Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Ana Maria Bahiana

‘É pena que a gente tenha esse reflexo imediato, tipo piloto-automático, de se sentir ofendido cada vez que lê a assinatura ‘Larry Rohter’ numa matéria. Porque a pauta da obesidade era boa . Era não, é.

O nefário Sr. Rohter não tirou a dita cuja (pauta) da cabeça dele – tirou de estatísticas do IBGE ou seja, mais brasileira a fonte, impossível. Na verdade, lembro de ter visto tímidos registros do mesmo material enfurnados em pés de página de seções tediosas dos jornais nativos.

O que tornou sua matéria saborosa, importante e controvertida foi justamente a qualidade que faltou aos editores e repórteres que leram o mesmo relatório do IBGE: a capacidade de ver a informação como o que realmente é, um dado cultural importante num país em que as questões do corpo, da estética à penúria, são centrais.

Todo brasileiro que viu o (ótimo, por sinal) documentário ‘Super Size Me’ deve ter tido, em algum momento, um instante de gloriosa superioridade nacional – aquilo é um horror, mas, que bom!, jamais aconteceria aqui. Por ‘aquilo’ entenda-se uma obesidade endêmica, fabricada, cujas ramificações – como o documentário mostra – se estendem vasta e profundamente pela sociedade americana.

Então vem o IBGE e fura nossa bolha de sabão. ‘Aquilo’ está aqui também. De um golpe só se esvai nossa visão idílica de uma população de alimentação simples mas sólida, corpos rijos e morenos favorecidos pela excepcional mistura de etnias e por uma extrema naturalidade com o corpo, seus rigores e seus prazeres. Super size me too! Amo muito tudo isso, etc e tal.

Larry, com o privilégio de quem está olhando de fora, a partir de uma cultura onde já se discute a obesidade há algum tempo, pegou na veia de primeira ao sobrepor a (frenética, eu diria, com algo em comum com a mesma visão) busca de impossíveis perfeições estéticas (a cultura dos ‘sarados’ e da cirurgia plástica em linha de montagem) com a realidade de 10 milhões de brasileiros obesos.

Não é uma realidade que precise do IBGE para ser flagrada, ao menos na superfície. Uma singela meia hora de observação em algum ponto movimentado de uma grande cidade vai revelar, a olho nu, um índice de sobrepeso que, dez anos atrás, era típico de algum shopping do meio oeste americano.

Pautas que continuam boas incluem a comparação entre a proliferação de academias e os piques de obesidade, um olhar sobre como, quando e quanto os brasileiros estão comendo, como se cria um mito de perfeição corporal, o que leva a ele e porque tememos tanto vê-lo ameaçado.

Larry provavelmente irritou mais do que devia ao adicionar o paralelo entre ‘fome zero’ e epidemia de obesidade – um artifício narrativo aparentemente esperto, mas tolo, uma vez que pode-se perfeitamente ser obeso e mal nutrido. Aliás, o padrão mais corriqueiro do obeso – americano e brasileiro- é ser mal nutrido. Considerando que, segundo o próprio texto de Rohter, EUA e Brasil são os líderes mundiais em consumo de açúcar, não é difícil adivinhar a causa do fenômeno.

Como os alimentos que eram parte da nossa dieta – frutas, legumes, veduras, grãos, leguminosas- tornaram-se ‘coisa de rico’, e como vastas porções da população só podem comprar uma comida barata, nutricionalmente vazia e perigosamente engordativa seria um outro bom desdobramento da mesma pauta.

Em vez disso, preferimos nos sentir ofendidos e fazer suites com possíveis desagravos ao charme e veneno da mulher brasileira. É pena. Nos anos 50 tínhamos as ‘certinhas do Lalau’, que eram na verdade bem redondinhas. Agora temos as gordinhas do Larry…’



Ancelmo Gois

‘As fofas do Larry’, copyright O Globo, 23/1/05

‘O site de notícias comentadas www.balaperdida.jor.br lançou o concurso ‘As certinhas do Larry Rohter’, acredite, para eleger as fofinhas mais charmosas do Brasil.

As cinco eleitas ganham um jantar numa pizzaria. É sério.’



Comunique-se

‘Bloco Imprensa que eu gamo escolhe seu samba’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 19/1/05

‘O samba do bloco Imprensa que eu gamo foi escolhido nessa terça-feira (18/01). O desfile acontece no sábado, 22/01, em Laranjeiras.

Foram nove concorrentes, recorde nos dez anos de vida do bloco. O júri, que contou com Rita Fernandes, Ramiro Alves, Fernando Paulino, Dulce Janotti e Ramona Ordoñez optou pela simplicidade e irreverência do samba de autoria de ‘Marceu, Janjão, Fábio, Larry Rohter e Harry Potter’. O nome do samba, que pega no pé do controvertido e reincidente correspondente do New York Times no Brasil, é ‘O Larry Rohter, será que ele é?’

O bloco é apoiado pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro (SJPMRJ) e patrocinado, este ano, pela Tim Brasil e pela Vale do Rio Doce. Entre os destaques da noite, o Imprensa recebeu Xangô da Mangueira, Walter Alfaiate e até o Rei Momo de 2005, Guaraci Sete Cordas, Luciane Menezes e Marcelo Reis, que é coleguinha.

Abaixo, a letra do samba vencedor:

O Larry Rother, será que ele é?

(Marceu, Janjão, Fábio Nascimento, ‘Larry Rohter’ e ‘Harry Potter’)

Deu no New York Times

que a Garota de Ipanema é fofa

E viram nas morenas bundas flácidas

Com celulites e culotes retumbantes

Que a nossa musa agora é uma baleia

Sereia de antigos carnavais

‘O Brazil não conhece o Brasil’

O Lula é presidente ou um barril?

Não gosta de cachaça

Não entende de mulher BIS

O Larry Rohter, será que ele é?

VEJA, ISTO É a nossa ÉPOCA

Só tem PLAYBOY, não há MANCHETE nem VISÃO

Já não tenho mais emprego

Mas pelo menos me livrei do pescoção

No carnaval, eu faço frila

No Mercadinho, em liquidação

(Imprensa, meu bem)

Imprensa Que Eu Gamo, meu bem BIS

Cheguei a dez, mas já estou a mais de cem

(e o Larry deu!)’



JORNALISTAS E TAXISTAS
João Paulo Cuenca

‘Motorista de táxi reconhece cronista e anuncia fim do mundo’, copyright Jornal do Brasil, 22/1/05

‘Segundo o instituto Cuenca de pesquisa, o Rio de Janeiro é a cidade que tem a maior proporção de taxistas por habitante no planeta Terra. Ou pelo menos é assim aqui na Rua Marquês de Abrantes. O sujeito acena para um amigo do outro lado da rua e logo se forma uma fila de carros pintados de amarelo com uma listra azul. Até que o homem justifique sua ingênua saudação e o táxi apague o pisca-alerta e siga seu caminho, buzinaço, confusão e revolta dos outros motoristas. Cada táxi tem, por trás do volante, um jogador. Aposta com a sorte o tempo inteiro. Troca a noite e o dia, lutando pelo troco incerto, pescando passageiros. Às vezes o cara pode rodar horas sem pegar nenhum. Noutro dia, pega uma seqüência boa de corridas e volta para casa mais cedo, alegria da criançada e da mulher.

Sempre sento no banco do carona nos táxis, não sei bem por quê. Acho que sinto certa inveja dos taxistas por eles nunca saberem direito para onde estão indo, ou com quem. Não sou de puxar papo, mas quando o taxista quer conversar, não me esquivo. Na última quinta-feira, o motorista olhou estranho para depois disparar, com aquele jeito oblíquo dos taxistas: ‘Eu conheço o senhor…’ Engatou a primeira, ligou o relógio e continuou: ‘Acho que o senhor é aquele cara que escreve pro Jornal do Brasil… Aquele novo, com o nome engraçado’. Surpreso, disse que eu era eu mesmo. Foi como se tivesse aberto o ralo de uma banheira.

‘O senhor sabe, seu João Paulo, né?, que a primeira vez que eu li o senhor foi por causa desse nome estranho do senhor… Eu pensei, aqui comigo, com esse nome o sujeito deve ser maluco. Só pode ser ruim da cabeça. E era mesmo!’ Riu sozinho, fez meio minuto de silêncio e, quando eu ia dizer algo, me interrompeu. ‘Tem outro colunista que eu já peguei no meu táxi, um Joaquim…’ Eu completei: Ferreira dos Santos? ‘Isso mesmo, exatamente! O Joaquim! Eu falei até umas coisas com ele uma vez e ele escreveu no jornal, na crônica dele, e eu me senti muito importante, mostrei pros colegas lá do ponto, mas é aquilo, né? No jornal você só é famoso por um dia. No dia seguinte, hoje já é ontem e aí, babau! Mas acho que os colunistas de jornal usam os taxistas para falar as coisas que eles querem, porque eu não falei exatamente aquilo que saiu lá. E sempre tem uma crônica com um taxista falando besteira! Vocês não tem imaginação, não? E outra coisa: não é `taxista´. Nós somos motoristas de táxi!’

Eu disse que ele não deveria confiar nos cronistas. De certa forma, o cronista é um tipo de taxista, mas daqueles que fazem bandalha e alteram o taxímetro. O taxista pega passageiros enquanto os cronistas pegam carona nas palavras dos outros. Também é um jogo de sorte. O cronista caminha pela Rio Branco atrás das palavras incertas. É uma ave de rapina que arranca pedaços de realidade para publicar no jornal. A diferença é que, normalmente, as palavras não acenam para o autor: precisam ser extirpadas.

O taxista não estava muito interessado no meu papinho de escritor e perguntou, após pausa grave, se eu não estava preocupado mesmo é com as calamidades do planeta. A contar: epidemias, tsunami, terrorismo, guerras e, pior ainda, a máfia no Palácio da Guanabara. Eu, com alguma preguiça de levar o papo adiante, disse que desde sempre foi assim. Olhava pela janela, tentando fixar alguma imagem. Mas o taxista andava rápido demais. Descobri na ficha presa ao pára-brisas que seu nome era Menezes. E Menezes disse que o mundo estava para acabar, sem papo furado! Que os computadores falaram que o clima da Terra só suporta vida até 2050, no máximo. Superaquecimento, camada de ozônio, essas coisas. Isso sem falar do meteoro de 2017, sabe o meteoro de 2017? E os bichos ficando malucos: pingüim em Copacabana, tubarão em Ipanema, cobra cascavel na Avenida Brasil, chuva de gafanhotos no Egito e na Austrália? E as tormentas magnéticas? E o eixo da terra cada vez mais fora de prumo? E a era glacial, que ocorre a cada dez mil anos e nenhuma acontece há uns doze mil? ‘Ou seja, pode rolar um congelamento a qualquer momento. Escreve aí!’

‘O senhor que me desculpe, mas eu não acredito em nada que sai no jornal. Só compro mesmo pra passar o tempo. Aliás, nem em jornal, nem em TV! Por exemplo, o homem passeando na Lua. Lorota da boa e todo mundo sabe disso. Mas a televisão domina a cabeça das pessoas… O senhor pode pesquisar! Para ficar informado hoje em dia, tem que ser pela internet, onde tem informação privilegiada. Sou motorista de táxi, mas sou malandro, não dou mole pra urubu. Essa eleição do presidente americano: manipulação! É mais um sinal do fim dos tempos. Logo, logo a era do medo vai acabar e a Babilônia vai cair, o senhor vai ver. E isso não sou eu quem diz, não. São os maias e os egípcios. Nostradamus, a Bíblia e as aparições da Virgem Maria. E esse papa aí é um dos últimos, segundo São Malaquias! O senhor pode pesquisar! Senhor… Onde o senhor vai? Quanto deu a corrida? Aqui no meio da avenida mesmo? Ei, não precisava bater a porta! Também, com um nome desses…’’



DAMATTA NO GLOBO
Mauro Ventura e Rodolfo Fernandes

‘O Brasil nas entrelinhas’, copyright O Globo, 22/1/05

‘O Brasil passou a se conhecer melhor desde que o antropólogo Roberto DaMatta debruçou-se sobre temas que costumavam ser desprezados pelas ciências sociais, como carnaval, jogo do bicho, futebol e trânsito. De volta ao Brasil há 11 meses, após 17 anos morando e dando aulas nos Estados Unidos, ele concilia o rigor profissional com um estilo acessível, como pôde ser visto em seu clássico ‘Carnavais, malandros e heróis’. Lançado em 1979, o livro permanece atual, ao mostrar como o brasileiro oscila entre o jeitinho e a lei, entre a hierarquia e o igualitarismo. Recuperando-se de uma operação na perna direita, fruto de uma queda no Centro da cidade, ele experimentou na prática o que considera o patrimônio maior do brasileiro: a solidariedade. Numa crônica em que narra o episódio, escreveu: ‘Agora eu era o centro e o objeto de uma profunda generosidade.’

Nascido há 68 anos em Niterói, onde vive hoje, ex-professor da Universidade de Notre Dame (EUA) e atual docente da PUC do Rio, apontado por um levantamento da Unicamp como o cientista social mais citado nos trabalhos acadêmicos do país, ele passa a assinar, a partir da próxima quarta-feira, uma coluna na página 7 do GLOBO. Em seu escritório numa casa em Itaipu, cercado por postais com representações femininas e símbolos brasileiros, como carrancas e objetos indígenas, lembranças de suas pesquisas etnológicas, rodeado de netos — são oito — ele falou sobre o país que está acostumado a ler nas entrelinhas.

‘CARNAVAIS, MALANDROS E HERÓIS’: ‘Na época em que escrevi o livro, em 1979, ele foi bem recebido. Teve um crítico que o incluiu como um livro de direita, o que muito me honrou, porque estava junto com Celso Furtado e Gilberto Freyre. Quando comentou o livro, a esquerda fez resenhas negativas. Não sei nem se entenderam o que queria dizer. Mas suspeito que a negatividade tenha a ver com o fato de que não abordei o Brasil através de temas que são nobres, como a história da família, da política, da economia, da História, de suas relações com o mundo ibérico. Pelo contrário, o livro aborda temas mais humildes, como o ‘você sabe com quem você está falando?’, o carnaval, o mito do Pedro Malasartes. Teve gente que falou: ‘Como você está estudando carnaval no Brasil dos anos 70? Você tem que estudar a classe operária’. Mas eu estava tentando mostrar que, no nosso caso, o buraco ficava muito mais embaixo. Não ia ser acabando com o regime militar que a gente ia criar uma sociedade democrática, porque existia uma coisa chamada ‘você sabe com quem está falando?’. Aliás, o livro não é sobre o carnaval. Ele usa o carnaval como uma janela para falar do Brasil. Alguns dos resenhistas se ressentiram com o livro porque ele não tem conclusões, não é um livro normativo, que dita regras e determina o que fazer, realizando um diagnóstico, o que era muito comum nas interpretações brasileiras. Não era uma receita para o Brasil. O silêncio ou a crítica negativa cobrava esse viés opinativo, tão a gosto da nossa sociedade que delega a algumas pessoas o direito de receitar fortemente sobre ela própria. Neste livro, eu redescobri o ensaio, a obra aberta, e, como no caso de Gilberto Freyre e outros, não cheguei a nenhuma conclusão, onde você diz que deve fazer um partido tal ou um programa de ação X ou Y. O livro não apresenta isso. Por isso, creio, ele surpreendia e decepcionava. Era um livro desalinhado.’

OTIMISMO: ‘O Brasil ficou mais otimista de 1979 para cá, o que é uma mudança muito interessante. O Brasil na época do livro era mais sombrio, menos esperançoso em relação a si próprio. Vivíamos um momento de transição muito delicado em que se estavam construindo essas pontes que levariam à democracia consolidada que temos hoje. Tem mais otimismo hoje, claro, pois a esquerda está no poder. O pacto com o pessimismo foi o pacto da esquerda que apostava no quanto pior melhor, que dizia: ‘Nós vamos mudar tudo que aí está’. Isto teve que ser maquiado ou modificado, porque ninguém pode governar sem amor, sem valorizar o que se governa. Essa foi uma das primeiras coisas assimiladas: você não pode ser crítico de seu próprio governo. Hoje, portanto, existe muito mais otimismo, entre outras coisas porque há a certeza de que podemos resolver certos problemas através do debate, do voto, do diálogo, da competição, e não da violência política, da qual, diga-se de passagem, a esquerda foi vítima. Este é um dado absolutamente fundamental. Estamos vivendo um momento singular em termos de situações inusitadamente favoráveis, como ocorre em algumas áreas da economia, das finanças, da mídia. Somos hoje um país consciente de sua alta criatividade em todas as mídias. E as forças contra as quais estamos lutando hoje são menos poderosas no sentido institucional do que na época em que o livro foi lançado, quando brigávamos com os velhos problemas nacionais e contra a falta de liberdade política.’

DIRIGISMO OFICIAL:Hoje, felizmente, há uma vigilância muito grande. Você tem uma visão liberal do mundo entre os formadores de opinião, o que produz opiniões sensatas. Adotar o mercado não significa abrir mão de responsabilidades sociais. Daí a reação a essas agências todas, como o Conselho Federal de Jornalismo e a Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav). Só falta agora aparecer uma Agência Nacional do Turismo, porque os brasileiros estão viajando muito, como já observou um ministro. Ora, é preciso assumir que somos um país de gente livre, onde todo mundo pode viajar. Não se pode governar querendo dirigir as coisas, porque isso leva a um claro cerceamento da liberdade pela qual se lutou tanto. Esse é um paradoxo do atual governo.’

RAPAPÉS:’Os rapapés de que eu falo no livro não mudaram. A sociedade brasileira é extremamente preocupada, sobretudo no caso do Rio, com rapapés de alta sociedade. É extraordinária a quantidade de colunas sociais em jornais e revistas. Você tem uma necessidade de celebrização, de uma legitimação da hierarquia. O sujeito que é célebre no Brasil pode andar de sandália de dedo, de bermuda, em todos os lugares. ‘Eu agora virei global, ganhei.’ É como ganhar o Oscar.’

‘VOCÊ SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?’:’Podemos discutir se o carnaval mudou ou não, e onde tem mudado, mas continua no Brasil o ‘você sabe com quem está falando?’. Você prende um juiz de direito bandido? Prende por um, três anos. Há uma hierarquia que diz: ‘Eu sou igual a todo mundo até certo ponto, mas devido à minha corporação eu sou um cara especial. Então por que eu voltando de Cabo Frio depois de um longo fim de semana vou ter que fazer como esses babacas todos que estão aí na fila do longo engarrafamento? Eu entro no acostamento, eu tenho um carro melhor, mais possante.’ Tenho esse ‘direito’ às avessas. ‘Se eu estou com pressa para ir a uma reunião numa grande empresa multinacional onde vou apresentar uma proposta importante, por que eu vou seguir essas regrinhas aqui? Eu vou furar o sinal.’ Como é que o guardinha de trânsito vai dar um sabão num senador da República ou num ministro, se ele é o ‘cara que é dono da educação, que entende tudo da energia’? Você faria? Perde o emprego. Se você estruturou tudo em termos de uma hierarquia estatal, nacionalista, de salvadores da pátria, como é que você amplia o pacto democrático? Ser ou não ser igualitário (ou aristocrata no Estado), essa é a questão. Ou seja, o problema da hierarquia como um valor social e ideológico continua. É a combinação entre a proposta de ser uma sociedade legal e socialmente igualitária, como reza a Constituição, mas ao mesmo tempo continuar com suas práticas sociais hierárquicas, que, como disse no livro, constituem o dilema brasileiro. E esse dilema ainda está vivo entre nós. Mas, devo acrescentar, estamos ultrapassando, por força da igualdade como valor, certos impasses.’

‘FRACASSOMANIA’É triste constatar que existe muita gente que acredita que o Brasil não possa melhorar. São três os discursos fracassomaníacos . O primeiro diz que o país não tem jeito. O segundo fala que todo mundo está a fim de roubar o Brasil. É o discurso da conspiração. Outro dia vi uma teoria interessantíssima sobre as loterias esportivas. Uma pessoa me disse que a loteria é um golpe que dão no povo brasileiro. A teoria é a seguinte: eles deixariam aumentar o prêmio e aí ele sai para uma pessoa que faz parte dessa quadrilha. Em matéria de teoria conspiratória, só teve uma que se assemelhou a essa. Foi quando o Brasil perdeu o Copa de 1998 e disseram que todos teriam recebido alguns milhões de dólares para perder da França. O que eu discuti com frentista de posto de gasolina e taxista tentando mostrar o absurdo dessa teoria… E o terceiro discurso é o que todo mundo é ladrão. Algumas correntes políticas alimentam isso, para dizer: ‘Eu sou o cara que vai consertar.’’