Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

As tramas de um cinema

Vila Boa de Goyaz, 13 de maio de 1909. Moças e suas mães penteavam os cabelos, senhores ajeitavam seus ternos, lustravam os sapatos e mandavam reservar suas entradas na Pharmacia S. Domingos ou na casa dos ilustríssimos Felippe Baptista e Bichara Saddi. O convite estava feito e um frenesi instaurava-se pela notícia de que ali, na capital de Goiás, seria possível conferir a ‘imagem em movimento’ dos irmãos Lumière que, em 28 de dezembro de 1895, surpreendera os parisienses.

Cartazes publicitários registraram o singular momento da chegada do ‘Cinema Goyano’, além de constarem a programação exibida. Um detalhe é a presença da banda musical do batalhão policial, posto a não existência do cinema ‘falado’. As sessões dessa primeira sala funcionaram até o ano de 1934. Vila Boa contou com o Cinema Luzo Brasileiro, 1914, que inseriu músicas de fundo durante as exibições e o Cinema Íris, inaugurado em 1919, fechado em 1923 e reaberto no mesmo ano, intitulado ‘Ideal’. Em fevereiro de 1937 esmaeceu-se a presença de orquestras, pois temos a chegada do Cine Progresso e a sonorização dos filmes (LEÃO e BENFICA, 2009).

A estreia do cinema ‘falado’ em Goyaz é concomitante à despedida da cidade como centro da administração pública do estado. O processo de transição manifesta-se em 24 de outubro de 1933, com o lançamento da pedra fundamental de Goiânia, e materializa-se com o Decreto nº 1.816, de 23 de março de 1937, concretizando-se com sua inauguração oficial em 1942 (QUINTELA e CASTRO, 2007).

O cine Poeira

O primeiro cinema da infanta capital, em verdade, era localizado no extinto município de Campinas, que se tornou um bairro de Goiânia em 1935. A abertura de suas portas deu-se aos 13 de junho de 1936 e seu nome, Cine Teatro Campinas, foi escolhido por um concurso público tendo como vencedora a proposta de Antônio Leão Teixeira. A primeira sala, localizada na região central, foi inaugurada em outubro de 1939 e nomeada a priori Cine Popular, posteriormente foi rebatizada como Santa Maria. O proprietário do pioneiro empreendimento era o português Alípio Ferreira e o primeiro filme exibido foi The Man Who Dared, dirigido por Crane Wilbur, EUA, 1939 (LEÃO e BENFICA, 2009).

O Santa Maria, desde sua estabanada inauguração em 1939, recebeu o peculiar apelido de Cine Poeira. A sala foi edificada com escassez de recursos e a falta de mobiliário adequado, em especial suas cadeiras que não obedeciam a um padrão, com fileiras compostas de distintos materiais de fabricação e tamanho. O jornalista Alaor Barbosa, ao rememorar o ‘Santa’ em uma crônica no jornal Diário da Manhã, o descreve como singular, mesmo que seja arquitetonicamente pobre e simples. O cinema converteu-se em um testemunho da embrionária cidade.

A reputação do ‘Santa Maria’ já não era das melhores desde seu início. Sua estrutura modesta, a ausência de decoração pomposa e de filmes de arte o transformou em um espaço marcadamente popular. O cinema preferido das classes mais abastadas era indubitavelmente o Cine Goiás, atual Teatro Goiânia, na Avenida Tocantins. Nos tempos em que pessoas ‘distintas’ compunham a vida cultural da cidade, ir ao cinema significava um compromisso público, implicando uma vestimenta adequada, como também posturas e trejeitos que aparentassem maior erudição e nível econômico. O Cine Santa Maria, em finais dos anos de 1970, começou a exibir além de suas fitas clássicas, as brasileiríssimas pornochanchadas. Contudo, foi instituída uma ‘sessão da meia noite’. De caráter privativo e androcêntrico, levou para a sala da Rua 24 muitos homens ávidos por visualizações carnais.

A representação pornográfica

A pornochanchada refletiu uma onda de afrouxamento moral experimentada pela sociedade brasileira entre os anos sessenta e setenta, sendo uma das formas de tematizar a revolução sexual. O humor e as situações inesperadas juntavam-se com a nudez e a encenação sexual, em uma receita que conquistou o apelo popular (ABREU, 2002). Esta permissividade sentida em nosso país possibilitou que a pornografia protagonizasse as tramas de muitas salas de cinema, que fechariam suas portas se não buscassem em outro argumento uma forma de se manter no mercado. Inúmeras pessoas adentravam pelas cortinas para ver melodramas que traziam consagrados estereótipos, como o garanhão cafajeste, a virgem profissional, o velho tarado, a frígida gostosa, a moça liberada, o marido inadimplente, a esposa em erupção, a titia malandrona e o safado engravatado (GARDNIER, 2001).

A redução de espaços de exibição cinematográfica está engendrada ao surgimento da televisão e ao aprimoramento das tecnologias comunicacionais. A indústria do cinema aliou-se com a televisiva, gerando uma simbiose. Tal relação beneficiou especialmente o mercado norte-americano, fragilizando as salas brasileiras. A consolidação da TV em nosso país, a partir dos anos sessenta, é simultânea ao processo de fechamento dos cinemas. A extinção ampliou-se com a popularização do videocassete na década de 1970 e tal processo se acentua com a chegada do DVD e maior acesso da população à internet e TV por assinatura (LEÃO e BENFICA, 2009).

A violência urbana é outro fator que intensificou o fechamento dos cinemas tradicionais e a consolidação dos complexos de exibição em shopping centers. Em Goiânia, o centro da cidade contava com os cines Astor, Capri, Casablanca, Cultura, Ouro, Presidente e Ritz, sendo o último a única sala de cinema de rua convencional, privada, em funcionamento na cidade. Gradualmente, estes locais foram desaparecendo. Novas zonas surgiram e se solidificaram, com autonomia do centro, com uma rede de serviços e comércios satisfatórios. As atuais configurações das salas centrais não destoam das demais capitais brasileiras. O abandono dessa região da cidade e a debandada rumos aos shopping centers é inquestionável, tal como a relação entre indivíduos e a sétima arte não é a mesma de décadas atrás.

A inserção da pornografia nesses antigos espaços cinematográficos conforma-se justamente no momento em que as regiões centrais das cidades perdem parte do seu simbolismo, em um processo de abandono, sendo associadas à violência, prostituição e marginalidade (VALE, 2000). Nesse cenário, ano de 1994, o Cine Santa Maria encerra a exibição de seus filmes ‘clássicos’. Dois anos de inatividade e esquecimento se passaram até a sua reinauguração. Em 1996, a sala que carrega o nome da mãe de ‘Cristo’ reabre suas portas, apaga suas luzes, liga o projetor e tem em suas telas, exclusivamente, a representação pornográfica.

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Professor universitário, graduado em comunicação social e mestrando em cultura visual pela Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO