Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Carlos Eduardo Lins da Silva

‘No dia 24 de maio último, o presidente George W. Bush, em horário nobre para a televisão americana, discursou sobre o futuro do Iraque. Nenhuma das grandes redes nacionais de sinal aberto (ABC, CBS e NBC) transmitiu o pronunciamento ao vivo.

Os EUA estão em guerra e ela é um dos tópicos mais importantes da agenda da opinião pública nacional neste ano de eleição para a Presidência do país. Recusar espaço ao comandante-em-chefe das Forças Armadas é uma decisão de grande significado político. Ela representa o ápice de um processo de dois anos e meio em que o jornalismo americano vem recuperando a independência em relação ao Estado; independência essa que o caracterizara por ao menos quatro décadas e da qual parecia ter aberto mão após os atentados terroristas de 11 de Setembro.

Tem sido um percurso repleto de tropeços e de alto custo para a credibilidade de veículos de comunicação que pareciam já imunes a crises de confiança, como ‘The New York Times’ e ‘The Washington Post’, e para jornalistas que se haviam transformado em ícones de coragem, como Dan Rather, o âncora da CBS.

Quem conhece bem a sociedade americana entende por que a mídia em geral vacilou tanto e se entregou quase unanimemente ao vagalhão de patriotismo comovido e cego que se seguiu aos ataques em Nova York e Washington.

O cidadão médio nos EUA, provavelmente mais do que em qualquer outro país, é muito suscetível às noções simplistas de nacionalismo fervoroso. O sentimento coletivo predominante é facilmente centralizado em esquemas maniqueístas e aceita com boa disposição argumentos que defendam a resolução de problemas pela via bélica. Era natural e previsível o suporte irrestrito da maioria dos americanos a palavras de ordem como ‘eixo do mal’ e ‘quem não está conosco está contra nós’, que a administração atual alegremente se apressou em divulgar.

Os jornais, revistas, emissoras de rádio e TV dificilmente resistiriam a tal pressão, ainda mais porque o presidente e o governo foram muito bem-sucedidos em sua pretensão de ser vistos pelos seus compatriotas como a encarnação absoluta dos valores supremos da nação. Quem duvidasse dessa incorporação imediatamente corria o risco de ser tachado de traidor da pátria. Foram pouquíssimos os que não cederam. Algumas revistas de circulação relativamente baixa e restrita aos estratos mais intelectualizados, ao lado de um ou outro colunista de grandes jornais, estiveram entre as exceções e pagaram o preço por isso.

Mas somente os ignorantes dos EUA poderiam ter imaginado que esse comportamento da imprensa e da sociedade americanas não começaria a se alterar paulatinamente, em especial se a Casa Branca, como o fez, passasse a se valer da indignação cidadã provocada pela tragédia para fazer acelerar projetos políticos específicos de seus atuais inquilinos que pudessem ameaçar alguns princípios essenciais do sistema democrático do país. O dinamismo e a diversidade de opiniões são algumas das marcas mais fortes do caráter nacional americano. E são muitos, embora talvez minoritários, os que lá acreditam com entusiasmo no primado da liberdade sobre todos os outros direitos.

A Lei Patriota dos EUA (USA Patriot Act), aprovada de maneira sôfrega cinco semanas após a tragédia e quase unanimemente por um Congresso tão amortecido quanto quase todas as instituições da sociedade, logo se transformou no principal alvo de críticas dos que despertaram à frente do torpor cívico em que a ação da Al Qaeda envolvera o país. Em consonância com essa resistência a princípio incipiente, mas a cada dia maior, jornalistas e meios de comunicação de massa também foram aos poucos se livrando dos constrangimentos que o ambiente jingoísta lhes impunha e reconquistando a desenvoltura que os distinguira no passado recente.

A incompetência assombrosa do governo Bush na condução do pós-guerra no Iraque, com suas inevitáveis conseqüências de alto custo humano, certamente facilitou a decisão de muitos que ainda pudessem estar em dúvida sobre o caminho a seguir. Mas, certamente, diversos órgãos de comunicação têm respondido com vigor a estímulos muitas vezes oriundos de soldados e seus familiares (como os que, por exemplo, encaminharam a jornais e sites da internet as fotos proibidas de caixões com corpos de militares mortos no Iraque ou os flagrantes de tortura na infame prisão de Abu Ghraib).

Para quem crê na absoluta necessidade de haver jornalismo independente e agressivamente crítico em relação ao Estado para garantir a existência de sociedade realmente democrática, os EUA foram, na segunda metade do século 20, um formidável estímulo. É reconfortante perceber que, apesar de o desvio de rota ocorrido a partir de 11 de Setembro de 2001 ainda não estar totalmente superado, neste século eles poderão continuar a desempenhar esse papel.

Carlos Eduardo Lins da Silva, 51, mestre em comunicação pela Michigan State University (EUA), livre-docente e doutor em comunicação pela ECA-USP, é diretor da Patri Relações Governamentais & Políticas Públicas. Foi correspondente da Folha em Washington.’



KISSINGER vs. MAXWELL
Elio Gaspari

‘A bomba que matou Letelier em 1976 acertou Kissinger em 2004’, copyright Folha de S. Paulo, 13/06/04

‘O professor Henry Kissinger e seus amigos tiveram uma má idéia: pressionaram a vetusta instituição do Council on Foreign Relations por causa de uma resenha na qual o professor Kenneth Maxwell (‘A Devassa da Devassa’) mostrava que, como secretário de Estado (1973-1977), ele frangou um atentado patrocinado pela ditadura do general chileno Augusto Pinochet. Não foi um atentado qualquer. Ele aconteceu em 1976, em Washington, a 14 quarteirões da Casa Branca. Explodiram o ex-chanceler chileno Orlando Letelier. Até o 11 de Setembro, esse foi o mais audacioso atentado praticado por estrangeiros em território americano.

Maxwell dirigia o programa latino-americano do conselho e escrevera uma resenha na sua revista (‘Foreign Affairs’) recapitulando a tolerância de Kissinger diante da ditadura chilena.

Durante quase dois meses, deu-se uma polêmica, e ela acabou com Maxwell silenciado. Um desfecho quase convencional. O poderoso (Kissinger) manda, e obedece quem tem juízo (Maxwell). Engano. Ele arrumou a mesa e foi embora. Vai lecionar história do Brasil em Harvard.

O advogado William D. Rogers, um ex-colaborador de Kissinger e atual vice-presidente da sua empresa de consultoria, acusou Maxwell de insinuar que Kissinger poderia ter evitado o assassinato de Letelier. O professor sustenta que documentos divulgados recentemente não insinuam isso. Demonstram.

A decisão de Maxwell de pedir o boné fez com que o caso transbordasse e fosse para as páginas do ‘New York Times’ e da revista ‘The Nation’. Na sexta-feira, renunciou Jeremy Aldeman (Princeton), seu substituto como resenhista na ‘Foreign Affairs’.

É dura a vida de Kissinger. Em 1973, o professor ganhou o Prêmio Nobel da Paz. Em 2004, cobram dele o significado de uma frase dita em 1976 ao chanceler da ditadura militar argentina que estava iniciando uma política de extermínio de dissidentes políticos: ‘Quanto mais rápido vocês prevalecerem, melhor’.

Os generais argentinos prevaleceram, mas sumiram com cerca de 9.000 pessoas. A maior matança ocorrida na América do Sul no século 20.

Os documentos que perseguem a biografia de Kissinger estão todos no seguinte endereço, infelizmente em inglês: http://www.gwu.edu/ºnsarchiv’