Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Carta Capital

CAMPANHA
Mauricio Dias

E Gabeira escolheu a Globo, 14/3

‘A TV Globo já fez sua opção política na corrida eleitoral pela prefeitura do Rio.

Optou pelo deputado Fernando Gabeira.

Mas, a rigor, Gabeira escolheu a Globo. Ex-militante da esquerda armada, ele foi um dos cérebros do seqüestro do embaixador norte-americano Burke Elbrick, em 1969.

Gabeira, revolucionário, era vermelho. Agora é verde. Passou pelo PT, desligou-se do partido na crise do Valerioduto e assinou ficha de volta ao PV. Durante as CPIs de 2005 e 2006, fez parte da vanguarda oposicionista (ao lado de Roberto Freire, Arthur Virgílio e José Agripino, entre outros) e conquistou por méritos uma capa elogiosa da revista Veja.

Ninguém pode negar a Gabeira o direito de mudar de lado. Afinal, ele apenas entrou pela estrada atapetada que leva os políticos brasileiros da esquerda para a direita. É apenas mais um.

Cesar Maia, que mantém um corajoso e desgastante confronto com as Organizações Globo, denunciou no seu ex-blogue o que considerou um privilégio excepcional que a Globo concedeu a Gabeira, na terça-feira 11: 1 minuto e 30 segundos na telinha. Aspas para o prefeito do Rio:

´Ontem o RJ-TV resolveu mudar o estilo e dar um tempo para um pré-candidato expor até programa de governo. Os demais ficaram com a lei do ministro Armando Falcão do período autoritário: fotos e nada mais. Começou muito mal a TV Globo a cobertura da campanha de 2008. Isso não ajuda a democracia nem a imagem da emissora´.

O princípio que Cesar Maia defende é saudável. Mas ele inclui também o fato de Gabeira entrar firme no eleitorado conservador da zona sul do Rio de Janeiro. A maioria desse universo de cariocas mais abonados compunha um eleitorado quase cativo do prefeito, que lançou para sucedê-lo a deputada Solange Amaral.

A esquerda também vai rachada nesta disputa. Na segunda-feira 17, o diretório regional do PSOL formaliza a pré-candidatura do deputado Chico Alencar. Ele engrossa o tom quando fala do novo Gabeira:

´Ele, tucanado, enreda-se em contradições. Diz que quer desconectar a campanha das disputas nacionais, mas está no coração das articulações Aécio-Serra para 2010. Liberal, repete o pensamento conservador que afirma que o papel da prefeitura na segurança pública é colocar câmeras de vigilância pela cidade e cercar as favelas. Internacionalista, considera prioridade combater o xixi nas ruas. Ecocapitalista, só concebe o poder público em aliança com as grandes empresas´.

Já usando o novo figurino, Fernando Gabeira proclamou que esquerda e direita são categorias ultrapassadas. Esse é o último refúgio de quem mudou de lado.’

 

REUNIÃO
Emiliano José

Imprensa e canalhice clandestina

‘Um encontro inédito. Mais de quarenta jornalistas, todos vinculados à imprensa alternativa, se reuniram no sábado, 8 de março, em São Paulo, com o propósito, um tanto vago no início, de identificar os problemas da imprensa brasileira hoje e buscar caminhos para a consolidação de um discurso contra-hegemônico, capaz de fazer frente ao pensamento único praticado pela maior parte da grande mídia. Esta é uma interpretação, dentre tantas outras que a reunião pode sugerir.

Direi duas ou três palavras, sem a pretensão de resumir sistematicamente um dia inteiro de discussão. A grande mídia continua a influenciar de modo decisivo a vida brasileira, especialmente pela sua capacidade de pautar, de fixar a agenda de discussões. Essa visão perpassou grande parte das opiniões dos participantes. Não se desconhece, portanto o peso dessa mídia, que tem sempre um programa a cumprir, pautado nos fundamentos neoliberais.

Essa mídia tem unidade programática – salvo sempre as exceções, e CartaCapital sempre foi lembrada como tal – sem que necessite qualquer conspiração organizada. A unidade é temática, é ideológica, é cultural. Ela se baseia em pressupostos firmemente estabelecidos. Continuará, por exemplo, a combater o governo Lula, que ela nunca aceitou. E a unidade vai além das fronteiras nacionais. É só observar o que foi a cobertura da invasão da Colômbia ao Equador para assassinar um dirigente das FARC: Chávez, na interpretação da mídia latino-americana e brasileira, terminou como o grande culpado de tudo. Uribe, anistiado. Parece brincadeira, mas não é.

Não se deve, no entanto, acreditar que essa mídia pode tudo. Cabe dizer, sobretudo pelo fato de que ela em toda a América Latina tem atuado como um ator político, que a mídia tem sofrido derrotas de grande significado no Continente. Os exemplos das eleições na Argentina, Venezuela, Equador e Bolívia evidenciam que nem sempre o arsenal midiático muda a vontade popular. O caso da eleição presidencial de 2006 no Brasil, no entanto, talvez seja o mais emblemático – representou uma vitória da consciência popular contra a perspectiva nitidamente golpista da mídia brasileira. A velha mídia, que fez uma campanha raivosa destinada a derrotar Lula, piscou diante desse episódio.

A par do crescimento da consciência do povo brasileiro, que determinou a derrota da grande mídia nas últimas eleições, é inegável que há uma mudança considerável na estrutura produtiva de informações. O jornalismo impresso perde peso progressivamente para a comunicação que nasce do uso da Internet. As novas gerações já não se valem tanto do papel. Quase tudo para elas está no mundo virtual, eletrônico. Jornais que antes passavam de 1 milhão de exemplares por dia vendem hoje coisa de 300 mil – caso da Folha de S. Paulo. A mídia de combate, alternativa, ao menos boa parte dela, concentra-se no uso da Internet. E cumpriu um papel essencial na luta contra a manipulação grosseira da grande mídia.

As discussões giraram também, nesse encontro, em torno do financiamento das iniciativas da imprensa alternativa, que sabe muito bem do poder da grande mídia. Houve um consenso sólido em torno da crítica à exclusividade do critério mercadológico por parte do poder público. À medida que os governos, e que o governo Lula de modo particular, se amparem apenas no mercado como parâmetro para a distribuição das verbas publicitárias consolidam o que já está estabelecido na mídia. Impede-se, dessa forma, a necessária pluralidade.

A grande mídia, naturalmente, vale-se dessa política como se ela fosse a correta. A verdade, no entanto, é que essa diretriz compromete a democracia porque impede a diversidade de informações. Por que não estabelecer um percentual das verbas publicitárias destinado ao florescimento de novas iniciativas? – essa foi uma pergunta recorrente. E que deverá aparecer na audiência com Lula – os participantes da reunião decidiram que vão pedir um encontro com o presidente para expor suas idéias sobre a mídia brasileira e, também, as principais reivindicações da mídia alternativa.

Pela exigüidade de espaço, não listo todos os presentes. Lembro nomes como os de Flávio Tavares, Joaquim Palhares, Bernardo Kucinski, André Singer, Ivana Bentes, Flávio Aguiar entre outros. Destaco, no entanto, a participação de Mauro Santayana, sobre quem fui descobrir, no café da manhã, ter apenas o segundo ano primário, e que já foi mascate, camelô, locutor de alto-falante para depois tornar-se um dos melhores textos do jornalismo brasileiro. Observador atento e perspicaz, tendo convivido durante décadas com jornalistas, deixou a diplomacia de lado e produziu uma análise preciosa, unindo passado e presente de nossa mídia:

´Na imprensa brasileira, sempre existiram canalhas. E a gente os conhecia. O problema de hoje é que não é fácil identificá-los´.’

 

INTERNET
Guilherme Felitti

A Hidra online na batalha pela WikiLeaks, 10/3

‘Conhece o WikiLeaks? Confesso que, antes da ação movida pelo banco Julius Baer Bank que culminou no congelamento do seu endereço, nunca havia ouvido falar no serviço. Foi o próprio banco que aproximou o serviço de mim e de outros milhões de usuários.

Basicamente, a WikiLeaks usa a plataforma de compartilhamento de conteúdo Wiki, empregada com amplo sucesso para tornar a Wikipedia uma enciclopédia pública e coletiva, para que documentos confidenciais de empresas ou governos, principalmente os que apontem algum tipo de irregularidade, sejam ´vazados` para a internet.

Na Wikipedia, a comunidade controla a qualidade dos verbetes comparando diferentes edições de usuários e, em muitos casos, revertendo alterações que culminem em um verbete menos preciso. A graça da WikiLeaks é exatamente o contrário – o serviço não guarda registro algum do responsável por vazar os documentos, o que faz com que o anonimato confira um tom de denúncia à publicação.

É possível navegar pelo 1,2 milhão de documentos confidenciais, segundo o próprio serviço, pelas biografias dos envolvidos, os perfis de instituições envolvidas em escândalos ou pelos países de origem – o Brasil está lá, minguado de denúncias.

Documentos confidenciais que ligam o Julius Baer Bank a práticas de lavagem de dinheiro e evasão de divisas em contas nas Ilhas Cayman em nome de seus clientes foram vazados, possivelmente por alguém funcionário do banco, para a WikiLeaks, o que motivou o banco a acionar a Justiça dos Estados Unidos pedindo a interdição do site – qualquer semelhança com o caso YouTube-Cicarelli no Brasil não é mera coincidência.

Na primeira decisão, veio a explosão de popularidade. Se pretendia tirar os documentos do ar e limpar a rede de qualquer vestígio das provas de corrupção, o Julius Baer Bank se viu na situação exatamente oposta. Assim que a decisão da Justiça exigiu que o domínio Wikileaks.org fosse congelado e o nome de seus responsáveis fossem revelados à Justiça, a WikiLeaks começou a experimentar uma explosão de procura motivado pela atenção da mídia que o caso ganhou.

A primeira grande conseqüência foi quase simultânea à ordem judicial. Usuários pelo mundo remontaram a Wikileaks, agora fora do seu domínio original, em versões idênticas às originais rodando em dezenas de servidores – naquele ponto, o serviço já tinha assumido seu lado Hidra.

Só que o Julius Baer Bank não é nem um Hércules. A segunda grande conseqüência veio da mesma corte responsável pela condenação original. Ao retirar todas as imposições judiciais duas semanas mais tarde em um discurso desconcertantemente preciso, o juiz Jeffrey White classificou suas próprias ordens como sem sentido e admitiu que, em razão delas, percebeu-se um ´efeito exatamente contrário do pretendido´. O PDF com a decisão na íntegra pode ser baixado no Citizen Media Law Project.

Ao tentar impedir que um grupo restrito de usuários (os que já conheciam e acessavam a WikiLeaks) colocassem as mãos nos documentos confidenciais, o banco atraiu a atenção da mídia tradicional e da blogosfera, dando ao serviço de vazamento de dados uma inesperada visibilidade, algo que uma simples consulta ao Google News e o gráfico do serviço de tráfego online Alexa indicam com clareza – perceba o pico de acesso da segunda semana de feveiro em diante.

A bandeira branca subiu três dias após a segunda decisão, que devolveu o domínio e permitiu que a WikiLeaks voltasse a funcionar normalmente, com o Julius Baer Bank desistindo do processo – uma imagem de arquivo sem muito sentido comemora o fim dos problemas judiciais na capa do WikiLeaks, com engravatados levantado os braços em êxtase.

A incapacidade de alguns grupos, sejam eles empresas ou governos, de entender que a internet não é passível de um controle centralizado, como o que uma decisão judicial pretende, decorrem em pataqüadas como a que se envolveu o Julius Baer Group. Ninguém pede a um banco, envolvido até o pescoço em dados confidenciais e informações altamente sigilosas sobre transações financeiras, que abrace a transparência exigida pelo poder da mobilização anônima da internet.

É preciso, porém, ter o mínimo de conhecimento sobre como um meio funciona antes de sair, com a truculência de um touro, contra quem vive ali. Pelos documentos do banco vazados anonimamente, possivelmente os mais acessados da WikiLeaks após o escândalo, independente de onde ela esteja hospedada, dinheiro não vai faltar a instituição para a contratação de alguns consultores.

O Julius Baer Group resolveu jogar pedras no vespeiro e não teve pernas para conseguir correr. Agora, é lembrar-se do caso enquanto se arranca os espinhos do corpo.’

 

Felipe Marra Mendonça

Morre o Netscape, pioneiro da internet, 14/3

‘O dia 1º de março marcou o fim de uma era na curta história da internet. O Netscape Navigator, primeiro browser de distribuição comercial, chegou a ter mais de 90% de fatia de mercado em meados dos anos 90. Hoje, possui cerca de 0,6%, muito distante dos líderes Mozilla Firefox e Microsoft Internet Explorer. A AOL, companhia que controla a Netscape, decidiu interromper o seu desenvolvimento.

O Netscape foi criação de Marc Andreessen. Durante os estudos na Universidade de Illinois, ele havia desenvolvido o Mosaic, primeiro browser gráfico para a internet. ´A Netscape teve um papel crítico em tomar todos esses uns e zeros – ambiente acadêmico e técnico – e transformá-los em uma interface gráfica, de tal forma que o usuário podia entrar na internet e consumir informação´, disse Shawn Hardin, CEO da Flock, companhia independente que desenvolve browsers para a BBC. ´Durante seus anos dourados, era como se a internet e a Netscape fossem a mesma coisa´, afirmou.

O sucesso levou outras companhias a entrar na competição, entre elas a Microsoft. Foi o início do ocaso, porque a gigante pôde incluir o Internet Explorer em cada cópia do Windows. Embora a iniciativa tenha gerado disputas judiciais e uma condenação por parte da União Européia, o Internet Explorer abocanhou 80% do mercado de browsers e inviabilizou o Netscape.

O programa deixou um legado importante, muito além de permitir que a internet saísse do mundo acadêmico onde foi criada. Foi talvez o primeiro ponto de contato da grande maioria dos usuários com uma variedade de sites on-line e possibilitou o início do comércio eletrônico.

A companhia recomenda que os consumidores passem a usar o browser Firefox, que resgata o espírito independente. ´Representamos a esperança que era parte da Netscape´, disse Mitchell Baker, presidente da Fundação Mozilla, que desenvolve o Firefox. ´Aproveitamos o brilhantismo do programa e levamos adiante os conceitos de abertura e participação do público.`

Do outro lado do mundo, o governo iraniano pensa em simplesmente bloquear o acesso à internet durante as eleições gerais para o Parlamento, em 14 de março. Mustafá Pourmohammadi, ministro do Interior, admitiu a possibilidade. Disse ao jornal local Etemad Melli que ´desligar o serviço de internet depende de planos de segurança e do Ministério das Telecomunicações´.

Outra autoridade, Muhammad Javad Mahmoudi, da comissão eleitoral do país, afirmou à agência oficial de notícias Isna que o corte da web garantiria que o governo tivesse acesso à mesma para a transmissão de dados eleitorais, ainda que as linhas das autoridades tenham passado por uma reforma recentemente.

A teocracia restringe seriamente o acesso à internet, mas um bloqueio total nunca tinha sido pensando até agora. Entre as medidas até então tomadas estavam o acesso restrito a sites considerados seguros e um limite de velocidade de 128 k para computadores pessoais. O fato de o Irã cogitar a medida apenas reforça o papel libertário da internet, restrita em países como a China e a Coréia do Norte.’

 

DOCUMENTÁRIO
Milene Pacheco

O preço da fama, 14/3

‘Sentada no sofá de sua casa, Estamira Gomes de Sousa nem parece a mesma protagonista do documentário que recebeu o seu primeiro nome. Com voz mansa e olhar esmorecido, a ex-catadora de lixo do aterro sanitário Jardim Gramacho passa os dias transitando da cama para o sofá, do sofá para a cama. Só sai para ir ao médico. Prestes a completar 67 anos no dia 7 de abril, carrega em seu corpo exausto as dores de mais de 20 anos de árdua labuta no lixão. Foi lá, no maior aterro da América Latina, que Estamira saiu do anonimato para se tornar a feiticeira, a louca, a dama do Apocalipse. A filósofa. ´Eu nem sei o que é filósofa´, responde ao ser informada do título que recebeu de alguns críticos.

Em meio aos urubus e ao cheiro putrefato do ar, Estamira buscava sua sobrevivência nas montanhas de lixo quando o cineasta e fotógrafo Marcos Prado a encontrou. ´Tarda, mas não falha. Estava esperando por isso há muito tempo´, respondeu ao rapaz que pedia permissão para fazer uma foto dela. Não demorou muito para que o fotógrafo ficasse hipnotizado pelos seus discursos metafísicos sobre o mundo. ´A minha missão, além d´eu ser Estamira, é revelar a verdade, somente a verdade. Seja capturar a mentira e tacar na cara´, disse a Marcos, a quem incumbiu a tarefa de revelar sua missão.

Nas telas, Estamira não fala. Profere. Grita. Resmunga. Suas idéias bambaleiam entre a lucidez e a loucura. Os surtos de raiva registrados no filme revelam os distúrbios mentais provocados pela esquizofrenia. ´É preciso ter o caos dentro de si para gerar uma estrela´, diria Friedrich Nietzsche. No filme, que ganhou 33 prêmios no Brasil e no mundo, Estamira cria uma linguagem própria e teoriza sobre Deus, educação, meio ambiente e comunismo, sem hesitar. Suas análises são resultado da mistura entre as vozes que diz escutar do Além com registros de sua memória. Alfabetizada pelo Mobral, a ex-catadora de lixo conta que nunca teve o costume de ler. Onde aprendeu tudo aquilo? ´Com a experiência da vida, vendo como a banda toca.`

Da pequena sala com as paredes pintadas de um amarelo vivo, ouve-se uma canção evangélica com ritmo pop que vem do barraco ao lado, onde mora seu filho, Hernane José Antônio, com a esposa e os três filhos. Alguns anos atrás, Estamira não permitiria música religiosa em sua casa. No documentário, briga com o filho e com o neto, a quem apelidou carinhosamente de Réu, quando eles ousam falar sobre religião. ´Que Deus é esse? Que Jesus é esse que só fala em guerra e não sei o quê? Só pra otário, pra esperto ao contrário, abobado, abestalhado. Quem anda com Deus dia e noite, noite e dia na boca, ainda mais com os deboches, largou de morrer? Quem fez o que ele mandou, o que a quadrilha dele manda, largou de morrer? Largou de passar fome? Largou de miséria?´, questiona Estamira, com um tom profano capaz de arrepiar muitos fiéis, em uma das cenas do documentário.

Estamira já não se altera ao tocar no assunto. Até sorri quando fala sobre o famoso ´Trocadilo´, termo criado por ela. ´Deus é um qualquer, um cientista do Egito, e não o poder superior real natural. Essa troca do homem pelo poder é o ´Trocadilho` (pronuncia, desta vez, o termo com lh). Eu não respeito essa idéia de Deus. Respeito a Nossa Senhora, que pra mim é a mãe natureza.` Essa calma, condição rara de ser encontrada na Estamira do documentário, vem das caixas e caixas de remédios que ela toma para os mais diversos tipos de doenças, que vão da diabetes às fortes dores na cabeça.

As discussões mais amplas, presentes na euforia dos discursos no filme, param por aí. Estamira está cansada. Nas últimas semanas, os ´grilos` que tomam conta de sua cabeça dividem espaço com um único assunto: a posse de seu terreno. Em fevereiro, foi intimada por um dos vizinhos a deixar sua casa num prazo de três meses. Há 15 anos, Estamira vive num pequeno terreno no bairro de Prados Verdes, em Nova Iguaçu, região metropolitana do Rio de Janeiro. ´Foi ele quem me arranjou o terreno, mas isso é posse da prefeitura.` Hernane já entrou com um pedido de usucapião e garante que, em breve, tudo estará resolvido. Porém, nada, nem ninguém, tira o problema de sua cabeça.

´Ele tá com olho gordo, achando que o Marcos tem dinheiro.` Desde que ela parou de freqüentar o lixão, em 2004, por problemas de saúde, o cineasta, produtor do filme Tropa de Elite, dá a Estamira uma mesada de, mais ou menos, 500 reais por mês. ´Ele é uma mãe pra mim. Pagou todo o material usado na construção desta casinha.` No pequeno lar, os objetos estão todos em seu devido lugar. As roupas que achou no lixão estão separadas em pilhas no armário improvisado. As panelas velhas e enferrujadas também estão dispostas na mais perfeita ordem.

Estamira não está só. Levou seu companheiro de Gramacho, João Carlos Vicente, para lhe fazer companhia. O senhor tímido de sorriso doce também está no filme, cantarolando um trecho da música As Curvas da Estrada de Santos com Estamira, a quem é grato ´por tudo´. ´Lá no Gramacho, todo mundo me reconhece, dizem que eu estou importante´, conta João.

Além de ser reconhecida no bairro onde mora, dois anos depois da estréia do filme, Estamira ainda atrai a vizinhança. ´Tá todo mundo achando que eu tô rica. O povo vem me pedir dinheiro. Não tenho dinheiro nem pra comprar pão.` Em tom mais baixo de voz, Estamira cochicha, apontando para fora da casa: ´Eles tudo, é eu que trato deles´. Além da mesada de Marcos, Estamira, João e a família de Hernane vivem com o dinheiro do INSS, que ela recebe e com o Bolsa Família.

Apesar de agora pintar as unhas de vermelho, a aparência continua a mesma da época do filme. Estamira diz ter alcançado a sua missão. ´Consegui falar a verdade. Deu certo, porque todo mundo gostou.` A dupla de ex-catadores de lixo se recorda do Jardim Gramacho com carinho. ´Sinto muita falta de lá, vontade de ir, mas não agüento. Sinto saudade daquela muvuca, do pessoal´, conta Estamira, como se realmente falasse de um jardim verdejante, como sugere o nome do lixão. No lugar da trilha sonora sinistra do filme, apenas o cacarejo do galo que cisca os restos no chão batido do quintal. Estamira, desta vez em cores, acomoda-se no sofá e despede-se com serenidade.’

 

RENASCER
Carta Capital

Deus, a bola e a mentira ,14/3

‘Fé e futebol. Deus e a bola. Há quem aposte que, no país onde menos de 7% dos habitantes se declaram ateus e onde a peleja nos gramados é saudada como a ´paixão nacional´, a união dessas duas crenças é suficiente para entorpecer todas as mentes. É esta, ao menos, a certeza dos fundadores da Igreja Renascer, Estevam e Sônia Hernandes.

Condenados pela Justiça dos Estados Unidos por uma falta para lá de terrena (ter tentado entrar no país com dólares não declarados) e alvos de processos no Brasil por ´pecados` bem maiores, os pregadores valem-se da confiança dos fiéis e do apoio, por enquanto incondicional, do meia Kaká, titular do Milan e da seleção brasileira, para atacar quem se atreva a questionar os propósitos de seu ministério. Ou, simplesmente, como é o caso de CartaCapital, atenha-se a noticiar os percalços do pio casal. Apóstolo e bispa.

Na sexta-feira 7, advogados e assessores de imprensa da Renascer espalharam uma acusação grave contra a revista. Em nota distribuída à imprensa, a Brickmann & Associados Comunicação, com aval do escritório de Luiz Flávio Borges D´Urso, afirmou que a revista inventou uma reportagem e publicou documento falso. A nota é um espanto não só pela mentira em si, mas pelo tom agressivo e apelativo. Como é difícil defender os crimes dos fundadores da Renascer, a opção foi atacar CartaCapital e tentar angariar simpatia ao abusar da imagem do jogador. Ao título da nota, ´Contra Kaká, a baixeza dos mentirosos´, seguiu-se um texto entre malandro e mal-intencionado. ´CartaCapital tentou manchar a imagem de um ídolo de todos os brasileiros´, dizia um dos trechos.

Artimanha do capeta. Os serviçais da Renascer incorreram em mais uma mentira. Na edição 478, de 16 de janeiro de 2008, a revista publicou uma reportagem assinada pelo jornalista Paolo Manzo sob o título ´Fé, família, dinheiro´. No texto, Manzo conta que o promotor Marcelo Mendroni, do Ministério Público de São Paulo, estava interessado em ouvir Kaká como testemunha nas ações movidas contra a igreja. Queria informações sobre as doações do atleta ao grupo religioso. Como o jogador vive em Milão, o MP preparou uma série de perguntas a ser enviada à Justiça italiana, para que Kaká fosse ouvido na cidade onde mora.

CartaCapital publicou o documento elaborado por Mendroni. Observação: o promotor não foi a fonte da reportagem. No mesmo texto, Manzo descreve também o difícil relacionamento do meia da seleção com a sogra, católica convicta.

O processo contra os fundadores da Renascer corre na primeira instância em São Paulo. Ao ver o documento de Mendroni publicado na revista, os advogados do apóstolo e da bispa quiseram saber do juiz se as perguntas do promotor haviam sido anexadas aos autos do processo.

O juiz respondeu a verdade: não havia nenhuma lista de perguntas endereçadas a Kaká nos autos. Logo, concluíram de má-fé os asseclas da igreja, CartaCapital havia publicado um documento falso. E desencadearam a infâmia.

Eis a malandragem. As perguntas ao jogador não constavam dos autos simplesmente porque Mendroni não as havia enviado ao juiz de primeira instância. Preferiu encaminhá-las, como a lei permite, diretamente ao Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), ligado ao Ministério da Justiça.

Pelos acordos internacionais, qualquer solicitação de informações ao exterior tem de obrigatoriamente passar pelo DRCI. O Ministério da Justiça não só confirmou a veracidade do documento publicado pela revista. Informou ainda que as questões já foram remetidas à Justiça italiana. Kaká terá de respondê-las, mais dia menos dia. Gostem ou não os representantes da igreja.

CartaCapital sabe que a ira dos serviçais da Renascer tem outro alvo, o promotor Mendroni, cujo exitoso trabalho vem permitindo ao MP decifrar o milagre da multiplicação das moedas da igreja. Pelos cálculos, passa de 100 milhões de reais o patrimônio amealhado por Estevam, Sônia e seu núcleo familiar. Tudo em nome da fé.

Sabemos também que havia outro motivo inconfesso. Quando solicitaram informações sobre a existência do documento publicado na revista, os advogados pediram também o relaxamento da prisão do casal expedida pela primeira instância. O pedido foi negado, de forma dura, pelo juiz. Dias depois, na terça 11, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, concedeu habeas corpus ao apóstolo e à bispa. Eles podem regressar ao Brasil assim que cumprirem a pena nos EUA. A farsa pretendia, portanto, encobrir um fato até então negativo para os investigados.

Para não restar dúvidas sobre a ação premeditada dos assessores da Renascer, reproduzimos um e-mail enviado ao jornalista Paolo Manzo por Marli Gonçalves, da Brickmann & Associados. A correspondência foi enviada poucas horas antes de a nota infame ter sido distribuída à imprensa. ´Defesa é defesa´, conclui Marli, deixando claro que a assessoria agiu deliberadamente na divulgação de uma mentira.

Quem conhece Carlos Brickmann, dono da Brickmann & Associados, sabe do que ele é capaz. Basta constatar a presença significativa na sua carteira de clientes de notórios condenados pela Justiça, a começar pelos Hernandes. Certamente há quem busque seus préstimos pela disposição do assessor em praticar o jogo sujo, a aceitar tarefas que gente séria no mercado de assessoria de imprensa rejeitaria sem pestanejar. Entre outras, Carlinhos é afeito a denegrir concorrentes e adversários de seus clientes, inclusive por meio do baixo expediente de distribuição de dossiês e fofocas.

Se ele considera o dízimo que lhe é pago pela Renascer suficiente para se prestar a qualquer tipo de ignomínia, é uma opção de vida. Fique claro, porém, que CartaCapital tomará as medidas judiciais cabíveis.

Quanto ao advogado D´Urso, o que dizer? Presidente da OAB de São Paulo, causídico requisitado, D´Urso é mais um exemplo de indignação seletiva ambulante. Quando se trata de seus amigos, seus negócios e seus clientes, vale tudo. Aos inimigos, a lei. Provavelmente alguém dirá que estratégias desse tipo são comuns entre advogados. Mas, então, pergunta-se: diante de moral tão flexível, como D´Urso se arroga o papel de articulador de um movimento contra a degradação dos valores éticos da sociedade brasileira?

O que faz dele diferente daqueles contra os quais o movimento Cansei diz ter se insurgido?’

 

 

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