Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Alon Feuerwerker

‘A Primeira Guerra Mundial (1914-18) foi marcada pela grande carnificina da ‘guerra de trincheiras’ na frente ocidental. Grande e inútil. Soldados alemães e franceses tinham ordens de ganhar terreno a todo custo. Combatiam ferozmente e morriam como moscas, sem nenhum resultado militar significativo. Georges Clemenceau, que governava a França, avaliou assim, ao final do conflito, o desempenho dos seus comandantes: ‘A guerra é coisa importante demais para ser deixada por conta dos generais’.

Entre nós, segue a polêmica sobre o projeto da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) para criar os conselhos regionais e o Conselho Federal de Jornalismo. A reação à proposta tem sido forte. Percebe-se que sociedade e imprensa consideram o jornalismo atividade relevante demais para deixar sua regulamentação legal nas mãos apenas das entidades sindicais dos jornalistas.

Isso é bom. Se os limites aos jornalistas e à atividade jornalística confundem-se com os limites à liberdade de imprensa, as leis sobre como a imprensa deve funcionar e quanto deve ter de liberdade precisam surgir com participação e apoio maciços da sociedade e da própria imprensa. Para que tenham alguma viabilidade.

As opiniões neste texto são pessoais. Não guardam necessariamente relação com políticas ou diretrizes do governo a que tenho o privilégio de servir. Pensei em escrever sobre o tema após o convite público do colega Ricardo Kotscho, secretário de Imprensa da Presidência da República (‘Ao debate, caros colegas’, Folha, 10/8). Concordo com ele quando diz que podemos aproveitar a oportunidade ‘para discutir a própria imprensa e, quem sabe, chegarmos a um consenso sobre as regras do jogo’. Estão em discussão três aspectos da atividade jornalística: o ingresso na profissão, o código de ética do profissional e o controle da sociedade sobre o jornalismo.

O ingresso na profissão deve ser livre, como prevê a Constituição e como as decisões da Justiça têm reafirmado.

Quem se opõe apresenta, em resumo, três argumentos: a exigência do diploma de jornalismo estimularia a qualidade da atividade jornalística, ajudaria a prevenir o mau uso da condição de jornalista e impediria o aviltamento do mercado de trabalho. Parece lógico. Infelizmente, não encontra eco na realidade. Desafio qualquer um a demonstrar com números que jornalistas sem diploma de jornalismo errem mais, sejam menos éticos ou aceitem salários menores. Simplesmente não é o que acontece.

Na publicidade não há reserva de mercado para os portadores do diploma. Aliás, não é necessário diploma nenhum para entrar no ramo. Por acaso o mercado para publicitários está aviltado ou a produção publicitária brasileira é de baixa qualidade?

Alentador é que, mesmo sem a reserva de mercado, os jovens continuam à procura das escolas de publicidade. No vestibular para a USP neste ano, a carreira foi mais procurada que jornalismo. Publicidade recebeu 3.090 candidatos para 50 vagas, concorrência de 61,8 por vaga. Jornalismo teve 2.863 concorrentes para 60 vagas, índice de 47,72 por vaga (www.fuvest.br).

Um efeito benéfico da liberalização do ingresso na profissão será aumentar o número de jornalistas sindicalizáveis e oxigenar a vida sindical. Dezenove de cada 20 jornalistas não votaram na última eleição para a Fenaj. Isso não tira a legitimidade ou representatividade do órgão. Mas é uma dura realidade, que não se pode ignorar.

No campo da ética, sugiro um comitê e um código nacionais de auto-regulação jornalística, nos moldes do que já acontece no mercado publicitário. O comitê teria representantes de jornalistas, empresas de comunicação e entidades de defesa do consumidor. Deveria ser uma organização não-governamental. Não precisaria ser objeto de legislação específica. Ficaria proibido de ter qualquer relação de dependência com governos. Exerceria uma espécie de ‘vigilância ética’ sobre a atividade jornalística. Provocado, pronunciar-se-ia sobre o que considerasse antiético ou imoral, ainda que não necessariamente ilegal. O código poderia ser submetido a um referendo nacional de jornalistas. O comitê teria apenas o papel de fazer recomendações, aprovadas por pelo menos dois terços de seus membros. O quorum alto forçaria decisões quase consensuais do colegiado, para evitar que se tornasse palco de disputas corporativas entre jornalistas e veículos.

Não faz sentido, por exemplo, um direito de resposta esperar anos por decisão judicial, quando poderia ser concedido a partir da autoridade moral de uma instituição reconhecida pelos jornalistas, pelas empresas e pela sociedade. Quanto ao controle social sobre a atividade jornalística, deve ser feito do mesmo modo que a sociedade controla todas as outras coisas: por leis aprovadas no Congresso Nacional e aplicadas pelo Poder Judiciário, sob a vigilância de uma imprensa totalmente livre.

As revoluções Francesa e Americana legaram-nos, há mais de 200 anos, a democracia representativa, com partidos e imprensa livres. São conquistas universais, da civilização. Habituemo-nos a elas. Onde estão em vigor há mais tempo do que no Brasil, os resultados têm sido bastante bons. (Alon Feuerwerker, 48, jornalista, é subchefe de Assuntos Parlamentares da Secretaria de Coordenação Política e Assuntos Institucionais da Presidência da República. Foi secretário de Redação da Folha e diretor do UOL.)’



Mylton Severiano

‘Lei da Relatividade Aplicada’, copyright Caros Amigos, 3/09/04

‘O pessoal do contra está assanhado, os interessados no próprio bolso, desanimados do Brasil, derrotistas, nihilistas. De tudo quanto disseram e escreveram nas últimas semanas, é bem curiosa a reação a certa afirmação do ministro Luiz Gushiken. Caíram de pau em cima dele por dizer que nada é absoluto numa sociedade, portanto a liberdade de informação é relativa.

Chiaram, mas que é relativa, é. Por volta de 1966, a Rádio Eldorado, que pertence ao grupo d’O Estado de S. Paulo, mantinha programa de música erudita, Concertos do Meio-Dia. Encontrei um locutor da rádio certo dia e reclamei que não tocavam contemporâneos, como Igor Stravinsky. Ele disse que o ‘doutor Julinho’ havia proibido música de compositores do século 20: todos comunistas, segundo Júlio Mesquita Filho. Os ouvintes só tinham ‘liberdade’ de pedir para ouvir eruditos até a época do romantismo.

Recentemente, um colega contou que mandou colaboração para a revista Bundas, em que pedia a renúncia do então ministro da Fazenda Pedro Malan. Esse colega disse que não sabia que Malan é sobrinho da mulher do editor da revista. ‘Você vai me complicar em casa’, explicou o editor ao autor do texto, pedindo desculpas por não publicar. ‘Censura’ caseira.

Na Rede Globo, em 1987, chegaram a mexer na letra de velha marcha de carnaval, de Luiz Antônio, Oldemar Magalhães e Zé Mário, Sassaricando, que deu nome à novela; mudaram o verso ‘na porta da Colombo’, porque Colombo é nome de tradicional confeitaria carioca que fabrica ou fabricava famosa geléia de mocotó. E por quê? Porque, segundo nos explicaram nos corredores da emissora, Roberto Marinho seria dono de outra geléia de Mocotó, a Inbasa.

Como se vê, há muitas formas de ‘censura’, muitas maneiras de exercer a ‘liberdade de imprensa’. Quase não vemos articulistas defendendo o atual governo federal nos jornalões e revistonas. A esmagadora maioria ataca, e na maior parte das vezes simplesmente ataca por atacar, como numa campanha, quase sempre à base de adjetivos. Dia 27 passado, última sexta-feira de agosto, o colunista de um grande jornal paulistano publicou o texto ‘Até Tu, Bastus’, em que desancou o ministro da Justiça a propósito da Lei de Crimes Hediondos. Cometeu três impropriedades e desinformações, segundo a Assessoria de Comunicação Social do Ministério da Justiça. Mas as correções enviadas pela assessora Ligia Kosin foram publicadas na seção dos leitores, no meio de outras cartas, ou seja, ficaram valendo as incorreções do articulista. Eis mais uma dentre incontáveis manifestações de relatividade da ‘liberdade de imprensa’.

Ainda não temos neste país uma só grande publicação feita e comandada por jornalistas, mas sim grandes publicações feitas por jornalistas comandados por EMPRESÁRIOS, com seus interesses. Interesses políticos, pecuniários, de classe social e outros, mais do que o interesse em prestar um serviço público.

A propósito, vamos lembrar o jornalista atípico Mahatma Gandhi, líder de massas, pacifista, libertador da Índia do jugo inglês. Para sua pregação, Gandhi criou vários jornais. Entendia o poder multiplicador de mensagens que tem o jornalista. Foi vítima de jornalistas também, por causa de exageros, erros e mentiras assacados contra ele. Em 1945, escreveu que o objetivo principal do jornalismo é servir; e comentou:

‘A imprensa é uma grande força. Mas como uma torrente em fúria submerge o campo e devasta as colheitas, assim uma pena sem controle não serve senão para destruir. Se o controle vem do exterior, seu efeito é ainda mais venenoso que a falta dele. Não pode assim esse controle ser proveitoso se não for exercido do íntimo.’

Quem controla as mãos que escrevem para os jornalões e revistonas? O que têm a ver com o Conselho Federal de Jornalismo os patrões? Quem tem medo de um CFJ criado e administrado pelos próprios jornalistas? Quem está com medo de sequer discutir a questão? Mylton Severiano é jornalista.’