mais transparente. ‘A Igreja católica operava pela produção visível, direta e clara do medo’, afirmou. ‘Já a mídia opera não só por meio da destruição de instituições e da destruição de pessoas. Ela opera pela acusação sem provas.’

Entre exposição e debate, o evento durou duas horas. Antes da sessão de perguntas, Chaui falou uma hora sobre o conceito de ética e repetiu idéias sobre a necessidade de uma reforma política, já expostas em artigo publicado quando da eclosão do ‘affair’ Waldomiro Diniz.

No final do evento, a reportagem da Folha tentou dirigir algumas perguntas a Chaui sobre os desdobramentos da crise do governo Lula. Sem sucesso. Quando percebeu a aproximação do repórter da Folha e de um jornalista do Estado de S. Paulo, a filósofa preferiu interromper uma entrevista para o jornal do sindicato. ‘Não é nada pessoal, mas não falo’, desculpou-se.’



João Ubaldo Ribeiro

‘São eles outra vez’, copyright O Globo, 6/11/05

‘Vamos ser sinceros, não importa que inclinações ideológicas abracemos. Eles têm feito muita falta. Acho que não havia aspecto da vida em que eles não estivessem envolvidos. O mundo cruel vai passando por nós – ou, antes, nós por ele – e não nos damos nem conta do fato de que, para as gerações mais novas, a palavra nunca será, nem de longe, tão rica em conotações quanto é para os mais velhos. O comunismo era ainda muito mais aperfeiçoado, em estar a favor ou por trás de tudo o de ruim que acontecesse ou fosse temido, do que a imprensa, e olhem que isto não é dizer pouco no Brasil de nossos dias. Até revista pornô era coisa de comunista, para solapar os alicerces morais da burguesia e desmascarar-lhe a hipocrisia. E tinha gente para a qual era xingamento, geralmente acompanhado de ‘descarado’. Não sei por quê, mas, pelo menos no meu tempo de juventude e de aspirante frustrado a comunista, quando o sujeito xingava um comunista, dizia sempre ‘comunista descarado’. Pelo menos na Bahia, onde até eu já fui descrito como comunista descarado, era assim. O comunista era uma parte muito rica da nossa realidade, não financeiramente, a despeito do ouro de Moscou, mas culturalmente. Era mesmo chique ser prafrentex (ainda se usa isto?), ser comunista e épater le bourgeois – não vou traduzir, pergunte a seu avô. Era assim que minha ala, a dos Feiosos sem Grana, conseguia aproximar-se, às vezes com resultados inacreditáveis, das belas moças disponíveis.

Depois que caiu o muro de Berlim e acabou a Guerra Fria, a vida, pelo menos aqui no Brasil, perdeu muito a graça. Refiro-me, naturalmente, aos comunistas. Bem sei que existem vários deles por aí, mas todos desamparados e pouco ou nada levados em conta. Isso é uma lástima. Já diz a sapiência do povo que a gente só percebe o valor de certas coisas depois que as perde. Ouso incluir os comunistas nessa categoria e sei que não sou o primeiro a observar que está bem mais difícil viver aqui depois que os eles saíram da moda. Hoje, para grande escândalo meu e de meus contemporâneos, não se vê mais juventude comunista em lugar nenhum e, no meu tempo, quem não dava sua comunistadazinha na juventude era um pária, mormente entre os metidos a intelectuais.

Não ter mais comunistas em quem botar a culpa é gravíssimo, cria situações aflitivas o tempo todo. Antigamente, só podia ser dedo de comunista, esse negócio de o caso do dr. José Dirceu ficar no chove-não-molha, pelo menos até a hora em que escrevo. Se fosse no tempo dos comunistas, eles seriam usados não só para explicar as delongas (tudo manobra insidiosa, comunista era muito bom de manobra insidiosa) como para explicar o próprio dr. Dirceu. Comunista era ótimo, servia para qualquer coisa. Tive colegas de turma anticomunistas que já teriam provado que a aftosa foi inoculada em rebanhos brasileiros por agentes bolcheviques.

Mas algo me diz que eles estão de volta. Sorrateiros, esquivos, melífluos e capazes de qualquer ato em prol da Causa, só podem ser eles os que estão tramando os acontecimentos recentes no Brasil, inclusive a sensação de que não temos governo. Não diria isto se fosse somente eu a ter a sensação de que o país não tem governo, mas a encontro generalizada, não só com os chamados populares com quem converso, como amigos e conhecidos. Claro, todo mundo sabe que existe um presidente e que a capital do Brasil é Brasília, mas a impressão geral é a de que o presidente não preside nada porque o turismo lhe toma todo o tempo e que o pessoal que ele deixou cuidando da casa não sabe direito o que fazer, nem o que é atribuição de quem. Do que aconteceu ou acontece, ele sabe muito pouco e diria mesmo que parece que nada do que se passa é com ele, a dele é outra.

Acho que isso se reflete em diversas áreas, porque os exemplos estão se multiplicando. O caso do dr. José Dirceu é um deles. Um dos poderes, no caso o Legislativo, diz uma coisa, vem o Judiciário e diz outra. Claro, pode estar tudo muito certo, mas a sensação que se tem é que as medidas que feririam os interesses do dr. José Dirceu dificilmente serão aprovadas pelo Judiciário com essa facilidade toda. E o Judiciário (fala um leigo, fala um leigo; perdão, causídicos) está mandando no Legislativo. Não duvido nada que uma próxima decisão do Legislativo seja neutralizada pelo Judiciário porque os signatários não a assinaram com letra boa. E agora só depois de maio do próximo ano, depois de cada deputado envolvido concluir um curso de caligrafia de duração mínima de seis meses.

Num país com tamanha quantidade de miseráveis e analfabetos quanto o nosso, isso também complica. A percepção aqui é de que ninguém está realmente mandando oficialmente em ninguém, tanto assim que, para subir um morro carioca, dois ministros de Estado tiveram que pedir autorização aos líderes locais e dispensar a segurança oficial. E eles foram, ou seja, acataram a decisão dos verdadeiros governantes do morro, governantes também da população desses morros e, cada vez mais, de suas adjacências.

Mas agora, com essa conversa de dinheiro de Cuba para o PT, renascem as esperanças dos que têm saudades dos velhos tempos. Uma nova potência substituiu a União Soviética. Pronto, vejo luz no fim do túnel. Já temos comunistas em que botar a culpa novamente. Esse negócio de tanta gente estudar espanhol, bem que eu estava desconfiado, é coisa deles, para facilitar sua infiltração. Fica claro, portanto, que não é hora para divisões, vamos esquecer CPIs, investigações e processos. Isso não leva a nada, o negócio é pegar esses comunistas descarados.’