Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Daniela Name e Gustavo Alves

‘Há poucas semanas, a diretora Marisa Furtado falou com Will Eisner. O cartunista pedia que ela enviasse pelo correio uma foto com a filha recém-nascida, Cora. Queria botar na geladeira, ao lado de outras imagens de parentes e amigos. Marisa contou a vida do criador do detetive Denny Colt, o Spirit – um dos personagens de quadrinhos mais cultuados em todo o mundo – na série de três documentários ‘Will Eisner: profissão cartunista’. E estava preparando a carta com a foto da pimpolha quando recebeu a notícia da morte de Eisner. Ele tinha 87 anos e deixa uma das obras mais consistentes e sombrias do mundo dos quadrinhos. Um contraste com sua personalidade generosa e solar.

– Ele era luminoso, as melhores piadas eram dele – lembra Marisa. – Quando veio ao Brasil pela primeira vez, fez questão de ir a um barzinho-poeira em Copacabana, onde eu tinha feito um mural com personagens de quadrinhos. Fez um desenho no livro de assinaturas e chamou aquilo de ‘Minha Capela Sistina’.

Biógrafo manda boletins semanais sobre o cartunista

Há muito a saber sobre Eisner, criador de obras-primas como ‘O edifício’ e ‘Um contrato com Deus’. Ainda este ano, a Companhia das Letras publica as obras inéditas ‘The plot’, libelo contra o anti-semitismo, e ‘Fagin, the jew’, adaptação de ‘Oliver Twist’. A Devir vai traduzir o livro teórico ‘Graphic story telling’, que virá com o DVD de’Masterclass’, um dos documentários de Marisa. Nos Estados Unidos, Bob Andelman vai lançar a biografia do cartunista, fruto de três anos de pesquisas e que rendia boletins semanais enviados pela internet. No último, a notícia da morte.

Em 1954, o psiquiatra Frederick Werthan lançou o livro ‘A dedução dos inocentes’, que fez muito sucesso ao atribuir às histórias em quadrinhos desvios no comportamento infantil. Um dos exemplos citados por Werthan era o da suposta homossexualidade de Batman e Robin, fama que persegue a dupla dinâmica até hoje. Após 50 anos, os quadrinhos são adaptados pelo cinema (‘Homem-Aranha’ e ‘X-Men’) ou usados como instrumento de narrativa (em ‘Nina’ ou em ‘Kill Bill’). Art Spiegelman ganhou um Pulitzer contando como seu pai sobreviveu ao Holocausto, desenhando judeus como ratos e nazistas como gatos em ‘Maus’; Joe Sacco usa quadrinhos para fazer reportagens.

Boa parte desta mudança de atitude em relação aos quadrinhos pode ser atribuída a Eisner. Além de ficções como ‘Spirit’, ele escreveu o clássico ‘Arte seqüencial’. Nele, tentou mostrar que o gênero era uma arte digna de respeito, com uma linguagem própria.

Eisner usava ingredientes de outras formas artísticas – dos ambientes sombrios dos filmes policiais e do cinema expressionista alemão ao humor de Tchecov. Mas ele criou uma narrativa própria, na qual muitas vezes um grande quadro era usado para contar a história, com a ajuda do texto, o título da história ajudava a formar o cenário, por exemplo.

– Ele tentou vender a idéia de ‘Um contrato com Deus’ para uma editora de livros, e por isso usou o termo graphic novel, e não quadrinhos – conta o designer Aristides Dutra, mestre em Comunicação pela UFRJ com uma tese sobre Joe Sacco.

Eisner abriu espaço para mais histórias para adultos e autores como Alan Moore, Neil Gaiman e Frank Miller. Autores que, como ele, transformariam-se em clássicos.’



Jotabê Medeiros

‘Morre Eisner, o criador do Spirit’, copyright O Estado de S. Paulo, 5/01/05

‘Will Eisner (1917-2005) foi um artista de coração grande, que acolheu artistas iniciantes, nunca se negou a conversar e discutir sua arte com quem quer que fosse e viveu monasticamente, sem cair na tentação de acumular – apesar da reverência universal ao seu trabalho, considerado um dos grandes gênios das HQs. Jamais fez um único esforço em direção ao sucesso comercial.

O lendário autor do detetive Spirit, nos anos 40, morreu na segunda, aos 87 anos, após uma cirurgia cardíaca para pôr um marca-passo. Deixou a mulher que amava muito, Ann, para quem uma vez – ele é quem contava a história – construiu um pedal falso no chão do banco do passageiro, em seu carro, para que ela pudesse pisar no freio quando achava que ele estava indo muito rápido. ‘Foi o único jeito de deixá-la tranqüila’, brincava.

O senso de humor era finíssimo. Zombou das manias americanas de construir super-homens, homens infalíveis, guerras imperdíveis. Ironizou o sonho americano cego, insensível aos personagens frágeis, aos anjos caídos, aos inocentes sem escolha. Em álbuns como Um Contrato com Deus (Brasiliense, 1988) e outros, como O Edifício, No Coração da Tempestade, Nova York – A Grande Cidade (neste, inseriu na edição brasileira uma visão de uma esquina da Avenida São João, em São Paulo) e Um Sinal do Espaço (1972), Eisner descreveu uma tragédia humana invisível aos olhos da multidão, viu a maldade e a bondade, o terror e a redenção.

Neil Gaiman, um dos seus muitos admiradores, disse que ‘a vitalidade contínua de Eisner como um artista’ desafiava ‘a lógica, o senso, o tempo, a história e todos os jovens cartunistas de hoje’. Para Alan Moore, ele era o ‘Leonardo da Vinci’ dos comics. A revista Civilization o descreveu como um ‘Eisenstein’.

Foi o criador do conceito de graphic novel, romance gráfico, que exercitou em histórias de raro senso dramático e aguda observação da realidade. Seu timing narrativo era perfeito, com recursos cinematográficos, flashbacks, noções de enquadramento, iluminação, truques que evocavam movimentos de câmera, fusões.

Histórias bem contadas

‘Cada desenho conta uma história’, disse no ano passado ao The Washington Post. Isso sem falar na abordagem original, no domínio absoluto do storytelling, a descrição dos fatos.

Curiosamente, apesar de sua fama, o único filme feito sobre a obra de Eisner foi produzido no Brasil. Will Eisner – Profissão Cartunista, de Paulo Serran e Marisa Furtado, reúne dezenas de depoimentos e mostra o homem produzindo e explicando seu método. Eisner contava que ficou surpreso com o interesse, quando a produtora Marisa Furtado foi à Flórida, onde ele vivia, para pedir autorização para começar a filmar. Mas cedeu prontamente: amigo de Álvaro de Moya, de Ziraldo, de Ota e de diversos brasileiros desde os anos 60, ele adorou a idéia de ser homenageado pelos amigos dos trópicos.

William Erwin Eisner, nascido no Brooklyn em 3 de junho de 1917, era um nova-iorquino que conhecia a cidade como poucos, embora fizesse muito tivesse mudado para uma cidadezinha tranqüila na ensolarada Tamarac (Flórida). Dizia que tudo que tinha de ver em Nova York já tinha visto e essas imagens – em geral uma cidade em reconstrução, após o trauma da Depressão – o acompanharam em todo o seu trabalho.

Filho de imigrantes judeus, foi na escola De Witt Clinton High School, no Bronx, onde publicou seus primeiros trabalhos. Em 1936, estreou na revista WOW What a Magazine!, com os cartuns Karry e The Flame. Com Jerry Iger, fundou seu primeiro estúdio de criação e, mais tarde, começou a recrutar jovens artistas para trabalhar com ele. Entre os discípulos, Bob Kane (desenhista do Batman), o gênio Jack Kirby e Lou Fine. O seu primeiro grande álbum foi Falcão dos Mares.

Desde 1988, todo ano ele presidia o prestigioso Eisner Award, distinção que equivale a um Oscar para os desenhistas. O grupo de teatro Armazém viu a potencialidade dramatúrgica da obra de Eisner e montou, em 2003, a peça Pessoas Invisíveis, baseada em uma série de histórias do autor, entre elas O Edifício, Dropsie Avenue e A História de Gehard Shnobbel.’



Alessandro Giannini

‘Seus desenhos se diferenciavam pela sofisticação’, copyright O Estado de S. Paulo, 5/01/05

‘Spirit nasceu em 1940. Apesar da máscara e da aura sobrenatural, o herói resolvia suas questões com inteligência e força. Influenciado pelas narrativas curtas (os contos) na literatura, pelo experimentalismo americano e o expressionismo alemão no cinema, seus desenhos se diferenciavam pela sofisticação e pelas tentativas de fundir textos, clima e cenário – algo extremamente avançado para a época.

Embora Eisner tenha interrompido a série em 1952, o Spirit continuou sendo republicado nos Estados Unidos e em vários países, inclusive no Brasil. Douglas Quintas Reis, da Devir, atual editora de Eisner, avisa que tem os direitos da revista do herói e não descarta retomar a publicação. ‘Fiquei surpreso com a morte dele. Era um homem extremamente agradável, com muita energia. É uma perda muito triste’, afirmou.

Um Contrato com Deus (1978) inaugurou o conceito de graphic novel ou romance gráfico, algo que aproximava ainda mais a literatura do conceito que o autor explicou em um de seus livros de teoria, Quadrinhos e Arte Seqüencial. O álbum só viria a ser publicado no Brasil dez anos depois, pela editora Brasiliense – depois, ganharia edição mais popular, em dois volumes, pela Abril e uma reedição pela Devir. Entre as homenagens que recebeu, está a criação do Troféu Will Eisner, que premia os melhores do mundo dos quadrinhos no mercado editorial americano.

Nos últimos anos, Eisner se dedicava exclusivamente às graphic novels realistas, como No Coração da Tempestade, O Último Dia no Vietnã e, recentemente, O Nome do Jogo, e às adaptações de clássicos da literatura para os quadrinhos, em versões para crianças, como Moby Dick e outros títulos.

A Devir tem em catálogo O Último Dia no Vietnã, O Nome do Jogo e Avenida Dropsie. E tem em sua lista de espera uma nova edição de Contrato com Deus, O Sinal do Espaço, A Family Matter, Minor Miracles e o teórico Narrativa Gráfica. Antes de morrer, ele estava trabalhando em The Plot, sobre a farsa dos Protocolos dos Sábios do Sião. A publicação deve sair este ano pela Norton.’