Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Carlos Chaparro

‘O XIS DA QUESTÃO – Para o melhor entendimento do sucesso comunicativo de João Paulo II, deve-se lembrar, preliminarmente, que ele foi o primeiro Papa da era dos satélites. E atraiu a mídia porque, desde o início do seu papado, fazia parte da sua personalidade e da sua história um formidável conjunto de atributos de noticiabilidade, que o acompanharam além da morte.

1. Homem e mito

Ao sepultar João Paulo II, a humanidade o eterniza, com força de mito universal. O homem está morto e sepultado. Mas o mito continuará a exercer sobre o mundo o fascínio irresistível de alguém com um poder incomum de influenciar mentes e corações. Influenciando mentes e corações, ele transformou profundamente cenários essenciais da Igreja e do mundo. Construiu e exerceu um poder que, ao longo dos 26 anos de papado, se expandiu continuamente, pelo uso persistente da palavra clara, para afirmar posições em conflitos e polêmicas do seu tempo.

Por tudo o que fez e disse, e pelas formas como disse e fez, João Paulo II passa à História como o mais surpreendente fenômeno de comunicação do mundo moderno. Jamais alguém alcançou os sucessos comunicativos como os que fizeram desse Papa a mais influente figura da História contemporânea.

Calcula-se que, só nos três primeiros dias após a morte, 75 mil reportagens foram feitas na totalidade das fronteiras do jornalismo mundial. E a longa cerimônia de sepultamento serviu como síntese do extraordinário fascínio que o polonês Karol Wojtyla exerceu sobre o jornalismo e os jornalistas do seu tempo. Foi a maior cerimônia televisionada do mundo ocidental e a que mais ampla universalização alcançou, na História da comunicação jornalística.

Não constitui ousadia dizer que a morte e o sepultamento do Papa receberam da televisão do mundo inteiro mais tempo e investimentos de cobertura do que o atentado de 11 de setembro.

O colega Antonio Brasil caracterizou o fenômeno de João Paulo II como o sucesso de um Papa Pop. É uma forma de entender e explicar o sucesso. Mas creio que é bem mais do que isso. Até porque – tal como aconteceu no sepultamento – o fenômeno João Paulo II resultou muito mais do interesse da mídia pelo Papa do que da dinâmica inversa.

2. Atributos de noticiabilidade

Na análise a ser feita, e para o melhor entendimento do sucesso comunicativo de João Paulo II, deve-se lembrar, preliminarmente, que nenhum dos seus antecessores dispôs dos mesmos recursos tecnológicos de difusão. João Paulo II foi o primeiro Papa da era dos satélites. Não precisou fazer apelos às mídias para falar ao mundo. E no mundo agiu, com a palavra e a imagem difundidas universal e instantaneamente.

Desde o início do seu papado, tornou-se exuberante em João Paulo II um formidável conjunto de atributos de noticiabilidade, que o acompanharam além da morte. O primeiro e decisivo atributo associado à significação simbólica de João Paulo II, e que fascinou a mídia, foi a surpresa da escolha do seu nome, no conclave de 1978. Além de polonês, e de não ser a principal figura da Igreja da Polônia, o cardeal Karol Wojtyla tinha apenas 58 anos.

Tantos e tão fortes foram os atributos de noticiabilidade na personalidade e na história pessoal de João Paulo II, que ele pouco precisou fazer para atrair câmeras e microfones. Para alguns especialistas em televisão, com os quais conversei, chega até a ser surpreendente a pobreza e a mesmice da linguagem ritual de suas aparições em público. Em todo o seu tempo de papa comunicador, apenas duas imagens, e com gestuais repetidos, ficaram marcadas no imaginário interpretante das multidões: as aparições na janela dos seus aposentos e o beijo no solo dos países visitados. Um show de redundâncias, como diria um daqueles especialistas a quem consultei. Mas foram imagens tão fortes que em torno delas se motivaram as expectativas universais e se organizaram os signos da interpretação simbólica que construíram a imagem do papa polonês.

De qualquer forma, ninguém lhe rouba o título de líder universal que mais contato teve com seres humanos, e isso graças à vocação peregrina que o levou a viajar por quase todos os quadrantes do mundo.

3. Liga do Humanismo

Além de tudo, João Paulo II teve o fascínio das contradições. Nas coisas do mundo, foi um progressista. Em nenhum momento silenciou, quando em causa estavam a paz , a liberdade, a dignidade humana, a justiça, valores que elaboram a argumentação dos direitos humanos. Foi contra as invasões militares americanas, defendeu os direitos palestinos, condenou o embargo imposto a Cuba, criticou severamente a desumanidade do capitalismo, responsabilizou os ricos pela injustiça da pobreza e da fome. Em defesa da liberdade, se tornou a mais influente voz do planeta, na reelaboração ideológica do mundo.

Nas coisas da fé, foi um conservador, implacável defensor da disciplina religiosa, quando em causa estavam as verdades dogmáticas do cristianismo, os valores morais zelados pela tradição e a obediência hierárquica (tanto no fazer quanto no pensar).

É bom lembrar que, para sobreviver, as instituições se tornam inevitavelmente conservadoras. E sob a perspectiva institucional, João Paulo II atribuiu a si próprio a missão de acalmar os ventos pós-conciliares, de rebeldia doutrinária e experimentação litúrgica.

Quem viveu esses tempos e sentiu tais ventos, lembra-se de uma Igreja de identidade diluída em dúvidas e contradições, por vezes incompreensíveis. Cada bispo tinha verdades próprias, cada pregador oferecia a sua interpretação particular do Evangelho, para explicar o mundo.

Para controlar as rebeldias, João Paulo II produziu um enorme acervo de idéias e normas, em encíclicas, livros, cartas, homilias e outros tipos de textos. E assim preservou crenças e costumes da coerência institucional da Igreja.

No muito que disse e mandou, João Paulo II silenciou, esvaziou ou privou de poder os pólos de rebeldia teológica e ideológica, em especial os ligados à teologia da libertação de argumentação marxista, na América Latina, e aos bispos liberais da Europa.

Apesar do conservadorismo eclesial que marcou o seu papado, João Paulo II consolidou, nos comportamentos da Igreja, o mais importante avanço produzido pelo Concílio Vaticano II – o avanço da tolerância e do respeito ao outro, na convivência religiosa. Faz parte desse avanço, o reconhecimento público dos mais cabeludos pecados históricos do catolicismo, pelos quais o papa pediu perdão (aos judeus, aos índios e aos africanos, por exemplo).

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Porque foi um papa conservador, João Paulo II lega ao sucessor uma Igreja institucionalmente mais forte e coesa, sustentada em convicções de fé e de conduta com força de ‘verdades bíblicas’. Ao mesmo tempo, entrega ao futuro papa uma igreja corajosamente falante ante as agressões à paz, à exclusão social, à dignidade humana e à igualdade dos povos.

De alguma forma, o Brasil é boa amostra das mudanças impostas à Igreja por João Paulo II. As Comunidades Eclesiais de Base de militância ideologicamente esquerdista não existem mais. A teologia e os teólogos da libertação que misturavam verdades cristãs e verdades marxistas nos modos de ver e entender o mundo, também são coisa do passado E a CNBB, já sem divisões nem polêmicas entre conservadores e progressistas, consegue ainda ser uma entidade vigilante e crítica, mas numa linha que, de alguma forma, se inspira nas propostas humanistas de João Paulo II, aqui deixadas na viagem de 1980.

Nessa sua viagem ao Brasil, quando no Estádio do Morumbi falou a mais de 100 mil trabalhadores, o Papa peregrino rejeitou a luta de classes como método ou justificativa de ação. E convidou as várias teologias e militâncias a olhar o mundo como ‘uma sociedade que precisa ser replanejada em função do Homem e não em função de sistemas ou ideologias’.

João Paulo II fundiu as suas contradições na liga do humanismo. E na visão de mundo anunciada aos trabalhadores no Estádio do Morumbi pode estar a razão de ser do enorme fascínio que exerceu sobre a humanidade.’



Clóvis Rossi

‘O comunismo e a ciência’, copyright Folha de S. Paulo, 6/04/05

‘De certa forma, a guerra que o próximo papa terá pela frente é muito mais complicada do que aquela que João Paulo 2º enfrentou -e venceu. Mesmo que não se aceite a tese de que o papa foi essencial para a queda do comunismo, resta o fato de que, no mínimo, ele estava do lado vencedor.

Escolher um lado durante a Guerra Fria podia representar riscos se quem o fazia vivia em um país comunista, mas, do ponto de vista doutrinário, era mais fácil.

A perseguição à igreja, por si só, indicava a absoluta impossibilidade de escolher o lado comunista, por mais que os teólogos da libertação tenham utilizado o instrumental marxista para analisar a realidade.

Agora não é assim. Os cientistas que fazem pesquisas com células-tronco ou os jovens que vão à missa todos os domingos, mas, não obstante, usam camisinha para manter relações sexuais fora do casamento, não perseguem padres nem proíbem os amigos de freqüentar a igreja.

De mais a mais, fenômenos como a Aids e as pesquisas com células-tronco são recentíssimos. Não havia nem sombra deles nos tempos de Jesus e, portanto, toda e qualquer interpretação sobre o que a Bíblia possa dizer a respeito de um e de outro não passa disso, de interpretação, com toda a dose de subjetividade decorrente.

Vinicius Torres Freire escreveu neste mesmo espaço, na segunda-feira, que esse tipo de tema pode estar na agenda do mundo, mas não está na da igreja, pelo menos no que diz respeito ao conclave que elegerá o papa. Não será decidido, a julgar pelas (poucas) informações disponíveis, por essa questão. A igreja e o mundo têm tempos diferentes.

Mas não vai ser possível adiar por muito tempo o debate sobre essas questões, por difícil que seja. Combater o comunismo era uma coisa -ninguém, ou muito pouca gente, abandonava a igreja por isso. Outra coisa é combater a ciência. Aí os riscos de isolamento são enormes.’



Carlos Heitor Cony

‘Do diário de um editor’, copyright Folha de S. Paulo, 8/04/05

‘Dezesseis de outubro de 1978. Pouco mais de 13h no Rio de Janeiro. Em Roma, seriam quase 18h. Mais alguns minutos e a chaminé da capela Sistina soltaria no ar uma fumaça, e a cor dessa fumaça (por mais anacrônico que parecesse numa época de comunicações eletrônicas) seria importante para o mundo. Diante dos teletipos, na minha sala de editor, eu olhava as três máquinas que se moviam sozinhas, comandadas pelas centrais das agências que operavam conosco.

As bobinas de papel rolavam, a fita roxa imprimindo os telegramas que não me interessavam. A qualquer instante, todas as notícias se deteriam para informar a cor da fumaça que sairia da capela Sistina.

Era o segundo dia do conclave e, no segundo dia, era o oitavo escrutínio. Seria a oitava tentativa dos 111 cardeais de obter um novo chefe para a Igreja Católica.

De repente, o teletipo da France Presse interrompeu o telegrama que enviava, as teclas ameaçaram imprimir alguma coisa, a tira de papel rodou vários espaços e, logo em seguida, as duas máquinas restantes também pararam, com a mesma indecisão, até que, ao mesmo tempo, a fita roxa dos três teletipos deixou gravada no papel: ‘Cidade do Vaticano -Foi eleito o novo papa. Repetimos: foi eleito o novo papa’.

O aparelho de TV em cima de minha mesa entrou com uma edição extraordinária, limitando-se a repetir a mesma frase: o novo papa fora eleito. Apesar dos 10 mil quilômetros que me separavam da praça São Pedro, eu compreendia a indecisão da notícia. Nos sete escrutínios anteriores, a fumaça que saíra da chaminé não era preta nem branca, mas cinzenta. Creio que não fui o único a ficar revoltado contra esse tipo de comunicação. Imaginava 111 homens que haviam chegado ao cardinalato, alguns deles notáveis pelo saber profano ou religioso, muitos deles provenientes de países altamente industrializados, e, de repente, ficávamos todos dependendo da eficiência de uma velha chaminé.

Bem, temos o papa. Daqui a pouco, a sacada principal da basílica de São Pedro se abrirá, o cardeal Pericle Felici, a menos que tenha sido o eleito, pronunciará as palavras da tradição. Como bom latinista, exagerará nos acusativos, ‘gaudiummmm’, ‘magnummmm’, ‘papammmmm’ (‘Núncio vobis gaudium magnum’).

Continuei diante dos teletipos, que agora estavam parados. Passaram-se dez, 15 minutos. Eu me lembrava de dois meses antes, quando fiquei à espera da mesma revelação. Paulo 6º morrera em Castelgandolfo. Sua sucessão fora também uma surpresa. Albino Luciani, patriarca de Veneza, não estava entre os cotados, mas o retrato falado do novo papa levaria, primeiro, a um italiano, segundo, a um italiano não ligado à Cúria Romana e, terceiro, a um homem cuja santidade se imporia aos cardeais divididos em conciliares, progressistas, curialistas e até terceiro-mundistas.

Colocadas essas coordenadas numa lista, sobrariam três ou quatro nomes – e Albino Luciani era o mais notável deles. No conclave daquele mesmo ano, anotara o nome dele entre os ‘papáveis’ com chances depois dos três primeiros escrutínios, quando as forças de cada grupo seriam contadas, pesadas, divididas e, finalmente, somadas.

No quarto escrutínio daquele dia, a fumaça saíra branca -estranhamente branca-, logo ficara preta, depois clareara novamente: nunca se deve descrer de uma velha chaminé. Lembrava o rosto redondo de Pericle Felici, rindo à toa para anunciar o nome de Albino Luciani. E foi um impacto: apareceu na sacada de São Pedro uma espécie de tio que todos temos em algum lugar, um homem que sorria porque, para ele, a vida em si é uma dádiva.

O novo papa havia sido um achado dos cardeais que sentiram a barra pesada demais para entregar o governo da igreja a um dos grupos e, na dúvida, optaram pelo bom senso, pelo óbvio. Eu havia conhecido Albino Luciani quatro anos antes, em Veneza. Fazia frio, entrara na basílica de São Marcos para fugir da chuva e, lá dentro, encontrara um padre que conversava com alguns fiéis, concentrados nas primeiras filas. Era conversa mesmo, e não um sermão, pois logo aquele padre perguntou de onde eu era e o que fazia. Tinha o jeito de parente mais velho, curioso de saber como vai a família. Logo identifiquei naquele padre o patriarca de Veneza e aproveitei a ocasião para exercer a minha profissão. Entre as perguntas que lhe fiz, a mais impiedosa foi sobre Roma, o que ele achava de Roma, ou seja, da Cúria, da remota possibilidade de um dia chegar a papa.

O cardeal Luciani respondeu com o sorriso que mais tarde iluminaria o mundo: ‘Meu filho, eu sou um padre que gosta de batizar crianças’. Por mais que pareça anedótico, ali estava todo um programa de pontificado, um pontificado que começaria naquele sábado, 26 de agosto. Roma tem seus segredos. Pode ser que alguns dignitários romanos tenham desaprendido como se batiza uma criança, mas aprenderam, por gosto ou necessidade, todos os trancos de uma administração que, além das responsabilidades inerentes a qualquer administração humana, tem o encargo de conduzir o patrimônio espiritual, a herança sobrenatural de milhões de seres humanos.

Esses trancos, que amarguraram até quase ao desânimo os últimos anos de Paulo 6º, seriam pesados para aquele bom homem de origem aldeã, que gostava de citar Pinochio e Tom Sawyer, um homem que não era exatamente deste mundo, pertencendo talvez ao universo mágico e encantado dos mitos afetivos que cultuamos desde a infância. O sorriso de João Paulo 1º durou o espaço de 33 dias -muito para um recado, pouquíssimo para um pontificado.’