Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ali Kamel

‘Toda vez que sai a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, é a mesma coisa: as páginas de todos os jornais se inundam de matérias mostrando que o racismo no Brasil é grande. Os números do IBGE não mostram isso. Nem as análises técnicas que precedem as tabelas. Mas não adianta. Na atual maré pró-cotas, só há olhos para ver racismo.


O IBGE sabe que não pode escrever aquilo que os números não mostram. Mas, nas entrevistas à imprensa, os técnicos avançam o sinal e levam os jornalistas a uma conclusão que o próprio instituto se recusa a tornar oficial. Vejam o que declarou o pesquisador José Luiz Petrucelli: ‘Não se trata do racismo de pessoas sobre pessoas, mas da estrutura da sociedade, que resiste a integrar os pretos e pardos. Apesar de o sistema de cotas ser emergencial e provisório, grandes instituições como a Universidade de São Paulo resistem a adotá-las.’


A frase contém uma ofensa, uma inverdade e um absurdo.


A ofensa é chamar de racistas os membros do Conselho Universitário da USP. O que a universidade faz é preservar o sistema de mérito: entram os melhores, independentemente da cor. Não há racismo, é justamente o contrário: ali não há filtro racial. Em vez de cotas, a USP preferiu adotar mecanismos para tornar possível a entrada de pobres em geral, e não somente de pretos e pardos. E sem ferir a meritocracia. É assim que patrocina um excelente curso pré-vestibular, que já atendeu a cinco mil alunos, voltado a estudantes de baixa renda. E acaba de inaugurar um campus com cursos noturnos, na Zona Leste de São Paulo, onde a população é majoritariamente pobre. As duas medidas têm se mostrado efetivas.


A inverdade e o absurdo é dizer que não se trata de um racismo de pessoas sobre pessoas, mas da estrutura da sociedade. Como assim? Então os brasileiros não são racistas, mas as suas instituições são? Por quê? Porque foram racistas no passado e deixaram de ser, esquecendo-se de reformar as instituições? Ou as instituições são produto de poucas mentes abjetas, com poder ditatorial, que tiranizam os brasileiros com seus mecanismos racistas?


Nada disso faz sentido. O racismo sempre é de pessoas sobre pessoas, e ele existe aqui como em todas as partes do mundo. Mas não é um traço dominante de nossa identidade nacional. Por outro lado, nossas instituições são completamente abertas a pessoas de todas as cores, nosso arcabouço jurídico-institucional é todo ele a-racial. Toda forma de discriminação racial é combatida em lei.


Os mecanismos sociais de exclusão têm como vítimas os pobres, sejam brancos, pretos, pardos, amarelos ou índios. E o principal mecanismo de reprodução da pobreza é a educação pública de baixa qualidade. E é isso o que mostram os números do IBGE. Uma leitura apressada, porém, leva sempre aos mesmos erros.


Diz-se que os brancos ganham o dobro do que os pretos e pardos, mas nada nos permite dizer que o motivo seja o racismo; o motivo é sempre a menor escolaridade de pretos e pardos, porque são pobres. Diz-se que os brancos ganham sempre mais que os pretos e pardos mesmo quando têm o mesmo número de anos na escola, e atribuem isso ao racismo. Mas não se dão conta de que pretos e pardos, por serem pobres, estudaram em piores escolas e que, portanto, mesmo tendo o mesmo número de anos na escola, receberam um ensino de pior qualidade. E, em conseqüência, têm empregos com menor remuneração.


Diz-se que o número de analfabetos entre brancos é menor do que entre pretos e pardos, mas a razão não é o racismo; é sempre a falta de escola determinada pela pobreza. Já mostrei aqui que os indicadores sociais de brancos pobres e pretos e pardos pobres se equivalem. Com base nos dados do IBGE, dizer que a desigualdade entre brancos, pretos e pardos é fruto do racismo é avançar um sinal. Nada permite que se veja no racismo a razão para as diferenças. Os pretos e pardos, na média, têm indicadores sociais piores do que os brancos, na média, porque pretos e pardos são maioria entre os pobres. Mas seus indicadores são iguais aos dos brancos pobres.


Não importa. O processo parece estar completo e, ao que parece, se repetirá ano após ano. O IBGE coleta dados e os divulga, fazendo cortes raciais (quando o certo seria fazer um corte de renda e analisar os indicadores sociais da pobreza). Os pesquisadores do órgão interpretam os números de acordo com suas crenças pessoais. E decretam: o racismo é a causa da desigualdade. Os jornais reproduzem acriticamente a análise. E a política de cotas raciais se justifica. Ano que vem será igual. É assim que os desastres acontecem. Deixaremos de ser a nação orgulhosa de sua miscigenação para passar a ser um país bicolor, cindido racialmente entre brancos e negros. ALI KAMEL é jornalista.’



Luís Nassif


‘Incluídos e excluídos’, copyright Folha de S. Paulo, 8/3/11


‘Como não poderia deixar de ser -pela polêmica que cerca o tema-, a coluna ‘Racismo negro’, sobre a política de cotas para negros nas universidades públicas, rendeu dezenas de e-mails, contra e a favor. A íntegra dos e-mails está no endereço www.projetobr.com.br.


O ponto central de discussão é se as cotas deveriam se destinar especificamente a negros, ou aos pobres em geral. Os defensores das cotas para negros brandem estatísticas para defender o viés racial: a maioria dos excluídos é negra, logo a cota deveria privilegiá-los.


A pedido do jornalista Ali Kamel, da TV Globo, o estatístico Elmo Iório analisou a Pnad (Pesquisa Nacional de Amostra Domilicar) de 2003 do IBGE, comparando grupos semelhantes de brancos e negros -residentes em áreas urbanas, com um filho e rendimento familiar total de até dois salários mínimos. Pela pesquisa, não houve diferenças estatisticamente relevantes em relação a nível de alfabetização, média de anos de estudo, percentual que cursou curso médio e ensino superior. Os pobres são iguais na excludência.


Logo, há um sofisma no uso das estatísticas. Vai-se descontar no não-negro da baixa renda -que eles não freqüentam- a discriminação que existe no ambiente branco de alta renda -onde eles competem-, como se houvesse a classe dos brancos e a dos negros, e não a dos ricos e a dos pobres.


Aí se entra em outra questão relevante, que é a natureza social do chamado movimento negro. Por serem negros, são necessariamente excluídos? Pelo contrário. Seus líderes são ‘incluídos’ social, intelectual, digital e politicamente, são pessoas que chegaram até a universidade (muitos são docentes), comunicam-se por meio de grupos de discussão do Yahoo, copiam hábitos de outros países -como essa denominação de ‘afrodescendentes’.


Fica-se na dúvida se sua luta por cotas visa os negros excluídos das classes de menor renda, visa ampliar o seu próprio espaço de competição, ou se apenas confirma a maldição de Paulo Freire, de o excluído repetir os hábitos do opressor.


Tomando por base alguns e-mails que recebi (que não devem ser generalizados), há claro preconceito social de parte desses militantes, comprovado no desprezo como encaram o ‘boteco’ -o mais democrático dos ambientes sociais brasileiros.


Para parte deles, a ‘pureza’ racial, a invocação das raízes africanas é uma maneira de apagar da história o período da escravidão e da senzala. Como me escreveu um dos adeptos do movimento negro, a miscigenação equivaleu a um ‘estupro’. Ou seja, mulatos, mamelucos, cafuzos são filhos do estupro.


Obviamente não são todos os líderes do movimento negro que pensam assim. Há manifestações de muito bom nível, que divulgarei oportunamente. O relevante é entender que senzala e a escravidão são uma mancha na história do país, mas que não podem ser ignoradas -nem por brancos, nem por negros. São elementos constitutivos da nacionalidade, tanto pelo seu lado sórdido como pelo seu lado na formação da mistura racial brasileira. Queiram ou não os ‘afrodescendentes’, seus pais e avós foram brasileiros, e acho que se orgulhavam disso.’