Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

André Petry

Com seu jeito folgazão e seu hábito de pilheriar com todos à volta, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez bastante graça na semana passada. Na segunda-feira, ao aparecer no saguão do hotel onde estava hospedado em Santo Domingo, capital da República Dominicana, Lula dirigiu-se aos jornalistas que o aguardavam e lascou: ‘Vocês são um bando de covardes mesmo, hein?’. Em seguida, explicou que a covardia resultava do fato de que não haviam defendido a criação do Conselho Federal de Jornalismo, autarquia que o governo quer inventar para fiscalizar os jornalistas e o jornalismo. No dia seguinte, em nova investida no campo do humor, o presidente disse, durante uma conversa com seu colega da Costa Rica, que fizera uma visita ao Gabão com o objetivo de ‘aprender como um presidente consegue ficar 37 anos no poder e ainda se candidatar à reeleição’. O presidente do Gabão, Omar Bongo, com quem Lula desfilou em carro aberto pelas ruas de Libreville, assumiu o governo com a morte do titular, em 1967, e nunca mais saiu. Está entre os ditadores mais longevos do planeta.

Quando um presidente faz piada, acólitos costumam esborrachar-se em gargalhadas, menos pela graça, é claro, e mais pelo servilismo. Mas não é nada engraçado que Lula tenha expressado, mesmo que em tom de brincadeira, sua admiração pela longevidade de um ditador africano. Também não é engraçado que tenha chamado jornalistas de ‘bando de covardes’. Primeiro porque sem os ‘covardes’ ele jamais teria sido eleito. Segundo porque o presidente sabia que seus interlocutores não poderiam responder na mesma altura sem turvar o ambiente. Terceiro porque a questão em tela está longe de ser um problema de bravura ou intrepidez. Quarto, e mais importante, porque um presidente da República, em especial num país como o Brasil, não é só símbolo do Estado – é símbolo de um gigante. O Estado brasileiro é excessivamente forte e praticamente tem o comando da economia. Somando as estatais e os níveis federal, estadual e municipal de administração pública, o Estado brasileiro é o maior empregador do país e ainda amarra a atividade econômica privada com um ímpeto de país socialista.

‘É assustador que o comandante de um Estado com tais dimensões tente ampliar ainda mais seus tentáculos sobre a vida nacional. O autoritarismo é ainda mais preocupante quando se sabe que no Brasil há uma dissociação histórica entre atividade econômica forte e liberdades civil e política’, afirma o filósofo Denis Rosenfield, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É preocupante constatar que o Estado brasileiro, além de tudo, da riqueza, do emprego, do imposto, da força, ainda queira esparramar seu domínio sobre a imprensa, por meio da tal autarquia da imprensa, e sobre a cultura, através da proposta de criar uma agência nacional de cinema e audiovisual. Na semana passada, estrelas petistas pensaram em lançar uma campanha para defender a cultura nacional nas telas de cinema e televisão e bolaram o slogan ‘A tela é nossa’, paródia da campanha ‘O petróleo é nosso’, de meio século atrás. Ou seja: as estrelas petistas acham que petróleo e cultura merecem tratamento semelhante por parte do governo. Acham que uma dádiva da natureza, matéria que se cria à revelia da mão do homem, é mais ou menos igual à produção cultural de um povo, sua criatividade, seu intelecto. Os petistas mostraram ignorar, a um só tempo, os rudimentos da sociologia e da geologia.

A sátira do presidente sobre ditadura de um país africano também é uma brincadeira inadequada. ‘Tratar as declarações do presidente como brincadeira é uma maneira de não encarar o problema a sério. Não podemos esquecer que a democracia brasileira, a despeito de seus vinte anos, ainda é uma planta frágil’, diz o filósofo Roberto Romano, da Unicamp. Afinal, nestas duas décadas, com uma taxa medíocre de crescimento econômico, o país não conseguiu superar a chaga da desigualdade social ou dar vida digna a todos os brasileiros, nem à maioria. Com um saldo precário, a realidade brasileira pode acabar contribuindo para semear a descrença quanto à democracia e, por extensão, a crença em algum novo tipo de populismo autoritário. Em nome do futuro, é bom zelar, e o presidente deve ser o primeiro a fazê-lo, para que nada parecido aconteça.’



Luis Fernando Verissimo

‘Piadas infelizes’, copyright O Globo, 22/08/08

‘Fernando Henrique fez uma piada no começo do seu governo (aquela do ‘esqueçam tudo que eu escrevi’) que o perseguiu durante oito anos. Era apenas uma piada simpaticamente autodepreciativa, pelo menos para quem estivesse disposto a entendê-la assim. Queria dizer que nenhum membro da classe teórica passa à prática sem sacrificar algumas certezas acadêmicas e que com ele não seria diferente. Mas quem já não tinha muita boa vontade com o sociólogo de esquerda virado político neoliberal tomou a frase como uma confissão pública de cinismo. Fernando Henrique continuou fazendo frases, boas e ruins, durante todo o seu mandato, o que significa que não aprendeu o que deveria ser a primeira regra para orações presidenciais: não improvisar. Se tiver que improvisar, não fazer piadas. Se quiser fazer piadas, treinar o improviso com bastante antecedência. Nunca é demais enfatizar a importância, para uma presidência estável e para a tranqüilidade geral da nação, da espontaneidade bem ensaiada.

Seria impossível aplicar a regra no caso do Lula, que gosta de improvisar e que em dois anos já superou a marca total do Fernando Henrique na modalidade piada infeliz sem barreiras. A esta altura – até porque ele não pára – já deveria existir uma certa resignação entediada na imprensa com as piadas sem preparação prévia, revisão, teste de público, redação final e aprovação pela sua assessoria de comunicação, do Lula. Todo o mundo conhece o seu jeito e sabe que ele nunca vai se enquadrar em qualquer padrão de cautela verbal. Mas repete-se a mesma reação a cada nova frase impensada e ‘a última do Lula’ já se tornou quase uma seção fixa dos jornais. Isso quando não se sugere que a espontaneidade não é assim tão sem ensaio, que a frase foi pensada e é uma mensagem sombria: o Lula sonharia, mesmo, em ficar no poder tanto quanto um ditador africano, acha mesmo jornalista covarde, etc.. O Fernando Henrique sobreviveu aos seus improvisos porque nunca se identificou neles mais do que um deslize, lamentável ou apenas incongruente, tratando-se de um homem ‘preparado’. No caso de Lula parece haver a preocupação de enfatizar seu despreparo, na espreita da piada tão infeliz, tão infeliz que acabe numa crise política ou institucional.

Agora, que ele poderia pensar duas vezes, ou três ou quatro, antes de fazer a piada, poderia.’



Folha de S. Paulo

‘Lula Descontraído’, Editorial, copyright Folha de S. Paulo, 19/08/08

‘Num momento de ‘descontração’, como foi classificado por sua assessoria de imprensa, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em Santo Domingo, capital da República Dominicana, declarou que um dos motivos de sua viagem ao Gabão foi ‘aprender como um presidente consegue ficar 37 anos no poder’. Depois das dificuldades do primeiro ano de mandato, o quadro de recuperação econômica vai permitindo ao presidente, segundo suas próprias palavras, ‘sorrir um pouco’ -e, ao que parece, se manifestar de forma mais relaxada.

Lula já havia, pouco antes, também a título de ‘brincadeira’, chamado de ‘covardes’ os jornalistas que não defendem o projeto do famigerado Conselho Federal de Jornalismo (CFJ), encaminhado pelo Planalto ao Congresso Nacional.

Compreende-se que o presidente se sinta aliviado com os recentes resultados da economia e que se permita, em determinadas ocasiões, imprimir um tom menos circunspecto à sua abundante retórica. É recomendável, no entanto, um pouco de cautela: mesmo ao fazer blagues, é o presidente da República quem fala, com o peso e a responsabilidade inerentes ao cargo.

Sem perder de vista que a referência ao Gabão, como interpretou o senador José Sarney, foi um ‘chiste’, não deixa de ser sintomático que Lula tenha escolhido o infeliz exemplo da ditadura africana para manifestar o desejo de ser reeleito -tema que vai sendo introduzido na cena política precocemente, ainda na primeira metade do mandato presidencial.

Quanto à frase aos jornalistas, foi de uma inoportunidade a toda prova. Serviu apenas para realçar o antigo vezo do sindicalista provocador, em tudo inadequado a um presidente da República. Até mesmo defensores do projeto repudiaram a declaração.

Esperemos que o presidente Lula aproveite bem seus momentos de descontração, mas que procure poupar o país de gracejos de gosto e efeitos duvidosos.’

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‘A ‘Lei Meirelles’’, Editorial, copyright Folha de S. Paulo, 18/08/08

‘É inábil a maquinação urdida no palácio do Planalto para blindar o presidente do Banco Central do Brasil, Henrique Meirelles, contra eventuais processos. Com efeito, é política e juridicamente injustificável a medida provisória nº 207, que promove o banqueiro central à categoria de ministro de Estado, dando-lhe assim a prerrogativa de ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e não pelas instâncias ordinárias.

Para começar, a manobra, escandalosamente casuística, sugere que o governo federal desconfie que o Ministério Público tenha razões para acionar Meirelles, o que não estava claro até aqui. A rigor, o artifício pode prejudicar o presidente do BC, pois, como ministro, ele fica sujeito a responder também pelo crime de responsabilidade, cuja tipificação dá margem a muita subjetividade.

É também muito estranho que a administração do PT, partido que sempre condenou o abuso na utilização de medidas provisórias, se valha desse instrumento para resolver uma questão ‘doméstica’, no que revela falta de espírito republicano. Além disso, não se vêem aqui a relevância e a urgência que deveriam ser os critérios para a edição de uma MP.

Essas considerações não significam em absoluto que o presidente do BC, seja ele quem for, não deva ter foro privilegiado no que diz respeito a processos judiciais. O BC é hoje mais importante e tem mais visibilidade do que muitos dos ministérios. Considerando-se que a jurisdição especial não se destina a proteger o réu, mas a sociedade, que veria reduzido o risco de juízes se deixarem influenciar pela importância e poder do acusado, faz todo o sentido defender a extensão do foro diferenciado para a presidência do BC.

É evidente, porém, que a mudança só deveria ser levada à consideração através de projeto de lei, e num momento em que o debate não estivesse contaminado pela discussão de um caso concreto. A maneira como a medida foi tomada deixou a deplorável sensação de que se forjou às pressas uma lei sob medida para Meirelles, e não um projeto para conferir novo status aos presidentes do BC.’