Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Folha de S. Paulo

FUTURO DOS JORNAIS
Laure Belot Pascale Santi

O papel das elites

‘Para o jornalista americano Robert Cauthorn, pioneiro da informação on-line, a revolução digital nos meios de comunicação promete aposentar o jornalismo diário em papel em apenas uma geração.

Segundo o responsável pela adaptação à web de jornais como o ‘San Francisco Chronicle’, premiado pela Newspaper Association of America como ‘pioneiro digital’, a geração nascida com internet prescinde de folhear as páginas impressas do jornal.

A mudança é só uma questão de os preços do ‘papel eletrônico’ e das conexões sem fio chegarem a um nível acessível, disse ele na entrevista abaixo, dada ao ‘Le Monde’.

PERGUNTA – O ‘Yantai Daily’, na China, e o ‘Les Echos’, na França, estão fazendo experimentos com jornais que podem ser lidos numa simples folha eletrônica. Quando os jornais existirão apenas em formato digital?

ROBERT CAUTHORN – A revolução digital já está em curso. A hegemonia será dos suportes eletrônicos, que permitem o acesso a informações constantemente atualizadas.

É pouco provável que um adolescente de hoje, integrante da geração dos ‘digital natives’ [nativos digitais], nascidos com internet, leia um jornal diário impresso quando chegar aos 30 anos. Tudo se acelera.

Já hoje, meu telefone 3G [de terceira geração] me permite acessar vídeos de 30 imagens por segundo e um grande número de textos, a qualquer momento e em qualquer lugar.

Os jornais impressos vão se tornar anacrônicos a partir do momento em que houver ampla disponibilidade de telas de alta qualidade e baixo preço e quando as conexões de banda larga e sem fio se generalizarem. Isso deve acontecer em menos de cinco anos nos EUA.

PERGUNTA – Quer dizer então que o jornal de papel vai desaparecer?

CAUTHORN – Um livro impresso sempre terá razão de ser, já que pode ser lido várias vezes ao longo de muitos anos.

Mas quais serão as vantagens do papel para um jornal? A força do hábito para muitas gerações de leitores e o conforto da leitura em folhas grandes, mais agradável do que a leitura na tela.

Mas tudo vai mudar com a chegada, após a generalização da banda larga, da tinta eletrônica e das telas flexíveis.

Para produzir um jornal de papel, árvores são cortadas, transportadas, transformadas em celulose e depois em rolos gigantes de papel que são transportados para gráficas.

Jornais são impressos, embalados, carregados sobre caminhões e depois descarregados nos pontos-de-venda.

Os consumidores os compram, os levam para suas casas e, depois, os jogam no lixo. Eles são recolhidos por caminhões e, na melhor das hipóteses, levados a centros de reciclagem.

Tudo isso guarda mais relação com a logística do que com a informação! Para um produto tão imediato quanto um jornal, esse desperdício é obsoleto.

PERGUNTA – Como as organizações de imprensa vão se adaptar?

CAUTHORN – Os jornais nunca foram precursores, mas o modelo econômico do jornal em papel, que já se encontra sob pressão há dez anos, será cada vez mais pressionado. Quase todos os jornais dos países desenvolvidos perdem dinheiro entre segunda e quinta-feira e são lucrativos apenas três dias por semana.

O leitor que compra seu jornal sete dias por semana praticamente desapareceu. Doze anos atrás, eu criei para o ‘San Francisco Chronicle’ um dos cinco primeiros sites de informação na internet.

Dentro de 12 anos, duvido que os jornais impressos ainda sejam diários.

Dentro de cinco a dez anos vão surgir jornais impressos três dias por semana: às sextas e aos sábados e domingos.

Paralelamente, eles oferecerão informações na internet ou outras plataformas digitais durante sete dias por semana, 24 horas por dia.

O conteúdo desses jornais em papel será mais contextualizado, lembrando o das revistas atuais; os furos ou informações quentes já terão sido dados na versão digital.

PERGUNTA – Que conteúdo os jornais deverão propor?

CAUTHORN – Hoje os jornais oferecem uma informação generalista. Amanhã, terão que se adaptar aos universos diferentes dos leitores. Estes vão querer uma informação concisa e pertinente, que lhes seja entregue ‘on demand’ [por encomenda].

Assim, os longos artigos narrativos sempre existirão, mas de maneira menos dominante.

Hoje mesmo as pessoas já têm a tendência a ler apenas os títulos. Dentro das próprias redações dos jornais, é difícil encontrar pessoas que lêem um jornal inteiro. Essa tendência vai se ampliar.

PERGUNTA – Os jornais se tornarão um produto de consumo amplo?

CAUTHORN – É claro que não! Uma paisagem feita de informações que respondem apenas à demanda seria deplorável.

Entretanto, para serem lidos, os artigos terão que ser ainda mais surpreendentes, em vista da enorme concorrência representada pela profusão de informações disponíveis. Os jornalistas terão que pensar de maneira diferente e se preocupar mais com seu público.

Há uma verdadeira revolução por vir. Hoje a maior preocupação dos jornalistas ainda é com os horários de fechamento e com a questão de fazer a informação sair o mais rapidamente possÍvel. O desafio é grande, mas o momento é apaixonante para o jornalismo.

PERGUNTA – Como vão evoluir os blogs ou o jornalismo cidadão e colaborativo? Estamos assistindo ao fim do quarto poder?

CAUTHORN – Não. Mas ele terá que aceitar compartilhar seu poder. Já hoje, nos EUA, blogueiros privados, que não têm o patrocínio de nenhuma instituição, gozam de tanta notoriedade junto ao público quanto os maiores editorialistas.

Até hoje as pessoas que controlavam os jornais eram aquelas que tinham voz de autoridade no debate público. Isso era algo inerente ao equilíbrio de poder entre a imprensa e as instituições. Essa divisão de papéis pertence ao passado.

Os blogs nunca vão tomar o lugar do jornalismo, mas vão continuar fazendo parte da paisagem. Quanto ao jornalismo cidadão, vai constituir uma maneira rápida e eficaz de revelar um acontecimento, mas nem por isso tornará obsoleto o jornalismo tradicional.

Apesar disso, não creio que esse tipo de jornalismo seja capaz de lançar luz sobre crimes ou temas políticos.

Para isso é preciso que se tenha acesso a determinadas fontes, e, sobretudo, é preciso contar com a proteção de uma instituição como um jornal.

Este texto foi publicado no ‘Le Monde’. Tradução de Clara Allain.’

***

Relatório vê crise em jornais dos EUA

‘O Projeto pela Excelência no Jornalismo, organização que analisa a imprensa americana e que, em sua origem, foi ligada à Universidade Columbia (EUA), divulgou seu relatório anual sobre o estado da mídia nos EUA no último dia 12, afirmando que a maioria dos meios de informação está perdendo popularidade no país.

Diz também que o modelo de negócios dos jornais impressos está em crise. ‘No último ano, as tendências de mudança na imprensa não apenas se aceleraram mas, aparentemente, estão se aproximando de um ponto crítico’, crava o informe, que pode ser acessado no site www.stateofthenewsmedia.org (em inglês).’



INTERNET
Elio Gaspari

Grampearam 8.787 e-mails no Museu Imperial

‘DESDE A MADRUGADA de 17 de novembro de 1889, quando sumiu a maleta de jóias da imperatriz Tereza Cristina, o patrimônio dos Bragança não passava por transtorno semelhante. No dia 7 de fevereiro, funcionárias do Museu Imperial foram surpreendidas por mensagens eletrônicas do serviço Gmail, informando que as memórias de suas caixas estavam saturadas. Como elas não tinham caixas no Gmail, foram ver o que houve. A diretora do museu, Maria de Lourdes Parreiras Horta, aprendeu que, desde agosto do ano passado, 8.787 mensagens de 34 endereços funcionais do museu haviam sido repassadas para um desconhecido musimp@gmail.com.

O encarregado do serviço, Aluizio Robalinho, explicou-se: por motivo de segurança, criara uma espécie de ‘backup’ no Gmail. Fizera isso sem pedir autorização a quem quer que fosse. Muito menos contara que arquivava numa caixa particular a correspondência funcional dos outros. Seu ‘backup’ era esperto. Antes que fosse apagado, conseguiu-se comprovar que quatro mensagens alheias haviam sido redirecionadas. Três para um endereço do próprio funcionário e uma para Mário de Souza Chagas (pmariosc@terra.com.br), coordenador técnico do departamento de Museus e Centros Culturais do Iphan, subordinado ao diretor José do Nascimento Jr. A mensagem incluía um tenebroso ‘para seu conhecimento’. Anexava diálogo da diretora do museu com a chefe do arquivo.

Com 41 anos de serviço público, 20 de Museu Imperial e há 16 na sua direção, Maria de Lourdes Parreiras Horta chamou a Polícia Federal. O Ministério da Cultura abriu uma sindicância interna. O funcionário que privatizou comunicações do serviço público e criou o ‘backup’ esperto, atribui a encrenca à ação de algum hacker. O uso de sítios como o Gmail para fins criminosos permite à polícia varejar a memória da caixa fantasma. Quando mensagens eletrônicas do serviço público são retransmitidas para o comissariado de Brasília, está instalada uma forma inédita de espionagem político-administrativa. As escutas da ditadura passam a ser brinquedo de criança.

Quem deve estar contente com essa marmelada é d. Pedro 2º. Testou o telefone de Graham Bell, e está na crônica do grampo, com o seu museu transformado em Big Brother.’



TELEVISÃO
Juliana Monachesi

Nem tudo a ver

‘A guerra de audiência entre as TVs Globo e Record no horário dos programas ‘Big Brother Brasil 7’ e ‘Vidas Opostas’ é sintomática do nicho que as duas emissoras estão perseguindo: o filão do ‘real’. Um reality show contra uma telenovela que ‘retrata a vida como ela é’.

Assim, a ameaça à hegemonia da Globo sobre o imaginário brasileiro -devido ao crescimento constante e sustentado de audiência da Record- vem se configurando como uma batalha travada no âmbito da habilidade em apresentar a ‘realidade’ social do país aos espectadores brasileiros, tanto no campo jornalístico quanto no ficcional.

Para debater essa questão a Folha ouviu o crítico de cinema Fernão Pessoa Ramos. Em pesquisa para elaborar o ensaio ‘O Horror, O Horror! Representação do Popular no Documentário Brasileiro Contemporâneo’ -parte do livro ‘Afinal, o Que É mesmo Documentário?’, que sai no segundo semestre pela editora Senac-, Ramos investigou em profundidade a produção documental. Em especial as condições de vida em contextos sociais de violência e pobreza, além de se dedicar também à análise de programas televisivos que seguem a mesma linha.

Professor de história e teoria do cinema na Universidade Estadual de Campinas (SP), autor de ‘Cinema Marginal (1968-1973) – A Representação em Seu Limite’ (ed. Brasiliense), Ramos fala, em entrevista à Folha, sobre a clonagem de padrões jornalísticos e dramatúrgicos da rede Globo pela Record e trata da representação popular no cinema e na TV.

FOLHA – Em seus estudos sobre a representação da alteridade social no documentário brasileiro, o sr. discute a ‘clivagem do popular’ no cinema. Anuncia-se, com o crescimento de audiência da Record, um horizonte de ‘clivagem do popular’ também no cenário televisivo?

FERNÃO PESSOA RAMOS – Apesar de não ser um crítico de TV, acho que a Record, até onde eu estou acompanhando, está tentando galgar o posto da Globo com uma proposta explícita de clonagem. É o caso, por exemplo, do ‘Jornal da Record’, que é muito parecido com o ‘Jornal Nacional’.

As novelas também são muito similares: a cenografia é muito parecida, ambas as emissoras fazem uso da iluminação de três pontos, que dá um outro realce às imagens; a fotografia também é muito parecida. Na realidade, A Record está em busca de um padrão Globo de qualidade, criando um padrão Record de qualidade que é quase igual ao da concorrente. Creio que se trata efetivamente de um grupo forte, que tem dinheiro da igreja [Universal do Reino de Deus] e que está bancando a Globo, mas indo no mesma direção.

A diferença em que se pode pensar talvez esteja no fato de que é gerida por uma igreja neopentecostal, mas esse lado está um pouco em recuo. Irá transmitir a missa do papa Bento 16 [durante sua visita ao Brasil, em maio próximo] etc., mas alguns elementos em relação aos quais havia um certo receio, logo no início da Record, quando a identificação com a Igreja Universal era muito forte [o bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, é dono da Record desde 1990], hoje já não são mais motivo de receio, como nas novelas, por exemplo.

A dramaturgia televisiva brasileira é extremamente erotizada. Tanto a dramaturgia quanto a publicidade. Em relação a esse aspecto, em uma igreja neopentecostal, de um protestantismo exacerbado, deveria haver uma certa censura em seguir a Globo. O corte erotizado marca muito as novelas. Você tem, por exemplo, novelas em que os atores passam capítulos inteiros sem camisa, o que é completamente inverossímil. O cenário predileto é a cama. As pessoas estão sempre se beijando, e isso às 19h, às 20h. Não entrarei em considerações do que deve ou não deve ser censurado; estou só constatando.

FOLHA – Então o sr. diria que essa mudança não chega a interferir na constituição do imaginário do ‘povo’ brasileiro?

RAMOS – Acho que não, mas gostaria de apontar dentro desse recorte da representação criminalizada do popular -o popular sempre cercado de morte, de tragédia, de horror, marcado pelas condições de vida precárias etc.- que a Globo teve um momento ápice, que foi a veiculação de ‘Falcão – Os Meninos do Tráfico’, de MV Bill e do Celso Athayde.

Existiu esse momento um pouco paradigmático da representação do horror ou do popular criminalizado na mídia brasileira: a veiculação do ‘Falcão’ no programa dominical da família brasileira, que é o ‘Fantástico’, foi bem significativa. Vejo três fatores aí. Primeiro, a exibição de um documentário, com um tipo de imagem que foi montada dentro do padrão global, inserido dentro do ‘Fantástico’, anunciado por uma apresentadora da rede Globo, que é a Glória Maria. Ele vem toda edulcorada pelo padrão global, mas as imagens não são da Globo.

As imagens são de um rapper que nasceu na favela e um produtor que também vivenciou de dentro aquelas situações. Por outro lado, há a representação do popular na dramaturgia da Globo, e cito como exemplos ‘Cidade dos Homens’, a série feita a partir do filme ‘Cidade de Deus’, e ‘Antônia’, mais recentemente. ‘Cidade dos Homens’, sobretudo, tem esse corte bem forte, da favela, do traficante, da miséria. Pode-se notar essa presença da imagem popular na televisão brasileira, o que, se não é algo inédito, ressurge como uma novidade em 2005-6.

O interessante é que, simultaneamente, a Record exibiu ‘A Turma do Gueto’, que era um programa de dramaturgia mais clássica, um pouco mais primário, mas muito parecido com ‘Cidade dos Homens’, e passava no mesmo horário.

Lembro-me de um episódio de ‘A Turna do Gueto’ que mostrava um exterminador a favor do assassinato dos criminosos e uma professora ligada a uma ONG com a qual discutia -algo bem mais explícito do que o ‘Cidade dos Homens’, com um estilo sanguinolento.

Já a série da Globo foi produzida pela O2, que é um pouco a vanguarda na produção audiovisual brasileira, vanguarda no bom ou no mau sentido. Mas, enfim, com um vínculo muito grande com a propaganda, toda a evolução tecnológica à disposição e todo o padrão global atrás, e com a dramaturgia do Guel Arraes etc.

E o terceiro ponto se refere a ‘Central da Periferia’, que é a exaltação do popular; foi um programa lançado com o manifesto de um antropólogo -nunca vi isso-, Hermano Vianna, enfatizando a necessidade de mostrar o popular.

E a série toda, que depois se transforma em bloco do ‘Fantástico’, tem no horizonte trabalhar de maneira positiva com o universo do popular, e como se o retratasse como ele é.

FOLHA – Mas que na verdade é um mito de transparência, não?

RAMOS – Lógico, até pela presença da apresentadora Regina Casé, que provoca uma alteração na realidade da favela. Mas o discurso por trás é esse. Sente-se que a exibição de ‘Falcão’ foi algo bem marcante dentro da produção global, algo assim como um acertar de contas.

Isso é muito forte no Rio de Janeiro, porque lá se vive a miséria da favela na próxima esquina. O Rio também viveu o episódio envolvendo o jornalista Tim Lopes, que foi executado no morro [em junho de 2002, no complexo do Alemão]. Esse foi um paradigma do horror para a Globo.

FOLHA – Entre esses exemplos de aproximação do popular pela dramaturgia, e considerando também a novela ‘Vidas Opostas’, que busca retratar o tráfico e a violência com verossimilhança, ocorre a experiência de culpabilização do espectador de que o sr. trata em seu artigo?

RAMOS – Do popular e também de uma certa imagem intensa. Em ‘Páginas da Vida’ [que acabou em 2/3], ao final de cada capítulo havia uns trechinhos de documentário, de depoimentos, nessa mesma linha ‘a vida como ela é’ de ‘Vidas Opostas’. Logo no início, me lembro que foi veiculado o depoimento de uma mulher que havia feito um aborto, e isso teve muita repercussão na mídia.

É um dado importante que ao final de uma novela carregada de ficção, de edulcoração da realidade -dentro de um esquema narrativo completamente distinto do documentário- haja um depoimento real.

Então, respondendo à sua pergunta, são narrativas muito distintas. Mas, em relação à postura do espectador, acho que há uma cisão, e isso se sente muito no cinema e também na televisão. Essa cisão se aplica aos dois porque essa representação do popular é feita por pessoas de classe média.

Existe hoje uma produção audiovisual comunitária, produções documentárias e ficcionais feitas pela própria população que mora em favelas e áreas precárias, e raramente a gente vê a representação do horror nesses filmes.

FOLHA – Então o ‘horror’ está mais no olhar e na leitura que a classe média faz sobre a sociedade do que na própria sociedade?

RAMOS – É porque existe uma clivagem: na realidade, está se falando sobre o outro, não sobre si mesmo. Não acho que seja uma representação pejorativa, não acho que seja uma representação preconceituosa, é simplesmente uma representação assustada, assustada com uma coisa que não se conhece e que produz essa leitura.

E isso corresponde, evidentemente, a uma sociedade que tem o pior nível de distribuição de renda do mundo. Então você fica isolado de um lado e o resto da população, que a gente denomina ‘povo’, 80%, 85% ficam na outra ponta da balança.

Na TV caberia uma análise mais em detalhe para perceber as nuanças, de modo a não falar de generalidades e fazer as mediações necessárias, mas sinto que o corte é parecido.

FOLHA – A produção documental deve ser afetada com a popularização das mídias digitais? Como a facilidade de circulação de conteúdo documental na internet já repercute no campo da reflexão sobre o documentário no cinema?

RAMOS – Eu acho que está emergindo, tanto na ficção como no documentário.

Em termos efetivos, não está tão embrionário assim, porque existem diversos grupos e depois isso se transforma até em formação profissional.

Mas, sinceramente, eu não vejo uma presença forte que venha daí e que marque a produção institucional, a grande produção.

Esta continua envolvendo grandes valores, e continua, portanto, na mão de quem tem dinheiro ou quem sabe se mover nos órgãos competentes para conseguir esse dinheiro, colocar em circuito, exibir em festivais.

São poucos os movimentos diferentes disso. A televisão envolve também grandes recursos, envolve também pressão, demanda da audiência. Respondendo a sua pergunta, existe, sim, um movimento forte de audiovisual que passa ao largo da classe média, mas ele não chega ainda a influenciar a grande produção.’

Marcelo Tas

A TV tupi

‘Vocês querem a BBC? No Brasil, somos colocados quase que diariamente diante da dúvida: será que vamos sair do buraco ou cada vez mais estamos acelerando em direção ao fundo dele? Essa dúvida bipolar me paralisou quando o ministro das Comunicações, Hélio Costa, apareceu para anunciar a rede pública de TV brasileira.

‘Sensacional’, pensei. Mas depois notei que o nome do projeto era ‘TV Pública do Poder Executivo’. O ministro Costa argumentou que o presidente tem dificuldades para ‘mostrar suas idéias’ nos canais privados. O colega dele, Tarso Genro, recém-empossado na pasta da Justiça, do alto dos seus bigodes ralos, completou a justificativa: falta ‘liberdade de circulação de opiniões’.

Ora, todos sabemos que o lugar menos adequado para uma circulação livre de opiniões é justamente um veículo de comunicação controlado pelo governo. Ou alguém acredita que os cubanos podem circular suas opiniões no jornal ‘Granma’? ‘TV Pública do Poder Executivo’ é um projeto que se autodesfaz no próprio nome. Ou a TV é pública ou é do Poder Executivo.

Faísca

A iniciativa do ministro Costa suscitou uma série de editoriais, artigos e debates, mostrando que o assunto realmente importa. Será que essa faísca, disparada neste momento de gigantesca mudança tecnológica, não é uma oportunidade histórica para discutirmos como aperfeiçoar o embrião de TV pública, iniciado pela TV Cultura de São Paulo e depois espalhado numa frágil rede de emissoras pelo Brasil?

Depois de ser levado às cordas pelo bombardeio de críticas, o ministro Costa retomou a argumentação sugerindo como modelo a BBC inglesa. Ok, excelente ponto de partida. Porém acreditar na possibilidade de uma BBC brasileira, com o nível pífio do debate atual, é o mesmo que acreditar que seremos capazes de produzir um grande vinho francês Bordeaux, digamos um Grand Cru Château Latour, nos vinhedos de Jundiaí, dentro de três ou 30 anos.

A BBC -British Broadcast Corporation- existe há 87 anos. É resultado de um longo e constante processo de pressão e articulação de forças entre governo e vetores da sociedade britânica. Já foi submetida a duros testes de independência. Até Winston Churchill e Margaret Thatcher já tentaram interferir na linha editorial da BBC, sem sucesso.

A velha Auntie (a tia), como a BBC é carinhosamente tratada por seus telespectadores, sobreviveu respondendo com aumento de eficiência e excelência de programação. Na última terça-feira, o ministro Luiz Dulci, da Secretaria Geral da Presidência da República, me deixa novamente em dúvida bipolar. No programa ‘Observatório da Imprensa’ (TVE-RJ), declara preferência pelo modelo da RAI italiana. Justificativa: ‘Quem indica o diretor de programação da RAI é o primeiro-ministro, que foi eleito pelo povo’.

O raciocínio do ministro parece nos dizer que essa é uma forma democrática de a sociedade participar da TV pública. Acreditar nessa tese seria o mesmo que acreditar que foi a sociedade, e não o PMDB e aliados, que escolheu o novo ministério do presidente Lula. Nelson Motta também abordou o assunto em sua coluna na Folha (16/3). Motta simplesmente pede o fim das TVs públicas sob o argumento de que elas teriam audiências que ‘somadas, não chegam a um ponto de ‘share’. Que o querido Nelson me acompanhe no replay a seguir.

União de forças

Na década de 1970, num encontro de forças inédito, a TV Globo e a TV Cultura de São Paulo se uniram para produzir a versão brasileira do seriado norte-americano ‘Vila Sésamo’, então apresentado na TV pública americana. Foi um marco da teledramaturgia infantil, um retumbante sucesso de público e crítica. Em 1990, no auge da era Xuxa, estreou ‘Rá-Tim-Bum’, na TV Cultura. Em três meses, o seriado empatava em audiência com a loira da Globo. A série virou referência, ganhou prêmios internacionais e mudou a cara da TV infantil brasileira.

‘Castelo Rá-Tim-Bum’, a seqüência, estreou em 1995 e é reapresentada até hoje com altos índices de audiência. Aliás, na semana em que Nelson Motta publicou sua coluna, a faixa infantil vespertina da TV Cultura, mesmo combalida por reprises, chegou a 2,5 pontos de média. Atrás apenas de Globo, Record e SBT.

Mas talvez o melhor modelo para a rede pública de TV do Brasil deva ser aquele que os jardineiros ingleses recomendam para a obtenção de um excelente gramado: plantar e cuidar bem durante uns cem anos.

MARCELO TAS é jornalista, autor e diretor de TV. Participou da criação das séries ‘Rá-Tim-Bum’ e ‘Castelo Rá-Tim-Bum’, além do ‘Telecurso 2000’ (Fundação Roberto Marinho/Canal Futura).’

Páginas viradas

Beatriz Resende

‘É mote sempre repetido que o imaginário popular, no Brasil, é moldado pela indústria cultural de massa. Leia-se, entre nós, a televisão. A medida dos índices de audiência pratica classificações socioeconômicas buscando identificar os espectadores, ainda, em classes, atualizadas por possibilidades de consumo. Só que, como disse Brecht, os tempos mudam, a realidade pode ultrapassar aqueles que precisam adivinhar o que passa pela cabeça do público, mesmo quando se trata de especialistas em audiência.

De repente, nos damos conta de que mudanças que já vinham acontecendo havia algum tempo surpreendem ao público e aos especialistas. De todos os produtos da televisão brasileira é a telenovela o que se apresenta como peculiar: exportável, de sucesso, sofrendo pouquíssimas modificações desde que se instalou em sua programação horizontal de tal modo forte que a ‘novela das oito’ continua assim identificada, seja qual for o horário em que é exibida. Falar em novela, tradicionalmente, é falar em TV Globo. Subitamente, porém, novela de outra emissora (neste caso a Record) abala esse reinado incontestável. Termina uma, outra se inicia e ‘Vidas Opostas’ continua ofuscando o brilho do lançamento.

Cabe pensarmos nesse fenômeno específico para entender um pouco o que anda se passando na relação entre os supostos formadores do imaginário nacional e o público, não tão passivo como se poderia crer. Sem dúvida, a Globo, desde a criação do gênero telenovela, das séries e minisséries, dispõe de invejável elenco de dramaturgos. Desde os tempos de Vianninha e Paulo Ponte, autores da maior competência são abduzidos, sugados pelos valores, visibilidade, prestígio e outras possíveis vantagens oferecidas pela ‘Vênus Prateada’, como diria Walter Clark.

O teatro brasileiro sofre com isso, sem condições de concorrência com o espetáculo que está ao alcance da mão, dentro da própria casa, em rede aberta, sem custos maiores que a compra do televisor. Se o elenco de roteiristas da emissora hegemônica continua exibindo talentos indiscutíveis, o gênero, porém, vem sofrendo de envelhecimento.

Qual realidade?

Mais do que isso, o formato indiscutível, o horário permanente exigem para a sobrevivência da telenovela a maior diversidade possível. E aí surge o primeiro problema, que, a meu ver, a nossa velha companheira ‘novela das oito’ vem apresentando: a perda do grupo de Dias Gomes (1922-1999).

A Gomes, responsável por criações originais e peculiares, pelo uso do cômico, do absurdo, da sátira social e da crítica política, levou um acidente. A seus parceiros mais constantes, seguidores de uma proposta tributária do ‘Organon’ de Brecht, a emissora se encarregou de eliminar: Ferreira Gullar e Marcílio Moraes. Perdeu-se, então, significativa parte da diversidade possível. Sofreram os espectadores, sofreu o gênero. Ganhou a poesia, no caso de Gullar, a literatura de ficção e a Record, no caso de Moraes.

Segunda novela que este cria para a emissora, ‘Vidas Opostas’ e o sucesso que obtém apontam para a segunda questão: que realidade, que personagens, que trama desperta o interesse do espectador neste momento? Os conflitos pessoais dos elegantes e suas belas casas, os vestidos e corpos bem cortados? Os dentes absolutamente reluzentes, seja qual for a idade ou situação social dos personagens? As regravações (todas excelentes) dos melhores momentos da Bossa Nova?

Tudo isso é apresentado enquanto o pau está comendo do lado de fora e o som toca alto funk e rap, da ‘comunidade’ aos condomínios de luxo? É isso que não se sustenta mais. O autor de ‘Vidas Opostas’ declarou que sua novela se inspirou ‘em fonte clássica, ‘Fuenteovejuna’, de Lope de Vega, primeira obra da dramaturgia ocidental a ter o povo como protagonista’.

O núcleo pobre deixa então de ser coadjuvante, ocasião de lançar um novo cantor popular ao agrado dos subúrbios ou recurso para preencher a quota de negros indispensável. Fala forte, toma conta da trama. O uísque é substituído pela cachaça, a violência rola solta, os dentes, decididamente, não brilham artificialmente.

Longe estou de defender o realismo como forma de arte a ser privilegiada. Porém, se é para fazer televisão, não dá para ignorar a realidade e, mais do que isso, recusar-se a conhecer a cidade real, aquela em que a periferia já deixou de ser espaço distante que a câmara apresenta depois de cruzar montanhas e viadutos, numa bela visão de uma cidade de cartão-postal.

Para construir ficção e arte, hoje, é prudente que o criador se deixe impregnar pelo que anda acontecendo além do Projac. E ainda nem chegamos à TV interativa!’

Lucas Neves

O humor não tem que ser julgado por ser novo ou velho

‘Por boa parte dos anos 70, a ensolarada (e fictícia) Chico City foi a capital nacional do riso. Era para lá que, semanalmente, Pantaleão levava uma legião de telespectadores ávidos por ouvir suas lorotas, enquanto o prefeito Valfrido Canavieira preparava mais uma jogada populista. O som de Baiano e os Novos Caetanos embalava os comícios.

Pois os personagens de Chico City e outros se recolheram ao longo das últimas décadas, e restou Chico Anysio, 76. É a figura de um comediante saudosista e desanimado (amargurado talvez?) que aparece na entrevista desta página e em ‘Chico Anysio É’, documentário inédito que o Canal Brasil mostra nesta quinta, dia 29, às 23h. ‘Meu único prazer no momento é acordar. Quero mais é menos’, disse ele, que sofre de enfisema pulmonar, à Folha.

Com a carreira televisiva restrita a participações especiais (está na novela global ‘Pé na Jaca’) e sem atuar em um filme há 11 anos (desde ‘Tieta’), Anysio prefere evocar os tempos de rádio Guanabara, no Rio. Ali, a partir de 1947, foi programador de boleros na madrugada, rádio-galã, humorista e comentou jogos do ‘Expresso da Vitória’ vascaíno. Dez anos depois, estreava na TV Rio com o ‘Noite de Gala’.

Em 1968, migrou para a Globo, onde emendou ‘Balança, mas Não Cai’, ‘Chico Anysio Show’, ‘Escolinha do Professor Raimundo’ e outros. Se o humor se renovou ou não nas últimas quatro décadas, não lhe interessa. ‘O humor não tem que ser julgado por ser novo ou velho, mas por ser bom ou ruim’, defende. ‘O povo prefere piada que já conhece.’ Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

FOLHA – Nos intervalos da carreira de ator, o sr. compôs músicas como ‘Rio Antigo’ e ‘Choro Louco’. No documentário ‘Chico Anysio É’, diz que ‘Águas de Março’ também deveria ter sido criação sua. Por quê?

CHICO ANYSIO – Porque o Tom Jobim era um homem da cidade, do asfalto de Ipanema. Eu fui um cara do interior, então eu vi o tijolo chegando para a construção, sei que só podia caiar [pintar] a casa depois das águas de março. Eu vi febre terçã. É feito ‘A Banda’: o Chico [Buarque] nunca viu a banda passar. Ele descreveu perfeitamente, mas por talento, e não experiência.

FOLHA – O documentário lembra também seu trabalho como escritor, pintor, diretor de cinema e comentarista esportivo. A qual dessas atividades gostaria de ter dedicado mais tempo?

ANYSIO – À pintura. Porque teria tido mais tempo para aprender, para melhorar. Teria mais tempo para me tornar conhecido e aceito, para vender meus quadros por um preço melhor. Cheguei a admitir que a pintura seria meu emprego da velhice, mas não vai ser, porque ninguém está comprando nada de obra de arte, e pintar para guardar é terrível.

FOLHA – Não dá para seguir pintando por prazer?

ANYSIO – Tenho 76 anos. Meu único prazer no momento é acordar. Quero mais é menos.

FOLHA – O começo de sua carreira, foi na rádio Guanabara. Em 2000, um crítico escreveu que, passados mais de 50 anos, o sr. ainda insistia no humor radiofônico (de bordões e piadas repetidas). Esse humor ainda tem vez?

ANYSIO – Vou lhe dizer uma coisa. Só acredito no humor falado. Não acredito no visual. E, se uma pessoa quiser me dizer que o humor visual é melhor que o falado, que tente me dizer sem falar. Essa frase é do Millôr [Fernandes]. O humor falado é o que fica.

FOLHA – Qual o futuro do humor brasileiro?

ANYSIO – Não tenho a menor idéia, por uma razão: não assisto. Sou um cara de língua solta e não quero dar palpite. Eu ando pelo Brasil todo e só ouço reclamação. Todo mundo reclama do ‘Zorra Total’, do ‘Casseta e Planeta’, da ‘Praça É Nossa’. Eu prefiro não ver. Se quisessem palpite, pediriam para mim. Mas ninguém me pergunta, ninguém quer saber, cada um sabe o que tem que fazer…

FOLHA – O sr. se ressente de não ser consultado sobre os humorísticos?

ANYSIO – Não, não. Não me ressinto de nada. Há 20 anos, eu imaginava o seguinte: ‘Quando não puder mais trabalhar, vou ser supervisor do humor da casa’. E aí [risos] esse cara foi o Guel Arraes, não fui eu. Mas não fiquei com bronca do Guel.

FOLHA – Como o senhor avalia o trabalho dele?

ANYSIO – Não avalio porque não vejo. O que vi, gostei, que foi ‘A Comédia da Vida Privada’. Cada um tem seu jeito, né? Mas deve ser o que a Globo mais gosta…

FOLHA – Tem algum projeto de programa?

ANYSIO – Eu e meu irmão [Elano de Paula] fizemos a novela da terceira idade. A nossa intenção era que ela fosse ao ar às 17h. O meu irmão chamou o Daniel Filho e perguntou: ‘Do que é que o público mais gosta em novela?’. Ele respondeu: ‘Repetição. Quanto mais você repetir, melhor’. Dá a impressão de que é um exagero, né? Mas fiz há pouco ‘Sinhá Moça’ e gravei pelo menos umas 14 cenas que eram a mesma coisa. Acho que cada novelista tem só uma história. No humor, é a mesma coisa. O povo prefere a piada que já conhece. Em 1948, Haroldo Barbosa, Antônio Maria, Jota Ruy, eu e outros combinamos que o nosso humor, o humor brasileiro, seria o de quadros e personagens que se repetem semanalmente. Não é novo nem velho. É o humor que existe. Ele não tem que ser julgado por ser novo ou velho, mas por ser bom ou ruim.

FOLHA – Em ensaio publicado na ‘Vanity Fair’ e reproduzido na Folha, o escritor inglês Christopher Hitchens defendeu que as mulheres não são engraçadas porque não precisam desse atributo na conquista amorosa. Como o sr. vê essa tese?

ANYSIO – Acho que ele exagera. Mas tem um fundo de verdade. As mulheres atraem pela beleza, e os homens, pelo humor. Um cara mal-humorado não há mulher que suporte. Um bem-humorado pode até ser meio feio que ela suporta. Eu até me vali muito disso na minha vida… Acho que a mulher não gosta tanto de fazer humor porque não gosta de aparecer feia; o homem não se incomoda.

FOLHA – No mesmo artigo, Hitchens afirma que, em termos de humor, obscenidade e sujeira são ‘o que os clientes querem’. O senhor viu o filme ‘Borat’? Como vê esse humor que combina escatologia, escracho e incorreção política?

ANYSIO – Não vi o filme. Não concordo com esse humor grotesco, com esses atrevimentos. O meu humor é manso, falado, leva uma mensagem. Quando estava no ‘Zorra Total’, me sentia deslocado, fora do meu habitat. Eu criei aquele programa, mas não era para ser assim.

FOLHA – Havia excessos?

ANYSIO – Todos. Aquelas modelos de biquíni em uma festa a rigor eram um absurdo. Tem um erro muito grande ali.’

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Comediante diz ter 35 roteiros prontos

‘Em 1996, no papel do pai da personagem-título de ‘Tieta’, de Cacá Diegues, Chico Anysio pôs fim a um longo inverno cinematográfico: haviam passado 25 anos desde a estréia da comédia erótica ‘O Doce Esporte do Sexo’. Antes, ele havia participado de chanchadas como ‘Mulheres à Vista’ e ‘Cacareco Vem Aí’.

Mas a volta aos sets parou por aí -segundo ele, por falta de convites. A autoconfiança exacerbada (assumida no documentário ‘Chico Anysio É’, em que diz: ‘Sempre acabo fazendo o que quero’) não seria a razão da escassez de propostas? ‘O meu esporte favorito é fazer o diretor mudar de idéia a meu respeito’, brinca, para logo tergiversar e ‘vender seu peixe’. ‘Não chego atrasado, sei as minhas falas, obedeço ao que o diretor manda. Olha, é difícil achar um profissional melhor do que eu.’

Preterido como ator, decidiu se concentrar nos roteiros. Calcula ter 35 (?) ‘prontinhos, que são minha herança para meus filhos’. Boa parte dos scripts é em inglês -algo que faz sentido para quem já chegou a dizer que não adiantava criar histórias em português porque, no Brasil, só se filmavam adaptações de Nelson Rodrigues e Jorge Amado. Hoje, abranda o discurso. ‘Foi uma frase. Sempre deu [para fazer filme aqui], desde que houvesse boa vontade, empenho’, afirma ele, citando Walter Salles e Breno Silveira como bons diretores nacionais.

Burt Reynolds

Mas, afinal, algum roteiro foi filmado? ‘Eu tinha um agente na América, o Arthur, que morreu. Antes, me telefonou, de Los Angeles, dizendo que tinha entregue três roteiros, ‘A Viúva’, ‘Caminhão do Lixo’ e ‘O Frade’. Sei que um foi dado à Sally Field e outro, ao Michael J. Fox’, explica.

De acordo com Anysio, ‘O Frade’ seria filmado pelo Hugh Hudson, diretor de ‘Carruagens de Fogo’, filme vencedor de quatro Oscars em 1981. Mas o cineasta desistiu. ‘O Burt Reynolds interpretaria o papel principal. Era filme para ganhar Oscar, pois quem lê acha maravilhosa a história de um frade que vai parar em uma colônia de pescadores depois que o navio dele naufraga, no norte da Irlanda’, conta o humorista, com inflexões hiperbólicas.

Anysio, no entanto, tem uma alternativa brasileira em mente. ‘Mandei o roteiro para o Daniel Filho, para ver se ele filma lá [nos EUA] e se arrisca a ser indicado para um Oscar.’

Deixando momentaneamente de lado a fixação na estatueta dourada, o comediante elege a chanchada como a linguagem cinematográfica brasileira por definição. ‘Se você fizer uma chanchada com os recursos de hoje, arrebenta’, especula.

Mas não se arrisca a ressuscitar o gênero. ‘Não tenho quem vá filmar, não sei para quem mostrar.’ Talvez para Daniel Filho? ‘Não sei, não sei. Está difícil chegar ao Daniel. Ele tem muito o que fazer’, desconversa Anysio.

Enquanto o frade irlandês não ganha a tela grande, Anysio roda o Brasil com os shows de humor ‘Eu Conto, Vocês Cantam’ e ‘Chico.Tom’ (com Tom Cavalcante). E acalenta o projeto de um programa dominical, o ‘Papo Furado’, em que seria um contador de histórias.’

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Personagens de Anysio estão no Youtube

‘Aposentados da televisão à própria revelia, alguns tipos criados pelo humorista se ‘exilaram’ no YouTube. Digitando ‘Chico Anysio’ no campo de busca do site, aparecem vídeos do falastrão Pantaleão e do ‘pai da carteirada’ Bozó. Também estão lá trechos de monólogos de Rolando Lero (Rogério Cardoso), Baltazar da Rocha (Walter D’Ávila) e Costinha na ‘Escolinha do Professor Raimundo’. Do primeiro, há até imagens de um episódio em que o pai do personagem (Mário Lago) o visitou na classe. Os saudosos de ‘Chico City’ são contemplados com um clipe de personagens como Velho Zuza e Pantaleão. Para completar, podem ser vistas passagens de uma entrevista de Anysio a Jô Soares.’

Laura Mattos

Em meio a crise, ‘Paraíso Tropical’ vive seu ‘dia D’

‘A Globo reúne amanhã e terça-feira, em São Paulo, um grupo de telespectadores a fim de descobrir o que levou ‘Paraíso Tropical’ a registrar a pior estréia no Ibope desta década.

Esta será uma semana-chave para a novela das oito, que entrou no ar há 15 dias. Além da pesquisa com o chamado ‘grupo de discussão’, a Globo espera que a gêmea má, vilã interpretada por Alessandra Negrini, alavanque a audiência.

A personagem apareceu pela primeira vez na última quarta-feira, e o capítulo marcou 40 pontos de média. Foi um alívio para uma trama que chegou a amargar 30 em um dos episódios da primeira semana e ficou abaixo até do ibope da novela das seis, ‘O Profeta’.

Taís, a gêmea má, deve movimentar a história, no início concentrada na gêmea boa, Paula. Vilãs costumam ser mais interessantes do que mocinhas, ainda mais quando a intérprete das duas é Alessandra Negrini.

A pesquisa com o grupo de espectadores será acompanhada pelo diretor da novela, Dennis Carvalho, e Ricardo Linhares, um dos autores. O outro, Gilberto Braga, permanece no Rio escrevendo os capítulos.

Espera-se que o encontro aponte os principais motivos dessa rejeição à trama. Assim que houver um diagnóstico, os autores e diretor deverão iniciar as mudanças na tentativa de atender a expectativa do público. Além de ajustar personagens e a própria história, é possível que haja até mudanças na abertura da novela, como aconteceu em ‘América’ (2005). Glória Perez trocou uma música composta por Marcus Vianna por ‘Soy Loco por Ti, América’, na voz de Ivete Sangalo.

Uma das hipóteses cogitadas na Globo é a de que o espectador teve uma impressão de déjà vu com a abertura de ‘Paraíso Tropical’. A música, ‘Sábado em Copacabana’, com Maria Bethânia, e as imagens do Rio lembrariam ‘Mulheres Apaixonadas’, que terminou arrastada e com desgaste no Ibope.

Ousadia perigosa

Tony Ramos, que faz o empresário canalha Antenor Cavalcanti, diz que ‘o perigo mora em certos temas ousados, que muitas vezes podem assustar o público’. Ele se refere à prostituição e ao turismo sexual, que deram a tônica dos primeiros capítulos e, na opinião do ator e de outros globais, podem ter afugentado o espectador.

Gilberto Braga espera que a entrada de Taís deixe claro que ‘Paraíso Tropical’ não é centrada nesses tópicos mais ‘pesados’ e sim nas gêmeas, a boa e a má, separadas na infância.

Já a escritora e pesquisadora da USP Renata Pallotini (autora de ‘O que É Dramaturgia’) aposta que foi justamente por essa história que as pessoas não se sentiram atraídas. ‘O argumento das gêmeas boa e má separadas na infância é muito antigo, batido. É estranho que Gilberto [Braga] tenha optado por essa solução dramatúrgica.’

Além disso, Pallotini acredita em erro na escalação do elenco. ‘Alessandra Negrini e Fábio Assunção [intérpretes do casal romântico] não deram aquela ‘faísca’, não houve ‘química’.’

Para Braga, ‘fica difícil dar respostas em cima de suposições’. ‘Já ouvimos muitas justificativas para o fato da audiência não estar alta, mas a verdade é que ninguém sabe dizer o que o público está pensando. Não existe uma fórmula do sucesso, caso contrário, qualquer um poderia escrever novelas. Entender a reação do público sempre foi uma incógnita’, afirma. Na opinião do novelista, é preciso esperar o grupo de discussão para ‘entender o que se passa na cabeça dos telespectadores’.

Apesar do começo trágico, a Globo aposta em recuperação. A professora da USP também. ‘Os recursos da emissora e dos autores são grandes, e muita novela que parecia condenada se recuperou. Isso deverá acontecer também com ‘Paraíso’.’’

Antônio Gois

Governo vai indicar programas infantis

‘As ‘Meninas Superpoderosas’, diariamente, salvam o planeta da ameaça de terríveis vilões. O desenho, sucesso entre o público infantil, tem classificação livre, ou seja, não tem restrição a crianças de nenhuma idade.

No entanto, mesmo com todos os seus superpoderes, as meninas Florzinha, Docinho e Lindinha dificilmente convenceriam os classificadores do Ministério da Justiça a lhes concederem o selo de programa Especialmente Recomendado para Crianças e Adolescentes (ER), novidade que consta da nova portaria de classificação indicativa do governo.

A explicação para isso é dada pelo diretor-adjunto do Departamento de Justiça e Classificação Indicativa do ministério, Tarcízio Ildefonso.

‘No tempo em que eu era criança, o local de confraternização dos Superamigos era o Palácio da Justiça. Hoje, a confraternização das meninas heroínas acontece, muitas vezes, em um shopping. Isso não torna, de maneira nenhuma, o desenho inadequado. Mas, na minha opinião, ele também dificilmente seria considerado recomendado, porque esse gesto é segregacionista, já que nem todos podem fazer compra em shopping, além de ser um estímulo ao consumismo’, avalia o diretor.

Prazo para adequação

A nova portaria de classificação indicativa já foi publicada no ‘Diário Oficial’ da União e deu um prazo até 13 de maio para que as televisões se adaptem a ela.

Uma das novidades é que, além de classificar como livre determinados programas infantis, o ministério passará também a indicar aos pais programas que sejam especialmente recomendados por trazer mensagens de solidariedade, honestidade, respeito aos demais e por estimular as habilidades cognitivas, entre outras características positivas listadas no novo manual de classificação indicativa.

O objetivo do novo selo, de acordo com o Ministério da Justiça, é oferecer mais um instrumento aos pais para que orientem seus filhos no momento de assistir à televisão. Nenhuma emissora será obrigada a veicular programas recomendados, mas elas terão de informar ao telespectador qual a classificação de cada um deles. O aviso terá de aparecer, durante cinco segundos, no início de cada programa.

O modelo é inspirado em experiências dos países nórdicos e de nações desenvolvidas como Inglaterra e Canadá, mas foi recebido com severas críticas pela Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão).

‘Isso é discriminatório. Entendemos que não deve existir um conteúdo livre e outro recomendado. Quem vai definir quem será recomendado e quem será apenas livre serão classificadores do Ministério da Justiça. Na nossa opinião, isso é dirigismo cultural’, afirma Daniel Pimentel Slaviero, presidente da Abert.

José Eduardo Elias Romão, diretor do departamento de classificação indicativa, discorda, argumentando que os critérios para definir a classificação são objetivos e constam do novo manual.

‘Os critérios que definimos não são de governo. Eles estão contemplados na Constituição e, por isso, não estão sujeitos a determinações partidárias ou ideológicas. Isso é uma tradi- ção em países democráticos’, afirma.

Para Slaviero, da Abert, os países que inspiraram a portaria do Brasil não servem como referência. ‘A cultura desses lugares é diferente. É outra educação, e a formação também é diferente. No Brasil, a imensa maioria da população se informa pela televisão aberta, o que nem sempre acontece nessas nações.’

Pioneiros

Apesar da polêmica, o Ministério da Justiça já concedeu a 13 obras audiovisuais o selo de especialmente recomendado (veja quadro ao lado).

A primeira a receber foi a série ‘Juro que Vi’, produzida pela MultiRio (Empresa Municipal de Multimeios da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro) a partir de roteiros elaborados por alunos de escolas municipais cariocas.

Por enquanto, ainda são poucos os programas que passam na TV aberta a receber o selo, mas, para Regina de Assis, presidente da MultiRio, é uma questão de tempo.

‘As experiências de países que premiaram bons programas infantis mostra que, a partir do momento em que eles são reconhecidos, há um estímulo para a produção de outros produtos com qualidade. No Brasil, aos poucos, as grandes emissoras vão acabar se sensibilizando e reconhecendo que é preciso oferecer uma programação de qualidade para o público infantil, e não apenas nos horários considerados para crianças’, diz a presidente da MultiRio.’

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Voluntários dão parecer sobre recomendação

‘Para que uma obra receba o selo de especialmente recomendada, ela precisa primeiro ser considerada livre para todas as faixas etárias. Para isso, não deve ter cenas de violência, sexo, drogas nem discriminação. A análise para determinar se, além de livre, aquele conteúdo é também recomendado é provocada pelo ministério ou a pedido dos produtores do programa.

Inicialmente, o produtor responde a um questionário padrão e sugere a classificação de sua obra. O programa então é avaliado pela equipe de classificadores do ministério, formada principalmente por profissionais da área de ciências humanas, como psicólogos, pedagogos, advogados ou comunicadores. A análise é feita sempre por pelo menos dois profissionais de formações distintas.

Após a avaliação, o ministério precisa, no caso dos programas que pleiteiam o selo ER, consultar uma equipe de voluntários que dará o parecer sobre a recomendação ou não em sessão pública, aberta aos produtores da obra. Essa equipe é formada por cerca de 80 pessoas, recrutadas principalmente em universidades, associações de defesa dos direitos da infância e promotorias.

Antes de fazerem parte do corpo de voluntários, esses profissionais recebem treinamento do ministério, onde são informados sobre a linha orientacional do trabalho e os critérios que constam no manual de classificação indicativa.

Esse corpo de voluntários atua também sempre que um produtor de uma obra discorda da avaliação do ministério. Nesse caso, há um prazo de 72 horas para que haja uma definição da classificação.

Os critérios para que um produto seja especialmente recomendado podem ser consultados no site www.mj.gov.br/classificacao.’

Bia Abramo

Novelas remexem caldeirão requentado

‘A TV quer, de fato, contar histórias? Ou apenas criar intervalos de entretenimento que passem mais ou menos rapidamente para poder vender publicidade? Um pouco de ingenuidade, de vez em quando, pode nos conduzir a algumas provocações interessantes.

Uma maneira de olhar o grosso da produção ficcional da TV pode derivar dessa segunda hipótese: as emissoras produzem telenovelas pensando exclusivamente nas estratégias para atrair audiência -e não por alguma intenção de constituir algum tipo de narrativa que seja atraente e, portanto, seja capaz de manter os televisores ligados. Pode-se argumentar que essa narrativa hipotética deva conter as estratégias, em menor ou maior grau ou que as estratégias venham encapsuladas em ambientes narrativos interessantes. Já foi assim, parece que não é mais.

Vejamos ‘Bicho do Mato’, que terminou, e ‘Luz do Sol’, que começou, ambas no horário das 20h30 da Record. A emissora vive uma euforia de bons índices e, portanto, qualquer análise de suas produções tem que passar por isso. Então, temos que a idéia para o horário é oferecer uma espécie de novela das sete justamente no horário em que na concorrência começa o telejornal e, em seguida, novela das oito.

A aposta, clara, prevê que uma parte razoável da audiência não quer ver o jornal e ainda tem fôlego para uma atração mais leve e descompromissada. A este caldo básico a Record adicionou mais de ação e um tantinho de violência, acreditando (acertadamente, ao que parece) que um certo grau de pancadaria também se inscreve na categoria do entretenimento leve e está pronto.

Se a Record está empenhada em algo além do que ‘alcançar a Globo em três anos’, como criar narrativas que sejam novas, arejadas, mais próximas do Brasil contemporâneo real, não vai fazê-lo com ‘Bicho do Mato’ e nem com ‘Luz do Sol’.

A que acabou e a que começa não procuram histórias onde elas existem, mas num caldeirão que requenta clichês, equívocos e caricaturas. Onde estão as histórias brasileiras a serem contadas? Responder a essa pergunta seria a tarefa número um dos autores, caso o projeto de contá-las estivesse valendo.

Até agora, Camila Pitanga é o destaque absoluto de ‘Paraíso Tropical’.

Sua Bebel ao mesmo tempo venal e frágil, provinciana, deslumbrada e esperta, é dos melhores papéis femininos dos últimos tempos. Chico Diaz, o calhorda a soldo do milionário, também ajuda -e muito. As cenas dos dois têm sido explosivas.’



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Clique nos links abaixo para acessar os textos do final de semana selecionados para a seção Entre Aspas.

Folha de S. Paulo – 1

Folha de S. Paulo – 2

O Estado de S. Paulo – 1

O Estado de S. Paulo – 2

O Globo

Carta Capital

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