Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Carlos Heitor Cony


‘Serei a última pessoa do mundo a acreditar que Lula pode ter se envolvido, de alguma forma, com os recentes escândalos que abalam a política nacional. Contudo sua responsabilidade é óbvia, uma vez que o mar de lama é evidente e se formou à sombra de sua inconteste liderança.


Guardadas as proporções, ele está atravessando o mesmo mar de lama que tragou Getúlio Vargas, o maior estadista de nossa história. As circunstâncias não são as mesmas, mas, assim como nenhum historiador acusará Vargas de improbidade, Lula poderá passar à posteridade como governante medíocre, mas probo.


Acredito que seja fácil conciliar a honradez pessoal de Lula com os desmandos que estão enlameando sua gestão. Até chegar à Presidência, Lula administrava o seu próprio partido, seus companheiros de luta, que formavam, grosso modo, um universo homogêneo em seus objetivos e práticas. Pairava acima das conflitantes alas que formavam o PT, e sua autoridade era decorrência natural de sua capacidade conciliatória.


Uma vez no poder, foi obrigado a conviver com a massa heterogênea que lhe deu elegibilidade, mas se recusa a lhe dar a governabilidade necessária. Ao longo desses dois anos e meio de governo, foi obrigado, pelas circunstâncias de seu cargo, a engolir sapos de vários tamanhos e feitios, a apertar mãos que não conhecia e, no limite, a dar cheques em branco a pessoas que não honrariam a sua confiança.


Profissional de extrema habilidade para pilotar uma barca da Cantareira, fatalmente ele ia se embananar na ponte de comando de um Queen Mary 2. A desproporção de responsabilidades não se deve apenas ao complexo de forças que o apoiaram na última eleição e nessa primeira metade de mandato. O próprio PT, em si mesmo, tem conflitos muitas vezes dramáticos, mas em escala reduzida e administrável.


O furo agora é bem mais em cima, na ponte de comando. Ou salvará o gigante que lhe foi confiado ou naufragará com ele.’



Luiz Weis


‘De pato a ganso, pouco avanço ‘, copyright O Estado de S. Paulo, 15/06/05


‘Faz uma semana que o presidente Lula teve a desavisada idéia de incumbir o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, de preparar em 45 dias um projeto de reforma política – segundo uma versão, ele não sabia que esse projeto existe, foi aprovado por uma comissão especial da Câmara e está parado desde o fim do ano passado na Comissão de Constituição e Justiça da Casa, por falta de acordo entre os partidos. Dois dias depois, alertado por um líder da base aliada de que a iniciativa pegara mal entre os políticos, que acusaram o presidente de se intrometer no Legislativo, ainda mais para desviar as atenções da crise, como parecia, ele deu o dito pelo não dito, embora o Planalto tenha continuado a emitir sinais de que gostaria de romper os impasses que engessam a tramitação da matéria.


A essa altura, porém, nas frestas do noticiário sobre as manobras do governo para ficar com o controle da CPI dos Correios e os exercícios canoros do deputado Roberto Jefferson – que ontem soltou a voz no palco da Câmara com o histrionismo esperado – a imprensa sacudiu da hibernação o debate sobre a necessidade, a oportunidade e o eventual alcance da mudança nas regras do jogo político-eleitoral.


O ressurgimento do assunto na mídia só serviu para mostrar que, nesse terreno, entra ano, sai ano, mas de pato a ganso, pouco avanço. O desentendimento é geral. Acadêmicos, políticos, colunistas, juristas e curiosos, nenhum deles se mostrando em condições de sacar argumentos novos a favor ou contra a reforma, divergem em relação a tudo o que nela é possível divergir, a começar do momento.


Reforma política só sai a quente, em situações de crise, dizem uns. Em situações de crise é que não sai mesmo, retrucam outros – e se sair, tanto pior, porque nascerá torta, contaminada pela queda-de-braço entre governo e oposição. Sem reforma política, sustentam os seus partidários da primeira hora, a corrupção continuará a deitar e rolar no Executivo, no Legislativo e no relacionamento entre ambos.


Já os que têm urticária basta que se deparem com qualquer coisa que lembre reengenharia institucional, como seria o caso, e se esfalfam para demonstrar que há meios moralizadores menos complexos e mais eficazes. Ou, raciocinam outros ainda, alguma reforma poderia ser bem-vinda para dar mais poder ao voto, aumentando a representatividade do sistema, e mais força aos partidos, que são a sua espinha dorsal – mas não como antídoto à bandalheira.


Longe deste texto querer arrastar o relutante leitor aos labirintos das divergências sobre o financiamento público das campanhas, a imposição da fidelidade partidária, a adoção do voto em listas partidárias fechadas e a instituição da cláusula de barreira – prevista para entrar em vigor no ano que vem -, pela qual as siglas que não conseguirem 5% dos votos para a Câmara deixarão de ter acesso à TV e às suas cotas do Fundo Partidário.


Ainda assim, não dá para ignorar duas questões. Uma é o financiamento das campanhas. O problema central não é quem as paga, mas quanto custam. Governos recorrem à oferta de cargos e verbas orçamentárias – ou, para ter os seus projetos aprovados, podem transformar deputados em mensalistas, como Jefferson tornou ontem a insistir, sem achar nada de mais em receber dinheiro para campanha dos mesmos pagadores das mesadas.


Já políticos e partidos armam ‘maquininhas’, esquemas de cobrança de propinas na administração direta e nas estatais, para que o seus caixas 2 dêem conta dos custos astronômicos da caça ao eleitor, cujo item singular mais oneroso é o da propaganda na TV. Do dinheiro extorquido aos que transacionam com o Estado, os políticos velhacos se apropriam de uma parte da arrecadação. Os outros, éticos, canalizam tudo para o partido.


Ainda senador, Mário Covas foi ridicularizado quando propôs banir do horário eleitoral as extravagâncias cinematográficas. Por ele, os candidatos falariam ao povo praticamente como vieram ao mundo da política: num estúdio despojado, sem os recursos de efeitos especiais, tomadas externas, entrevistas de rua e outros estalos de marquetagem.


Poderia ser chato, mas quem disse que a disputa pelo voto precisa ser um confronto de superproduções hollywoodianas? De qualquer forma, a idéia foi abatida pelos muitos que ganham muitíssimo para tornar os candidatos confiáveis e as suas promessas, críveis. Não se vê como o financiamento público, quem sabe tão sujeito a burlas como o atual sistema, barateará a operação eleitoral.


A segunda questão é a da fidelidade partidária. Dizem que isso será irrelevante, se a distribuição das cadeiras pelos partidos nas comissões do Congresso obedecer ao resultado das urnas, e não à engorda ou ao definhamento das bancadas, promovidos pelo governo. (Embora permaneça o fato de que este sempre tentará construir a sua maioria, do jeito que der.)


Mas é do ângulo da tentativa de salvar o que resta da imagem dos políticos e da legitimidade das ações políticas perante a opinião pública que a fidelidade se impõe. Para a grande maioria dos brasileiros, provavelmente, o troca-troca de legendas (o termo já diz tudo) é a prova acabada da venalidade dos políticos e da degradação da política – o que os microfones da TV Câmara captaram ontem à farta.


Na atual legislatura, quase sempre sob o patrocínio do governo, 133 deputados do total de 513 se bandearam de uma agremiação para outra, no mínimo, uma vez (as trocas, ao todo, somam 204). Entre janeiro e fevereiro deste ano, por exemplo, dois deputados mudavam de sigla a cada dia, em média. Proíba-se isso, se não para vertebrar o Legislativo ou para vitaminar o sistema partidário, pelo menos em respeito ao povo.


Luiz Weis é jornalista’



Cláudia Trevisan


‘Petebista faz ironias e exibe ‘talento teatral’ ‘, copyright Folha de S. Paulo, 15/06/05


‘Vestindo camisa e gravata lilás e terno preto, Roberto Jefferson sentou na cadeira do Conselho de Ética da Câmara na condição de acusado, mas desempenhou o tempo todo o papel de acusador, com farto uso da ironia e tentativas de intimidação de integrantes da cúpula do governo e do PT.


Com talento teatral lapidado em seis mandatos parlamentares e na atuação como advogado criminalista, o deputado abusou das entonações de voz, dos gestos, das expressões faciais e não dispensou momentos de humor.


‘Peraí! O Expedito [Filho, repórter do ‘Estado de S.Paulo’] me chama de metrossexual e agora você me compara ao Michael Jackson’, respondeu ao deputado José Carlos Aleluia (PFL-BA), provocando risos na platéia.


Ao falar da importância da opinião pública, Aleluia havia dito que apesar da absolvição do cantor, nenhum pai deixaria o filho menor em sua companhia.


No início de seu depoimento, o petebista já havia mencionado seu ‘metrossexualismo’, definição que se aplica a homens heterossexuais vaidosos e preocupados com a aparência. ‘Já fui chamado de troglodita e de integrante da tropa de choque do Collor, mas metrossexual!’


O Congresso ficou em suspenso na manhã de ontem, à espera do que Jefferson diria à tarde. Meia hora antes do início do depoimento, marcado para as 14h30, o Plenário 2 da Câmara já era ocupado por jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas, que buscavam o melhor ângulo para registrar as declarações. Deputados e senadores também começavam a chegar e ocupar os cerca de 70 lugares disponíveis. Quase 20 parlamentares ficaram em pé.


O depoimento antecipou o embate entre oposição e governo que será vivido na CPI dos Correios. Os petistas tentavam desqualificar Jefferson, enquanto representantes do PFL e do PSDB davam ênfase às acusações do petebista.


A sessão foi aberta às 14h41 e encerrada quase sete horas depois, às 21h18. Jefferson repetiu a estratégia de ‘falar’ com as pessoas que o assistiam pela televisão. Assumiu o papel de justiceiro e deu o endereço de seu gabinete para o envio de denúncias de corrupção.


À noite, o vice-líder do governo, Beto Albuquerque (PSB-RS), reconheceu que Jefferson não se acomodou na condição de réu. ‘É óbvio que para quem estava nas cordas em uma luta de boxe, ele passou para a ofensiva.’’



Artur Xexéo


‘Crise no PT? Chama o Duda Mendonça!’, copyright O Globo, 15/06/05


‘Deu sábado no jornal. Os Correios estão iniciando uma nova campanha publicitária na televisão. É uma maneira de tentar apagar a má imagem que a instituição ganhou com as recentes denúncias de corrupção na instituição.


Isso é a cara do Governo Lula. Sempre que se vê acuado, acusado, sob suspeita, o governo encomenda uma campanha publicitária para melhorar a imagem. Não vale o que se faz (ou não se faz). Só vale o que se vende. O governo não se preocupa com as acusações, não se importa com as suspeitas, não se espanta com as denúncias. Só se importa com a imagem. Estão usando cargos nos Correios para extorquir dinheiro de empresas? Faz uma anúncio na TV. Estão acusando o PT de comprar fidelidade em votações no Congresso? Chama o Duda Mendonça. Tem escândalo novo no IRB? Manda fazer um terno com Ricardo Almeida. Fala sério: a imprensa tem mais o que dizer sobre o guarda-roupa do presidente do que sobre seus feitos administrativos. É por isso que, qualquer que seja a crise, Lula sempre acaba culpando o Gushinken. O povo não está satisfeito? Só pode ser porque a gen te não está sabendo comunicar o que tem feito de bom para o país.


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No meio da maior crise política dos últimos anos, o PT manteve a pose no horário político desta semana. Quis o destino que a propaganda gratuita da ocasião contemplasse o PT. Era a oportunidade de o partido se explicar para uma audiência de novela das oito. Pelo que foi visto na TV, o único argumento que o partido parece ter para rebater as acusações que vem recebendo é o de que a biografia do presidente é invejável. Por isso mesmo, o tal programa voltou a contar a trajetória de Lula. Em outras palavras, a biografia invejável. Enquanto o ventilador joga sujeira para todos os lados, Lula só pensa em preservar a biografia. Enquanto os contribuintes querem saber se o tesoureiro do PT paga ou não mesadas para os deputados do PL, o programa do PT na TV mostrou o Lula dos velhos tempos. Aquele que ainda não tratava tão bem da barba. Aquele que ainda tinha cabelo tóin-óin-óim. Aquele que não suavizava a expressão com botox. Aquele que nem sabia quem era Ricardo Almeida. Agora, me explica, para que serve uma biografia? Que biografia resiste à declaração do presidente de que passaria um cheque em branco a Roberto Jefferson?


Lula tem muito o que aprender com Jefferson. No campo do marketing, é claro, a seara favorita de Lula. Não sei se vocês se lembram, mas Roberto Jefferson entrou nessa confusão como suspeito de comandar o esquema de corrupção nos Correios. Agora que foi instaurada uma CPI dos Correios, o que se quer saber de Robert Jefferson? Se ele mantém a denúncia de que Delúbio Soares garantia um mensalão aos congressistas que votassem com o governo. E a maracutaia nos Correios? Jefferson não tem mais nada a ver com isso. No espaço de uma semana, 15 dias no máximo, o suspeito virou acusador. E ainda com um cheque em branco de Lula! O presidente tem ou não tem o que aprender com tal figura? E olha que a biografia de Jefferson não vale um programa de TV no horário nobre!


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Talvez o colunista esteja sendo injusto com Lula quando escreve que sua única reação quando o governo é acusado de qualquer coisa seja encomendar uma campanha publicitária. Lula tem outro truque: ameaça trocar o ministério. Mas, sei lá, acho que a estratégia está desgastada. Ninguém mais se preocupa com a reforma do ministério.


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Mudando de conversa, causam espanto as declarações do produtor Luiz Carlos Barreto no Segundo Caderno do último domingo. Desde a criação da Lei do Audiovisual, ouço Barreto reclamar que o cinema estava nas mãos de gerentes de marketing que nada entendiam da atividade. Agora, ele diz que ‘em algumas estatais, são constituídas comissões externas de seleção, formadas em geral por críticos, cineclubistas e pesquisadores de cinema. São pessoas sem nenhum compromisso com a política comercial, que estão estrangulando o lado industrial do cinema.’ O que é que o Barreto quer? A volta dos gerentes de marketing? Ou ninguém, nem os gerentes de marketing, nem as comissões de críticos, são capazes de avaliar os projetos de Luiz Carlos Barreto?


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Agora que o Michael Jackson foi absolvido de todas as dez acusações que enfrentava na Justiça americana, a gente pode imaginar que, se fosse nos Estados Unidos, o Sergio Naya também sairia ileso dos tribunais.


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Como todo mundo sabe, eu não vejo mais novela. Mas dona Candoca vê pra mim. E a boa velhinha, outro dia mesmo, enviou-me um e-mail – dona Candoca é superantenada com a modernidade – com uma dúvida que a vem dilacerando. Ela tem assistido a ‘América’ e descobriu uma pergunta que não quer calar: de que vive Creusa?’



Tereza Cruvinel


‘O show, as falhas e a eficácia’, copyright O Globo, 15/06/05


‘A performance como prova. Esta foi a tática adotada por Roberto Jefferson ao depor no Conselho de Ética. Mostrou-se excelente ator e bom dramaturgo, conferindo verossimilhança a suas denúncias com fartura de detalhes e precisão nos gestos. Mas a narrativa teve falhas, sobretudo na tentativa de reinvenção da pessoa do autor. E houve erros técnicos na condução do depoimento, a começar pela exigência do compromisso de dizer a verdade, o que só deve ser exigido de testemunhas. Ele estava lá como acusado.


Mas o show de Jefferson foi eficaz no sentido de traçar a linha das investigações. Voltado para o público externo, muito mais do que para os membros do Conselho, buscou reforçar na sociedade a convicção de que o PT alugou deputados do PP e do PL para sustentar o governo. Fortaleceu-se assim a estratégia da oposição, de levar para este rumo as investigações da CPI dos Correios, que acabará deixando em segundo plano os casos de corrupção nos Correios e no IRB, em áreas ocupadas pelo PTB.


E para isso Jefferson valeu-se com êxito de seus dotes de ator e narrador, contando detalhes das conversas de que participou. Construiu boas metáforas, como a dos biquinhos abertos esperando a volta do néctar, e boas cenas, como aquela em que imita os deputados a pedir mensalão em coro para retomarem as votações.


O empenho em proteger o presidente Lula, apesar dos ataques pesados a Dirceu, Delúbio, Genoino e outros membros da cúpula petista, foi parte da técnica narrativa. Lula ainda é popular e querido, e Jefferson buscou ficar de seu lado, contra os que o teriam traído e enganado. Sabe muito bem que atirou no coração de Lula. O relator, que é da oposição, só fez perguntas envolvendo o presidente, que a oposição também elegeu como alvo.


Ainda em relação a Lula, só o deputado Sandro Mabel, líder do PL, pegou Jefferson numa inverdade, a de que só agora, em março, vencera o ‘cordão de isolamento’ e conseguira chegar ao presidente para contar-lhe do mensalão. Se soube do esquema em agosto de 2003, como disse, teve muitas oportunidades. E uma delas, imperdível, em 14 de outubro de 2004, quando recebeu o presidente para jantar em sua casa.


Se foi bem ao fortalecer a linha de investigação da oposição, Jefferson falhou muito na reinvenção de si mesmo. Confessou com espantosa naturalidade não só o recebimento de R$ 4 milhões, primeira parcela dos R$ 20 milhões que o PT lhe teria prometido e não entregou na campanha. Crime eleitoral para os dois. Pior ainda, afirmou que a oferta de mensalão que ouviu de Delúbio foi levada a voto na bancada! Proposta indecente não é levada à bancada de partido sério, muito menos votada. E tendo havido votação, um silêncio de ferro caiu sobre a bancada de mais de 50 deputados. Preferiram certamente os cargos nas estatais e a ajuda de campanha. Se o deputado pretendia, como disse, lavar a honra de seu partido, foi muito mal. Honrado foi o líder José Múcio, que o desmentiu ao negar que tenham alguma vez tratado de mensalão com o deputado Valdemar Costa Neto, embora confirmando ter estado presente quando foi dado o aviso a Lula, Mas negando a lágrima, este elemento importante na dramaturgia.


Jefferson falharia ainda na auto-reconstrução ao admitir que não falou em mensalão em seu recente discurso de defesa porque ainda esperava um acordo, uma solução pelo diálogo. Ou seja, pelo jeitinho, a troca de proteções.


Quanto às falhas técnicas, exigindo indevidamente o juramento de só dizer a verdade, o presidente do Conselho, Ricardo Izar (PTB), reforçou a credibilidade do que Jefferson disse como acusado, não como testemunha. O Brasil viu tal juramento pela TV. Nem poderia ter havido o depoimento e a inquirição antes da defesa escrita, o que, garante o deputado-jurista Antonio Carlos Biscaia, contraria regra elementar do direito processual. Mas o show, como sabemos, era político. Deu início ao evisceramento do sistema político.


Cravo e ferradura


A saída do ministro José Dirceu do governo continua em pauta e ele já entregou a decisão ao julgamento exclusivo do presidente Lula, inclusive quanto à hora. Claro que não será sob a reverberação dos ataques de Roberto Jefferson, que ontem o mandou sair logo para não vitimar Lula.


Mas a pelo menos uma das pessoas com quem conversou sobre o assunto, Lula deu a entender que a saída de Dirceu para fortalecer o esquema político no Congresso seria acompanhada de uma concessão pela qual ele brigou tanto no governo: a inflexão na política econômica, sobretudo na questão dos juros, cujo ciclo de alta parece ter mesmo chegado ao fim, e ao rigor fiscal.


Algumas atribuições de Dirceu na coordenação administrativa vêm sendo discretamente transferidas ao ministro Paulo Bernardo, cuja pasta se chama exatamente Ministério do Planejamento, Coordenação e Gestão. Isso facilitaria a escolha de um substituto para Dirceu, que poderia ser mais burocrata e menos executivo.


O PT tem tudo a perder nesta guerra, mas o PSDB também pode pisar em minas. A secretária do publicitário Marcos Valério, em entrevista à ‘IstoÉ Dinheiro’, teria lançado o primeiro estilhaço. Se os dois partidos mais orgânicos se estraçalharem, quem ganhará com isso? Tudo aquilo que FH chama de atraso.’



Zuenir Ventura


‘O que ensina a crise’, copyright O Globo, 15/06/05


‘Escrevo enquanto se desenrola no Conselho de Ética da Câmara o depoimento do deputado Roberto Jefferson, aguardado com tensão e medo como uma bomba de efeito moral devastador. Não pude acompanhar até o fim, mas até onde vi, o vilão posou de herói, dominando o espetáculo: interpretou, foi melodramático, fez caras e bocas e acabou transformando sua defesa em acusação contra colegas e contra a imprensa que, claro, o persegue.


A sensação era de que este país, que já parou por tantos motivos nobres, estava assistindo a um arremedo de ópera bufa. Poucas vezes apresentou-se em público um espetáculo tão revelador dos bastidores de Brasília e das relações espúrias entre o Executivo e o Legislativo. Chegou a ser didático. Às vezes parecia reunião para ensinar como usar dinheiro ilícito de campanha, caixa 2, doações e compra de votos. Falou-se em luvas de R$ 1 milhão, e até um crime eleitoral foi revelado. O próprio Jefferson confessou ter recebido no ano passado R$ 4 milhões de um operador do tesoureiro do PT, Delúbio Soares.


Parecia a ‘Ópera dos três vinténs’, de Brecht, com os personagens do submundo da sociedade – mendigos, vigaristas, prostitutas – substituídos por colarinhos-brancos do alto mundo da política. O pior dessa paródia operística é que é mais uma razão para o público, já descrente de tudo e de todos, manifestar sua indignação por meio do pessimismo e do desencanto, achando que nada vale a pena porque em cena só tem alma pequena.


Para quem sonha com um enredo menos niilista, porém, há outro libreto possível, baseado na visão oriental de que as crises, conforme são representadas na escrita chinesa, têm sempre um duplo sentido, dialético e contraditório. Os dois ideogramas que formam a palavra significam perigo e oportunidade. Eles querem dizer que, ao lado dos estragos que podem produzir, elas possuem também uma dimensão pedagógica e progressista, ou seja, o que não mata engorda ou, dito de outra maneira, quando se chega ao fim do poço só há uma saída, a saída.


Só que isso exige desprendimento e coragem. O senador Tião Vianna, do PT, sugeriu que todos os ministros do seu partido pedissem demissão. É pouco. Não sou do ramo e sei que o que vou dizer é uma ingenuidade política, mas acho que qualquer que seja o resultado final, mesmo que o governo saia dessa, o gesto que poderia reverter de fato a crise seria Lula abrir mão do apego ao poder e renunciar ao projeto de reeleição que, como se sabe, tem sido a mãe desses escândalos.’