Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Carlos Heitor Cony

‘Volto ao assunto das fotos que seriam de Vladimir Herzog na prisão. Perguntaram-me se eu ficara chocado com mais aquela prova das torturas praticadas pelo regime militar. Em se tratando de Herzog, disse que não. Chocou-me, sim, a foto do jornalista assassinado, na montagem criminosa de um suicídio que não houve e no qual ninguém acreditou.

A viúva de Herzog, naturalmente traumatizada pelas fotos agora reveladas, reconheceu uma delas como a do marido, chegando a exibir o relógio que aparece no pulso do torturado e que ela guardou como lembrança. No final da semana passada, admitiu que se enganara, o que também é natural.

As fotos que foram consideradas (erradamente) como instantâneos dos últimos momentos de Herzog, tiveram o mérito de revelar, mais uma vez, a truculência usada pelo regime contra aqueles que não aceitavam a opressão. Bom mesmo que tenha sido de outro prisioneiro, e não de Vladimir. Dele temos a foto definitiva. O cadáver que manchará para sempre aquele período de nossa história.

Guardadas as proporções, e salientando apenas a força das imagens, o que ficou da vida de Cristo foi o corpo pregado na cruz, na solução final de um drama que teve, tal como o de Herzog, dolorosas etapas preliminares. Como símbolo para sua fé, a cristandade não escolheu o Cristo açoitado nem coberto de espinhos, o Cristo caído diversas vezes a caminho do Calvário. O símbolo final e assombroso de seu sacrifício foi o seu próprio corpo pregado na cruz. E, por extensão, a própria cruz, nua, bastante, que até hoje assinala o túmulo dos que acreditam nele, a mesma cruz que é traçada na testa dos cristãos que nascem e dos que morrem.

O corpo de Vladimir Herzog pendurado no porão do Doi-CODI não precisa de antes nem de depois. Ele se basta. Como símbolo de uma era, dispensa explicação. Fala tudo o que devemos ouvir.’



Luis Weis

‘Onde se entrava vivo para sair morto’, copyright O Estado de S. Paulo, 19/10/2004

‘Numa noite de 1976, acendeu-se na redação de uma revista semanal brasileira um tenso debate sobre uma decisão que precisava ser tomada com urgência, por causa do horário de fechamento da edição: publicar ou não a sequência de imagens de um homem primeiro hesitando e depois se jogando para a morte do parapeito de um edifício em chamas, no centro de Porto Alegre.

Os redatores contrários à publicação sabiam que as fotos dessa tragédia eram ‘notícia’, por condensarem a essência da narrativa jornalística de qualquer catástrofe com perda de vidas. Mas argumentaram que a sua divulgação representaria antes uma violência contra uma família enlutada e traumatizada do que um serviço ao leitor.

Esse episódio veio à memória do jornalista quando topou com a primeira página do Correio Braziliense de domingo. Nela, sob o título ‘Herzog, a humilhação antes do assassinato’, explodem duas fotos inimagináveis daquele colega de escola, companheiro de profissão e amigo de muitos anos que a ditadura militar torturou e matou no sábado, 25 de outubro de 1975, no DOI-Codi de São Paulo.

Por que mostrar, 29 anos depois do seu martírio, esse Vlado despido, de frente e de perfil, sentado num banco, o rosto coberto pela mão direita, horas – ou, quem sabe, minutos – antes de receber os choques a que o seu coração não resistiria? A Justiça já não declarara a União responsável pela prisão ilegal, tortura e morte do então diretor de jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog?

A farsa do seu suícidio por enforcamento já não tinha sido também desmascarada? Por que então submeter a viúva, os filhos e a mãe ao tormento de se deparar com algo talvez ainda mais dilacerante, a esta altura, do que os retratos do Vlado morto? Qual o mérito jornalístico em revivê-lo, literalmente nu diante de seus inimigos, nessa Abu Ghraib da Rua Tutóia?

Tem mais. Ainda que se dê ao Correio o benefício da dúvida, é uma história estranha. Segundo a reportagem, transcrita já no domingo pelo Estado de Minas, as fotos – seis ao todo – teriam sido tiradas por um cabo do Exército e estavam esquecidas nos arquivos da comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Não está claro como foram achadas.

Pelo menos duas pessoas receberam algumas delas por e-mail, antes da publicação. A figura da imagem frontal foi reconhecida. A de perfil foi dada como autêntica por analogia. Mas numa terceira foto, que o jornal de Belo Horizonte publicou na primeira página, se vê, à frente de um Vlado difícil de identificar, uma mulher de boca e braços abertos, como se gritasse.

De todo modo, o Correio fez a coisa certa. Ao contrário do caso do suicida de Porto Alegre, neste prevalece o interesse comum. Clarice Herzog honrou a memória do marido ao dar tudo de si para exumar a verdade do seu holocausto. Agora, as suas derradeiras fotos antes da imolação prestam um serviço público: acabam com o último grão de dúvida que ainda pudesse subsistir sobre o que o regime de 1964 fazia com os que entravam vivos para saírem mortos de suas masmorras. * Luiz Weis, jornalista, trabalhou com Vladimir Herzog no Estado, na revista Visão e na TV Cultura. Esteve preso no DOI-CODI’



Luciana Vasconcelos

‘Clarice Herzog está ‘aliviada’ com a certeza de que fotos não são de Vlado’, copyright Radiobrás, 28/10/2004

‘Clarice Herzog, viúva do jornalista Vladimir Herzog, disse que está ‘exausta’, mas ‘aliviada’ com a certeza de que as fotos publicadas pela imprensa não são de seu marido, morto durante a ditadura militar, em 1975. ‘Estou exausta, estou fragilizada, estou esvaziada, estou cansada. Eu me senti aliviada agora porque pelo menos tenho esperança que o Vlado não tenha sido exposto aquela humilhação toda’, afirma em entrevista exclusiva à Radiobrás.

Clarice explicou que uma das fotos mostradas a ela era muito parecida com a de seu marido. ‘Não só eu jurava que era o Vlado, como amigos que o conheceram, partilharam da intimidade dele também estavam convictos que era a foto era do Vlado’, diz.

Após ver uma seqüência de fotos, mostradas pelos ministros Nilmário Miranda e general Jorge Armando Félix hoje em São Paulo, Clarice chegou a conclusão que a pessoa na fotografia não era Herzog. ‘Na medida em que vi várias fotos, não sei se 15 ou 20 (não contei), você vê que não é o Vlado. Várias fotos no mesmo local, em posições diferentes, inclusive de frente. Mas realmente aquela que foi publicada de frente, que é a que eu reconheci e passei muito mal com isso, é de uma semelhança estarrecedora’, ressalta.

Segundo Clarice, a foto que ela reconheceu na época estava muito ruim e com manchas, que ela chegou confundir com pêlos. ‘Quando eu pego e vejo a foto, a gente percebe, são manchas, a pessoa realmente tem o peito mais limpo, sem pêlos’, diz.

A divulgação das fotos levantou a discussão sobre a abertura dos arquivos da ditadura militar. Para Clarice, os documentos devem ser abertos a população. ‘Não importa que não era o Vlado, a discussão já foi feita. De repente a publicação dessas fotos foi o estopim para se voltar a se discutir esse assunto. Então ela, tem uma importância muito grande, apesar de todo o sofrimento da família’, conclui.’



Pedro Malavolta

‘‘Devemos deixar Vlado descansar’, diz rabino Sobel’, copyright Radiobrás, 28/10/2004

‘Uma semana após a morte do jornalista Vladimir Herzog, em 25 de outubro de 1975, mais de oito mil brasileiros participaram de uma missa ecumênica em memória dele, organizada por D. Paulo Evaristo Arns, pelo reverendo James Wright e pelo rabino Henry Sobel. Foi também Sobel um dos responsáveis pelo sepultamento de Vladimir Herzog, que era de origem judaica.

A versão oficial do Exército era a de que Herzog se suicidara na cela em que estava preso no 2. Exército, em São Paulo. Os suicidas judeus são enterrados fora dos muros que cercam seus cemitérios. O jornalista, pelo contrário, foi enterrado com honras, o que, em tempos de censura, dava um recado claro: a comunidade israelita refutava o laudo oficial do governo brasileiro.

Em entrevista à Agência Brasil, o rabino defende a abertura à consulta pública dos documentos secretos de órgãos de investigação e de repressão do Estado. Leia a seguir os principais trechos da conversa.

ABr – Qual é a sua opinião sobre a abertura dos arquivos da ditadura, discussão reaberta com divulgação das supostas fotos de Herzog?

Henry Sobel – Por um lado, é importante recordar o caso Herzog e falar sobre o que aconteceu. É uma maneira de conscientizar os jovens que não viveram aqueles anos sombrios. Toda oportunidade que temos para recordar e transmitir as lições do passado é valiosa, no sentido de fortalecer a nossa rejeição a qualquer forma de ditadura e de abuso de poder. Nesse sentido, eu estou de acordo que devemos realmente abrir os arquivos.

Por outro lado, no caso Herzog – e eu falo exclusivamente no que tange ao caso Herzog – não creio que a abertura dos arquivos traria algo de novo. Já sabemos que Vladimir Herzog foi humilhado, torturado antes de morrer. Sabemos como o governo militar naquela época se comportou em relação a Herzog. Acho que, quando não sabemos dados, fatos, principalmente no que tange aos desaparecidos, é um dever moral reabrir os arquivos. Mas, no que tange a esse caso específico, acho que devemos deixar o Vlado descansar em paz. Deixar a viúva os filhos e mãe, dona Zora, cicatrizar suas feridas. Repito: tudo o que precisamos saber sobre o caso Herzog, já sabemos.

ABr – Qual é a sua opinião sobre a abertura de outros arquivos, como os do Itamaraty, que não são propriamente da ditadura militar?

Sobel – O Itamaraty tem o dever moral de abrir os arquivos, principalmente nos casos que ainda são desconhecidos. Todos temos esse dever para com a sociedade.

ABr – Qual é sua avaliação das supostas fotos de Herzog publicadas pela imprensa?

Sobel – São fotos fortes. Para mim trouxeram vividamente à memória um episódio muito doloroso. Isto em si é muito importante.

ABr – Como foram os dias da prisão e morte de Vladmir Herzog?

Sobel – Foram dias dramáticos e traumáticos. Quando os jornais noticiaram a morte de Herzog, foi realmente um choque, especialmente porque a explicação oficial divulgada pelas Forças Armadas foi que ele havia se suicidado. No dia do enterro, o meu pessoal, a Chevra Kadisha – o comitê funerário da Congregação Israelense Paulista -, verificou que ele foi torturado. Aquilo que eles viram no corpo dele era prova de tortura. Ele não morreu por suicídio não.

Por isso, ele foi sepultado com todas as honras que eram devidas a ele como judeu, como brasileiro, como ser humano. De acordo com a lei judaica, um suicida é enterrado na periferia do cemitério, como forma de condenar visivelmente pelo pecado cometido por aquele que depôs a própria vida. Não foi esse o caso de Vladimir Herzog. Ele foi sepultado no centro do campo santo e, logo em seguida, houve um culto ecumênico que reuniu oito mil pessoas. O culto foi conduzido com a maior serenidade e dignidade.

ABr – Qual foi a importância do caso Herzog para o país?

Sobel – A morte de Herzog mudou o rumo do país. Foi o catalisador da abertura política e do processo de redemocratização do Brasil. O nome Herzog será sempre uma recordação dolorosa de um período de repressão da história brasileira e será também o eco eterno da liberdade, que não cala jamais.’