Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Antonio Brasil

‘Você talvez não tenha percebido, mas só esta semana mais de 200 pessoas morreram no Iraque em diversos ataques muito bem coordenados por todo o país. Apesar de meio ignorada pela imprensa brasileira, a guerra no Iraque continua causando vítimas e espantando o mundo. O que deveria ter sido uma intervenção rápida de uma superpotência contra um pequeno país do Oriente Médio, uma guerra de ‘araque’, a cada dia está se tornando um verdadeiro pesadelo do passado.


Na mesma semana, o fantasma da derrota no Vietnã volta a assombrar a mídia americana. São 30 anos desde a derrota das forças americanas no sudeste asiático. Alguns historiadores de mídia, como o meu colega da Rutgers University Prof. David Greenberg, fazem questão de evitar comparações. Em artigo publicado na revista eletrônica Slate (ver aqui) ‘Saigon and Saddam, The use and abuse of Vietnam analogies’ ou ‘Saigon e Saddam – O uso e abuso de analogias do Vietnã’, o Prof. Greenberg tenta convencer os americanos de que a guerra no Iraque possui características próprias e não deve ser comparada com o Vietnã. Confesso que tenho minhas dúvidas. Saigon pode não ser Saddam. Bem sabemos que a história não se repete de maneira tão simples. Mas, apesar da boa vontade e do patriotismo dos historiadores e da mídia americana, o Iraque, a cada dia, pode estar se tornando um novo Vietnã. Naquela época, apesar da presença maciça das tropas americanas e do apoio da mídia americana, a guerrilha, mais uma vez, provou ser ‘invencível’.


Segundo fontes do Pentágono, há atualmente quase 150 mil soldados americanos no Iraque. A maioria jovens entre 19 e 25 anos. Boa parte desse contingente vem das classes pobres. Eles se alistam por vários motivos. Muitos moravam em pequenas cidades do interior ou nos guetos barra-pesada das grandes metrópoles americanas. Em um país com altos índices de desemprego, a maioria desses jovens está no Iraque porque não conseguiu nada melhor para fazer na vida.


Aqui mesmo na Rutgers University, tem um centro de recrutamento do exército. Apesar dos EUA serem o país mais rico do planeta e a Universidade do Estado de Nova Jersey ser uma instituição pública, os alunos têm que pagar ‘caro’ pelo ensino superior. Não há ensino superior gratuito nos EUA.


Dessa forma, o alistamento militar se torna uma necessidade econômica e não necessariamente uma opção política para boa parte dos jovens americanos. Apesar dos enormes incentivos, nos últimos meses, as forças armadas americanas têm tido enorme dificuldade de recrutar jovens americanos para o serviço militar. Muitos brasileiros desconhecem que poucos americanos estão lutando no Iraque por motivos considerados ‘patrióticos’. Em uma economia com altos índices de desemprego, o alistamento militar pode ser a única e desesperada alternativa para os jovens americanos. Mas quem são, como vivem e o que pensam esses rapazes e moças que lutam e morrem diariamente no Iraque?


Gunner Palace: o palácio dos artilheiros


Gunner Palace, um documentário lançado recentemente nos EUA, tenta responder a essas questões (ver aqui). Foi filmado durante vários meses em Bagdá, logo depois que os EUA anunciaram a ‘vitória esmagadora’ e o fim dos combates em 2003. O filme mostra o cotidiano dos soldados do 3º Regimento de Artilharia de Campo do 2º Batalhão, conhecidos como ‘Gunners’, ou artilheiros. O título do filme se refere à localização dessas tropas. Por ironia do destino, eles estão baseados em um antigo palácio que pertencia a Uday Hassan, um dos filhos de Sadam Huseim. O prédio foi bombardeado pelos ‘Gunners’ e ainda não foi reconstruído. ‘Nós bombardeamos os caras e agora comemoramos com muita festa’, diz um dos soldados. O tal ‘palácio’ está em ruínas, caindo aos pedaços. Mas, a piscina, campo de golfe e outras amenidades são fantásticas e ‘irreais’ para os padrões locais.


Em clima de Reality Show e não de um documentário político, o diretor Michael Tucker faz questão de mostrar que nem tudo na vida de um jovem militar americano e morte ou destruição. Em um exército que inclui rapazes e moças também há momentos de descontração, confraternização, festas, cerveja e muita música.


Além da guerra diária pela sobrevivência, Michael Tucker procurou captar a poesia e as músicas dos jovens soldados americanos no Iraque. No filme, fica evidente que eles não sabem muito bem por que estão ali e por que estão lutando e morrendo. Alguns chegam mesmo a confessar que cometeram um erro e não imaginavam que as condições no exército e no Iraque seriam tão difíceis. A maioria certamente não tinha uma opção melhor. Mas todos fazem questão de dizer que gostariam muito de voltar para casa o mais rápido possível e, de preferência, vivos e inteiros.


‘Buzinaço’ contra a guerra


Muitos brasileiros não conseguem entender que muitos, repito, muitos americanos são totalmente contra a guerra no Iraque. Aqui mesmo em Highland Park, New Jersey, onde moro, debaixo da minha janela, um grupo de manifestantes se reúne todos os sábados de manhã, faça sol, chuva ou neve, para protestar contra a guerra. Determinados contra a guerra, eles fazem o que podem. Carregam cartazes com fotos dos soldados mortos no Iraque, distribuem folhetos e fazem muito barulho. Pedem para que os motoristas, ao passarem, buzinem contra a guerra. É claro que me incomodo. Por que tinha que ser exatamente em baixo da minha janela?


Mas, em verdade, essa pequena manifestação significativa representa muito sobre a sociedade americana. Uma sociedade dividida. Manifestações como essa demonstram que muitos americanos estão dispostos a enfrentar o poder político e lutar contra essa guerra. Trata-se de uma tradição comunitária dos EUA. E produzir bons documentários também pode ser uma forma de se manifestar sobre a guerra.


Gunners Palace é um documentário com estilo bem moderno e televisivo. Contém as previsíveis entrevistas, cenas de ação e imagens do Iraque editadas com um estilo moderno, MTV com muita música e cortes rápidos. Mas a grande vantagem desse documentário é que ele também nos oferece uma oportunidade rara de bisbilhotar o ‘cotidiano’ dos soldados americanos quando não estão lutando ou tentando sobreviver. O diretor, Michael Tucker, consegue fazer o que a imprensa americana não tem conseguido, por vários motivos.


Gunner Palace procura mostrar a incoerência e a ilógica de uma guerra que não tem apoio irrestrito nos EUA. A idéia é mostrar essa ‘loucura’ de forma sutil, pela visão dos soldados americanos. Mostra que, assim como os militantes iraquianos, eles também são vitimas de mais uma guerra sem sentido que enriquece os ricos e mata os pobres.


Este não é um documentário de Michael Moore. A única referencia ao governo Bush está na voz do Secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, em algumas cenas de corte justificando a guerra no Iraque. Apesar das gracinhas e do humor, Gunner Palace certamente não é uma comédia. Ainda segundo o diretor Michael Tucker, ‘o humor é uma coisa realmente importante para esses soldados. O objetivo do filme e mostrar a vida dos soldados norte-americanos no Iraque’.


Cinema Verite ou Reality Show?


Mas se você busca militância e explicações políticas em Gunner Palace, vai sair do cinema decepcionado. Tucker não defende nenhum ponto de vista especial sobre a guerra no Iraque. A impressão é de que quis documentar um mundo muito louco. Em termos cinematográficos, um misto de Apocalypse Now com Loucademia de Polícia.


No filme, ‘os soldados dançam de sunga ao som de uma canção da Motown, na festa ‘Gunnerpalooza 4’, tomando limonada em latas, em lugar de cerveja. Em outros momentos, o filme os mostra tocando violão, se divertindo com joguinhos de computador ou cantando raps sobre a guerra, batucando o ritmo no telhado de seus jipes militares.’


Para mim, o melhor momento do filme é quando um dos ‘gunners’ toca o hino americano – a versão alucinógena de Jimi Hendrix – em contra-luz. Enquanto ele ataca a guitarra e se exibe para a câmera, um religioso muçulmano recita aos berros o alcorão em alto-falante próximo. (Veja o trailer aqui). É mais do que uma cena bonita de um bom documentário. Essas imagens representam um choque cultural. Explicam melhor do que muitas ‘bobagens’ ditas e escritas sobre a guerra no Iraque.


Gunners Palace é imperdível! Em meio a uma mídia internacional indiferente ou dominada por tantas distorções e ingenuidades, o documentário de Michael Tucker tem seus méritos. O mais importante é que o documentário tem objetivos modestos. Não tenta explicar o inexplicável. Em um dos seus melhores momentos, um soldado americano encara a câmera, desafia o público e vai direto ao assunto: ‘Se você é um cara que tem um emprego de 9h às 17h e costuma reclamar todos os dias que a pizza atrasou, com certeza, não vai entender como é a nossa vida no Iraque!’.


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ORIENTE MÉDIO
Gustavo Chacra


‘Conflito no Oriente Médio muda face do anti-semitismo’, copyright Folha de S. Paulo, 15/05/05


‘O anti-semitismo mudou a sua face nos últimos tempos, sofrendo reflexos cada vez maiores do conflito no Oriente Médio. Para complicar, a internet difunde idéias de ódio aos judeus que antes era restritas apenas a pequenos círculos. A opinião é de David Levy-Bentolila, presidente do braço europeu da B’nai B’rith, entidade criada em 1843 com o objetivo de defender os direitos humanos e combater o anti-semitismo.


Em entrevista à Folha, Levy-Bentolila criticou também parte da imprensa porque, segundo ele, desinforma o leitor ao dar sempre destaque aos aspectos negativos de Israel e ocultar acontecimentos contrários à causa palestina. Leia a seguir trechos da entrevista.


Folha – O crescimento do anti-semitismo registrado nos últimos meses é um reflexo da ascensão do neonazismo em países europeus ou de movimentos islâmicos?


David Levy-Bentolila – O judaísmo atravessou épocas de sofrimento que datam de mais de 2.000 anos. Hoje o que era anti-semitismo clássico está praticamente resolvido desde que o Vaticano definiu sua oposição. Mas vemos um crescimento de novos movimentos anti-semitas. Não se pode, naturalmente, isolar isso da problemática do Oriente Médio e do crescimento internacional do fundamentalismo islâmico. Tudo isso contribui para o aumento. É difícil saber onde há mais anti-semitismo e onde há menos.


Folha – Esses atos têm ligação com ações anti-sionistas? O anti-sionismo e o anti-semitismo caminham juntos?


Bentolila – Existem muitos ismos. Na realidade, o denominador comum de todos eles é destruir os judeus, estejam eles em Israel ou em outros lugares. O anti-sionismo é a forma diplomática do anti-semitismo, já diz uma citação. Às vezes se manifesta contra um indivíduo judeu, às vezes contra toda uma coletividade.


Folha – Comparar Israel com a Alemanha nazista é uma forma de anti-semitismo?


Bentolila – Sem dúvida. O contexto do Oriente Médio teve uma influência capital, e todo o processo afetou este fenômeno. Quando eclodiu a Guerra do Iraque, muitas pessoas saíram às ruas de Paris para gritar ‘morte aos judeus’. Foram colocadas suásticas no lugar das estrelas na bandeira dos EUA. É importante falar o que se passou com a terminologia. Hoje, devido à conferência de Durban [conferência da ONU contra o racismo em 2001], várias expressões que não se imaginava que pudessem ser utilizadas, como classificar Israel como um regime de apartheid, como um ocupante, e outros adjetivos similares, passaram a ser utilizadas. Usaram esses termos apenas para Israel.


Folha – Qual a diferença entre ser pró-Palestina e ser anti-semita? Onde fica a fronteira?


Bentolila – Na realidade, não há fronteira. O que não pode é ser anti-semita. Isso é uma discriminação. Não podemos, por outro lado, impedir que a causa palestina tenha simpatias. Como todas as causas, há oposição e simpatia. Mas isso não significa que, para um viver, o outro tem de morrer.


Folha – Quando uma pessoa diz que Jerusalém Oriental deve ser a capital de um Estado palestino, ela está sendo anti-semita? Falar contra o muro que Israel está construindo é ser anti-semita?


Bentolila – Nossa oposição é claro: defendemos os direitos humanos e o direito à livre expressão. Se alguém expressa a sua opinião de uma forma nobre, temos de respeitar, que aceitar. Podemos debater, com um tentando convencer o outro. Mas tem de ser de uma forma nobre. Quando há um debate construtivo, com boas intenções, não se pode dizer que se trata de uma atitude anti-semita. Porém, quando há uma ação sistemática, como ocorre na ONU, com os Estados votando contra Israel, não se pode aceitar.


Folha – Então algumas resoluções da ONU são anti-semitas?


Bentolila – Não se pode dizer que sejam favoráveis a Israel.


Folha – Quando se pede que Israel desocupe as colinas do Golã, é anti-semitismo?


Bentolila – Não se deve confundir os processos políticos e o fenômeno do anti-semitismo. Ser anti-semita é rechaçar o outro somente pelo fato de ele ser judeu. É isso que se precisa levar em conta.


Desde um ponto de vista conceitual, anti-semitismo é um termo recente. Antes se falava do antijudaísmo, no qual havia o rechaço do indivíduo por ele ser judeu. O anti-semitismo é o rechaço do indivíduo e do grupo.


Folha – Por que está crescendo o revisionismo do Holocausto? Por que há tanta gente interessada nesse tipo de trabalho?


Bentolila – Esse não é um problema novo. Uma vez mais voltamos à problemática do conflito árabe-israelense, envolvendo os simpatizantes de um lado e os de outro. Além disso, os novos meios facilitam a difusão das idéias de qualquer um. A internet é uma arma terrível. Algumas opiniões que se pretendem científicas estavam restritas a um círculo de pessoas reduzido. Hoje em dia, com a internet, essas pessoas difundem as idéias para o mundo.


Não acredito, por outro lado, que ‘os líderes’ do revisionismo tenham crescido, mas muitas pessoas repetem as suas idéias sem entender do que estão falando.


Folha – E no mundo árabe?


Bentolila – Tudo o que pode molestar Israel é valido para os líderes árabes [inimigos de Israel]. Por isso se utilizam todos os meios. Os ‘Protocolos dos Sábios do Sião’ ainda são publicados e reeditados nesses países.


Folha – Há uma política para melhorar a imagem dos judeus no mundo árabe? Há poucas décadas os judeus viviam bem em Beirute, em Alexandria, em Allepo.


Bentolila – No momento em que houve uma diáspora, que os judeus que vivem nesses países tiveram de se exilar -aliás, pouco se fala dessas pessoas hoje, falam apenas dos refugiados palestinos-, as gerações passaram a se suceder.


A minha geração vivia em perfeita harmonia [com os árabes]. Sempre bem compreendida. A segunda geração, contemporânea dos meus filhos, me respeita, me conhece [como um judeu que nasceu em um pais árabe; Bentolila é marroquino]. Já a terceira não me conhece, não conhece os judeus, não teve contato. Houve uma modificação na estrutura social com a saída dos judeus. Essa geração acredita no que difundem os meios, é mais vulnerável, absorve mais uma propaganda maléfica.


Folha – Há judeus que instrumentalizam o Holocausto?


Bentolila – Esse tipo de atitude não faz parte dos valores judaicos. Muita gente fez fortuna instrumentalizando as coisas, como em Durban, quando a conferência fez aparecer as dificuldades palestinas em detrimento dos judeus.’




FRANÇA
Mario Sergio Conti


‘Pentecostes e Guignols’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 15/05/05


‘Há muitas luas, parei de acompanhar o que se passa na política brasileira. Seus personagens, suas discussões e sobretudo seu encaminhamento geral me provocam um misto de tédio e asco. Não estou completamente por fora porque, de quando em vez, dou uma olhada enviezada nos jornais. Sei que o presidente do Congresso se chama Severino. Que potentados árabes estiveram em Brasília. Que o presidente da República deu uma entrevista coletiva. Mas não me perguntem, digamos, quem é o ministro da Previdência ou quem é o líder da oposição. Creio que não estou perdendo nada.


Acompanho a política francesa com maior interesse. Não porque ela seja mais interessante, mais inteligente, melhor. Não, longe disso. Tal como aí, os políticos são profissionais da mentira, gente desprezível. Acompanho a polca dos egos apenas para perceber as diferenças de detalhe em relação à política brasileira. A maior diferença está, acho, na organização. Os franceses são mais organizados. Só isso. Logo, perdem menos tempo com bobagens. E providenciam, ocasionalmente, alguns divertimentos. Nesta semana, por exemplo, um anônimo partidário da rejeição da Constituição européia fez uma manifestação original: desfilou nu no Senado.


O primeiro-ministro chama-se Jean-Pierre Raffarin. Ninguém o leva a sério, nem o presidente da República. Sua popularidade sempre foi baixíssima. Há pouco, ele foi internado às pressas. Tiraram-lhe a vesícula biliar. Ninguém deu bola. Os jornais jogaram o assunto nas páginas internas, em notícias discretas. Nem fizeram desenhinhos localizando a vesícula no corpo. De minha parte, torci para que Raffarin tivesse uma síncope qualquer e morresse. Só para agitar um pouco o ambiente, ver um enterro solene, contemplar os profisionais da política, compungidos, elogiarem o estadista – e se digladiarem para ocuparem o cargo vago. E, é claro, para ver a reação dos Guignols.


***


Os Guignols são uma das melhores coisas da França. É um programa de televisão que vai ao ar diariamente, de segunda a sexta-feira. Dura só dez minutos. E, como indica o nome, seus protagonistas são fantoches. Ele é levado ao ar pouco antes das oito da noite pelo Canal +. Tem a forma de um telejornal. Não de qualquer telejornal, mas do ‘20 Horas’, o de maior audiência, que vai ao ar minutos depois na TF1. O apresentador dos Guignols é um fantoche do apresentador de verdade da TF1, Patrick Poivre D’Arvor: tem a mesma voz, mas orelhas exageradíssimas. Todo mundo que vê televisão vê os Guignols. Eles são tema constante de conversas. É o melhor programa de televisão que já vi.


Os Guignols satirizam o noticiário do dia. Não é que eles sejam engraçados. São engraçadíssimos. Mesmo porque não estão para brincadeira. Eles pegam pesado. Pegam pesado com todo o mundo: direita, esquerda, religiosos, minorias, americanos, alemães, ingleses, todos. E acertam, sempre, ao realçar as caracterísicas dos personagens que satirizam.


Quando João Paulo II agonizava, por exemplo, os telejornais entraram logo na onda, impingindo imagens de sofrimento, melodrama, comentários pios. Já os Guignols mostravam o polaco pela boa sete, aferrado ao trono, tentando falar a todo custo. Bento XVI foi saudado com uma festa de aplausos na televisão quando foi eleito. E os Guignols mostram o novo papa fazendo a saudação nazista e lhe botaram o nome de Adolfo II. A igreja católica protestou. O Canal + pediu desculpas pelo esquete. Os Guignols, não.


Os políticos, é compreensível, detestam os Guignols. Ou melhor: só gostam quando eles pegam os adversários para Cristo. Não é que os Guignols sejam contra os políticos. Eles apenas captam a sua hipocrisia, a sua lenga-lenga, as suas mentiras. Mostram, em suma, que eles não valem nada, que são pobres diabos empolados. E isso é considerado subversão.


Tanto que, agora mesmo, um ex-agente da DST, a Diretoria de Vigilância do Território (o equivalente francês da CIA americana) lançou um livro escandaloso. E contou que os telefones, e-mails, o local de trabalho e moradias do chefe dos Gignols eram sistematicamente bisbilhotados. Segundo o ex-agente, era o responsável pela segurança do Canal + que os vigiava clandestinamente. Mas como o tal diretor de segurança da estação de TV veio da Polícia, ficou a dúvida se eram os patrões ou o Estado que queriam saber se os Guignols compravam drogas, tinham amantes, cometiam ilegalidades e podiam ser chantageados. O diretor teve de pedir demissão.


É de cair o queixo que, dia após dia, regindo de imediato aos acontecimentos e notícias, os Guigols mantenham um gume tão afiado. Sem concessões, sem elogios disfarçados, sem apelação, palavrões, sexo. Negatividade pura: humor.


Jean-Pierre Raffarin é uma das vítimas preferenciais dos Guignols.


***


Raffarin, esse zero à esquerda, achou que devia dar uma resposta à onda de calor de 2004, que matou quinze mil velhinhos. Veio com a idéia de acabar com o feriado da Segunda-feira de Pentecostes. Tudo que fosse produzido no quinquagésimo dia depois da Páscoa reverteria em benefício de asilos e hospitais para os, como diz o jargão, da terceira idade. O primeiro-ministro vendeu sua idéia como ‘um dia de solidariedade’ da nação para com seus maiores. A Assembléia Nacional, inclusive o Partido Socialista, docilmente aprovou a demagogia. Na época, houve alguns resmungos aqui e ali.


Entre os queixosos estavam os católicos. Eles reclamavam da supressão ter caído logo sobre uma festa que lhes é cara. Por que não suprimir o 14 de Julho, a data nacional laica, e logo o dia de celebração do Espírito Santo?, indagaram bispos. Alguns sindicatos perceberam claramente o embuste: os franceses estão sendo chamados a trabalhar sem remuneração durante um dia, disseram eles


Mas como o ambiente era de comoção (e culpa) com a mortandade, não se deu bola para os eternos insatisfeitos, o troço foi aprovado e se esqueceu o assunto. Até porque a supressão só entraria em vigor dentro de dois anos.


***


Passaram os dois anos e Pentecostes chegou: 16 de maio. Aí todo mundo caiu de pau no Raffarin, não apenas os Guignols. Foi quando o feriadão prolongado se aproximou que os franceses perceberam que teriam de trabalhar, que não poderiam viajar, descansar, ficar de papo para o ar. Pior: que teriam de trabalhar de graça.


Surgiram algumas discussões bizantinas: como os choferes de táxi se engajariam na jornada nacional pró-velhos? E as babás? E houve paradoxos: partidos e associações que defendem o ateísmo defendendo uma festa católica.


Mas, no grosso, o que se viu é que ninguém queria trabalhar, ninguém acreditava que os velhinhos melhorarão de vida. Raffarin regiu: botou o ar uma campanha culpabilizando a população. Coisas como um cartaz, mostrando uma velha alquebrada, perguntando se você quer que essa mulher valorosa passe dificuldades no verão.


Não deu certo. As centrais sindicais convocaram greves. Raffarin conseguiu trocar um feriado por uma greve geral. E aumentou a sua impopularidade.’