Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Folha de S. Paulo

POLÍTICA
Leonardo Souza e Felipe Seligman

Grampo da PF indica que Sarney usou jornal e TV para atacar grupo de Lago

‘O senador José Sarney (PMDB-AP) e seu filho Fernando Sarney aparecem em uma escuta legal da Polícia Federal discutindo o uso de duas empresas do grupo de comunicação da família -a TV Mirante (afiliada da Rede Globo) e o jornal ‘O Estado do Maranhão’- para veicular denúncias contra seus rivais do grupo do governador Jackson Lago (PDT).

O Maranhão vive uma acirrada disputa política entre Sarney, eleito presidente do Senado na segunda-feira, e Lago -que também é acusado pelo grupo do senador de utilizar a mídia local para atacá-lo.

Em uma das conversas, a cujo áudio a Folha teve acesso, Sarney liga para seu filho pedindo que ele levasse à TV acusações contra Aderson Lago, primo e chefe da Casa Civil do governador Lago, que derrotou a filha de Sarney, Roseana, em 2006. Como as emissoras de TV operam por meio de concessão pública, a lei 4.117/62 veda seu uso para fins políticos.

O grampo foi feito pela PF nos telefones de Fernando, principal alvo da Operação Boi Barrica, que apura movimentações financeiras de empresas da família Sarney no período eleitoral de 2006. Fernando sacou R$ 2 milhões nos dias 25 e 26 de outubro daquele ano, três dias antes do segundo turno. O senador não é alvo do inquérito. Procurados pela Folha, Sarney e Fernando não quiseram se manifestar sobre o assunto.

Em um diálogo de 17 de abril de 2008, os dois tratam de uma denúncia publicada num blog do Maranhão contra Aderson e seu filho, Aderson Neto. Segundo o blog, Neto teria se envolvido em desvio de recursos públicos de convênios firmados entre a Prefeitura de Caxias (MA) e o governo estadual.

Na conversa, Sarney manda Fernando -que dirige o grupo de comunicação da família- levar ao ar na TV Mirante uma reportagem sobre o caso, ressaltando que Aderson sempre o atacou e que o insultou de ‘maneira brutal’ num artigo. Fernando dá a entender que foi ele quem vazou a informação contra Aderson para o blog, e que já estava preparando reportagens sobre o tema tanto na TV quanto no jornal da família.

Sarney provavelmente se referia a um artigo publicado por Aderson no ‘Jornal Pequeno’ e em ‘O Imparcial’, no dia 15 de maio de 2007. No texto, Aderson chamou Sarney de ‘velho oligarca’ e disse que luta contra o grupo do ex-presidente desde 1990, tendo feito ‘algumas das denúncias que mais incomodaram aquele que desejou ser o dono do Maranhão’.

Reportagem

No dia seguinte ao diálogo entre Sarney e seu filho, ‘O Estado do Maranhão’ publicou a reportagem ‘Empresa sediada no Rio recebeu verba pública destinada a Caxias’, sobre a denúncia contra Aderson e seu filho. Houve ainda duas outras reportagens negativas a Lago na semana seguinte. Lago diz que a TV também fez matérias sobre as denúncias. Como o site da TV está fora do ar, não foi possível consultar os arquivos para verificar se isso ocorreu.

Aliados de Sarney, por seu turno, acusam Lago da mesma prática, utilizando veículos locais capitaneados pelo ‘Jornal Pequeno’. ‘Os veículos de comunicação a serviço do governador Jackson Lago, entre os quais o ‘Jornal Pequeno’, atacam a família Sarney de forma irresponsável, criminosa e sistemática, mas nem por isso a família Sarney usa seus veículos de comunicação para responder a essas calúnias’, disse a assessoria do senador, que não quis comentar o grampo.

O deputado estadual Ricardo Murad (PMDB), líder do bloco de oposição ao governo estadual, vai ainda mais longe. Murad afirmou que Jackson Lago, por meio da Secretaria de Comunicação do Estado, financia diversos veículos de comunicação para atacar a família Sarney: ‘Com a exceção do sistema Mirante, quase todos os veículos de comunicação do Estado estão a serviço do governador. Esses jornais, capitaneados pelo ‘Jornal Pequeno’, são bancados pela Secom’, disse Murad, sem exibir provas.

Lourival Bogéa, diretor-geral e sócio do ‘Jornal Pequeno’, rebateu as acusações: ‘O Jornal Pequeno’ é um veículo de comunicação que tem uma causa no Maranhão, que é a causa da democracia política’.

Aderson Lago também nega as acusações: ‘Desde o primeiro dia do governo, eles tentam nos atacar, seja pela televisão, rádio, jornal ou blog’, disse ele.

Segundo ele, aliados da família Sarney chegaram a pedir investigação ao Ministério Público Federal, sem sucesso. A Procuradoria da República no Maranhão confirmou que não há procedimento sobre o assunto. A Folha também não localizou processos contra Aderson e seu filho relacionadas ao caso.

Em 2001, Aderson ganhou uma causa no STJ por ‘danos morais’ contra a Gráfica Escolar S/A, que edita ‘O Estado do Maranhão’. Segundo Lago, seu filho foi tachado de ‘assassino’ após um acidente de carro.’

 

 

CHINA
Raul Juste Lores

Crítica on-line desafia repressão chinesa

‘Textos críticos assinados por dissidentes, vídeos vetados na TV estatal e opiniões de blogueiros estão desafiando a mais recente onda repressiva do governo chinês.

Antes completamente controlada, a internet começa a se tornar imanejável para o governo. Um site que reunia diversos opositores e que foi fechado há dois meses reapareceu utilizando um domínio americano e pode ser acessado com o auxílio de sistemas que driblam a censura chinesa.

Em campanha de controle à rede, as autoridades fecharam mais de 1.500 sites, sob a acusação de ‘pornografia, atentar contra a moralidade e corromper a juventude’, segundo a Secretaria de Segurança.

Blogueiros acusam a ‘limpeza’ de encobrir mais uma onda de repressão a qualquer crítica no país, em meio a desemprego crescente e crise econômica.

Além de bloqueios temporários aos sites do jornal ‘New York Times’ e da BBC, blogs e portais na internet que abrigavam textos mais críticos ao governo foram tirados da rede.

O site Bullog, que publicou a Carta 08 (manifesto subscrito por intelectuais no fim do ano passado em prol dos direitos humanos na China), foi retirado do ar no início de janeiro. Reapareceu na semana passada, utilizando um domínio nos EUA, como bullogger.com.

‘Os internautas têm conquistado mais liberdade de expressão on-line, mas as coisas têm ficado duras nos últimos dias. Mais mobilização será necessária no futuro’, disse à Folha o blogueiro Zhou Shuguang, 27, um dos signatários da Carta 08.

Após assinar a petição por democracia e respeito aos direitos humanos na China, ele foi visitado pela polícia.

‘Eles me levaram para almoçar e fizeram perguntas sobre o manifesto. Queriam saber como eu soube, porque eu assinei e o que eu achava’, conta. ‘Não aconteceu mais nada, acho que eles fizeram a parte deles.’

Outra blogueira famosa, que assina como Persian Xiaozhao, fez sucesso com o texto ‘Eu assinei a Carta 08 após um bom choro’, em que ela falava das injustiças do país. Seu blog foi banido pelo portal que o abrigava. Mas ela já criou outro.

Cumplicidade

A conivência de grandes portais com a censura chinesa é famosa. Tanto Google quanto Yahoo fizeram acordo com o governo para retirar de seus resultados de buscas páginas ‘sensíveis’ ao governo chinês.

A colaboração dos portais locais com o governo é ainda maior. O portal Sohu.com já retirou do ar vários blogs hospedados no site após a publicação de comentários mais críticos de seus autores. Até mesmo comentários de internautas publicados como resposta a notícias e outros textos são apagados pelos portais se fizerem críticas mais duras ao governo.

Ainda assim, a força da internet tem dobrado o governo. A TV estatal tirou do ar a cobertura de um discurso do primeiro-ministro Wen Jiabao no Reino Unido, quando um estudante lhe atirou um sapato.

O vídeo circulou tanto pela China que a CCTV, maior rede do país, acabou transmitindo a sapatada que errou o alvo.

Repressão e crise

A tensão das autoridades se traduz em mais repressão. A atual crise econômica, que já fez o crescimento da economia chinesa em 2008 ser o pior em sete anos -e que pode ser menor ainda em 2009-, deve deixar 20 milhões desempregados, segundo algumas estimativas.

No ano passado, as duas Províncias separatistas chinesas foram mais controladas pelo regime. O Tibete ficou parcialmente fechado ao mundo -e turistas estrangeiros foram proibidos de pisar na região ao longo de quase quatro meses- e a imprensa internacional continua impedida de pisar na capital provincial, Lhasa.

Em Xinjiang, Província de população muçulmana no extremo oeste da China, houve recorde nas prisões justificadas por causa de ‘risco à segurança do Estado’. Mais de 1.400 pessoas foram presas (em 2007, foram 742).

A política preventiva de repressão do governo também tem a ver com as datas comemorativas que podem ser celebradas em 2009 – os 20 anos do massacre na Praça da Paz Celestial, os 50 anos da fuga do dalai-lama do Tibete e os dez anos da proibição da seita Falun Gong.’

 

 

***

Intelectuais pregam boicote à emissora estatal

‘Um grupo de 22 intelectuais lançou no mês passado um boicote contra a rede de televisão estatal CCTV por ‘manipular’ a informação e fazer ‘lavagem cerebral’ no espectador chinês.

Antes disso, em dezembro, 303 intelectuais e dissidentes lançaram um documento na internet exigindo reformas políticas, mais democracia e respeito aos direitos humanos.

Mais de 20 signatários foram presos, e dezenas receberam visitas de agentes da Segurança Pública para interrogatórios.

Mesmo com a repressão, mais de 7.000 pessoas assinaram a petição na internet, chamada de Carta 08, em alusão à similar Carta 77 lançada na antiga Tchecoslováquia durante a ditadura comunista.

No ano passado, o governo chinês estimulou uma campanha de ataques à CNN e à BBC por manipularem o noticiário sobre o país. Agora, um grupo de intelectuais faz a mesma acusação à rede estatal CCTV, dona do monopólio das transmissões nacionalmente.

O manifesto a acusa de ignorar greves e manifestações de desempregados e de encobrir incidentes, como o escândalo de leite adulterado, que matou seis bebês e produziu pedras nos rins de 290 mil crianças com menos de um ano de idade.

Articulador do boicote, Ling Cangzhou diz que o movimento é formado por professores e advogados fartos da ‘manipulação do noticiário da TV, que só mostra notícias positivas sobre a China e negativas sobre o resto do mundo’. Lançado em um site baseado nos EUA, para evitar a censura chinesa, o movimento começou a circular em blogs e fóruns locais.’

 

 

TELEVISÃO
Daniel Castro

Traficante de boate

‘Com ‘Poder Paralelo’, próxima novela da Record, o ator Márcio Kieling, 30, pretende se livrar de vez da imagem de Zezé Di Camargo, que interpretou em ‘2 Filhos de Francisco’. ‘A novela se passa em São Paulo e é sobre a máfia italiana. ‘Meu personagem, Alberto de Castro, é um traficante do asfalto, que vende drogas em boates’, conta. Kieling não durará muito na trama. Alberto será assassinado por mafiosos. Mas a culpa cairá sobre sua irmã, Marília (Maria Ribeiro), uma policial caxias.

Globo renova com a Fox e compra série inédita nos EUA

A Globo comprou os direitos de exibição de ‘Dollhouse’, seriado que estreia nos Estados Unidos na próxima sexta-feira à noite. É a primeira vez que a emissora investe em um programa ainda inédito nos EUA.

A série é uma das principais apostas da Fox americana para este início de ano. Criada por Joss Wedon (o mesmo de ‘Buffy’), trata de uma organização que oferece agentes para as mais variadas missões, boas ou más, de assassinatos a negociações com sequestradores, conforme as necessidades dos clientes. Esses agentes são criaturas de laboratório: suas identidades e memórias são alteradas e apagadas a cada missão.

A Globo ainda não tem previsão de quando exibirá o seriado. ‘Dollhouse’ (literalmente, casa de boneca) faz parte do pacote de filmes e séries que a emissora adquiriu da Fox. A Globo acaba de renovar contrato com a gigante americana por mais três anos. Por muito pouco a Record não tirou os produtos da Fox da Globo.

Além de ‘Dollhouse’, a Globo comprou da Fox a nova ‘The Listener’, série canadense sobre um paramédico que ouve pensamentos, e temporadas de ‘24 Horas’, ‘Prison Break’, ‘Bones’ e ‘Os Simpsons’.

Do forte catálogo de filmes da Fox, a Globo terá disponível para exibição a partir de abril ‘Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado’, ‘X-Man 3’, ‘O Diabo Veste Prada’, ‘Se Eu Fosse Você’, ‘Borat’, ‘Pequena Miss Sunshine’, ‘Mar Adentro’ e ‘Volver’, entre outros.

VERDUREIRO VIRA CAUBÓI

Alexandre Nero (foto), 38, nem teve tempo de ver os últimos capítulos de ‘A Favorita’, que o revelou como Vanderlei, o verdureiro. Na última semana da novela das oito, ele já gravava ‘Paraíso’, a próxima das seis. Descoberto por produtores da Globo no Festival de Teatro de Curitiba, Nero terá agora pepel de destaque. Será Terêncio, um peão apaixonado por Vanessa Giácomo e que, assim como Vanderlei, é analfabeto. O universo rural é velho conhecido de Nero. Antes de virar ator, ele fez curso de técnico agrícola e trabalhou em fazendas.

OS POPULARES

Auto-intitulado o casal mais esquisito de ‘BBB 9’, Francine e Max são também os participantes mais populares do reality. Eles lideram o ranking de downloads de wallpappers. Até quarta-feira, 18.449 pessoas já ostentavam imagem de Francine como protetora de tela de seus celulares e computadores.

NOVO CANTOR

Malcolm Montgomery, o ginecologista das estrelas (ex-Mylla Christie, atual Carla Regina), segue a trilha de Roberto Justus. No próximo dia 19, lança em São Paulo o livro ‘…E Nossos Filhos Cantam as Mesmas Canções’. Na ocasião, promete cantar músicas dos Beatles.’

 

 

Bia Abramo

Os suspeitos usuais

‘POR QUE será que as crianças estão preferindo ‘novelinhas’ a desenhos animados? A constatação emerge da liderança do Disney Channel no ranking dos canais mais vistos da TV paga, desbancando o Cartoon Network, que estava em primeiro lugar desde 2001. A informação está na coluna de Daniel Castro da última segunda-feira.

A programação do Disney Channel é quase toda formada por séries com ‘pessoas reais’ -é ela quem exibe o super sucesso ‘High School Musical’ e seus sucedâneos, ‘Hannah Montana’ e ‘Camp Rock’, bem como vários outros do gênero. O nome que o mercado dá para esses seriados, que combinam uma certa leveza narrativa com situações ‘reais’, é ‘live action’.

Em reportagem de Laura Mattos publicada na Ilustrada de 9 de novembro de 2008 que já apontava essa tendência, uma executiva de marketing da área tentou algumas explicações. Segundo Carolina Vianna, da Viacom, essa preferência estaria relacionada a ‘precocidade das crianças, o avanço da tecnologia, a internet’, ou seja, aos suspeitos usuais.

Essa tríade -uma suposta precocidade maior das crianças de hoje, o desenvolvimento genérico dos meios tecnológicos e a rede mundial de computadores- é invocada a torto e a direito para explicar qualquer coisa relativa ao comportamento infantil e juvenil.

É mais ou menos como culpar ‘o sistema’ ou ‘a esquerda’ por todos os males do mundo, ou seja, arruma-se um responsável abstrato, sem nome e está tudo resolvido.

É curioso como a própria indústria do entretenimento não se vê como partícipe de um processo cada vez mais acelerado de transformação das crianças em sujeitos de um universo de consumo cada vez mais complexo e sofisticado.

O que consome uma criança que só vê desenho animado? Algumas dezenas de produtos licenciados com a imagem do herói. O que consome uma criança que vê ‘live action’? Além das dezenas de licenciados, consome o estilo de vida e comportamento dos seus personagens prediletos. É muito mais negócio, para o qual a TV prepara tão eficientemente as crianças.

Se há, de fato, uma precocidade nas crianças de hoje em dia, está no fato de que elas entram na máquina de entretenimento e consumo cada vez mais cedo e são instadas a se tornarem veteranos do desejo de ter. Como toda precocidade, esta também é algo capenga, uma vez que às crianças e aos adolescentes se lhes dá um poder que eles não têm como realizar.’

 

 

CENTENÁRIO
Ruy Castro

A Carmen que o Brasil não conhece

‘De setembro de 1929 a maio de 1939 (com direito a uma curta prorrogação em setembro de 1940), Carmen Miranda gravou 281 músicas no Brasil, em discos avulsos de 78 rpm -uma música por face, como se dizia. Se na época já existisse o álbum convencional de 12 faixas, isso equivaleria a 23 LPs -mais de dois por ano, durante dez anos. Se se fizer os cálculos baseados nas avaras possibilidades dos 78s, Carmen lançou uma média de 2,5 músicas por mês, todo mês, chovesse ou fizesse sol, durante aqueles dez anos. Nenhuma outra cantora brasileira, antes, durante ou depois, chegou perto de tais números -até hoje.

Noventa por cento desses discos eram de gêneros musicais recém-criados e que ainda estavam se estabelecendo no começo dos anos 30, como o samba -em diversas variações: rasgado, de Carnaval, de breque, samba-choro, samba-jongo, samba-batuque- e a marchinha -idem: de Carnaval, junina, natalina. Esses ritmos não nasceram prontos e acabados. Foram se definindo à medida que eram produzidos e gravados e, nesse caso, a participação de Carmen, cantando-os à sua maneira, foi fundamental para a sua fixação.

Em pouco tempo, muitos autores de sambas e marchinhas começaram a compor explicitamente para a voz e o estilo -a ‘bossa’- de Carmen, o que a tornou não apenas o veículo ideal para os ritmos, mas, de certa forma, sua inspiradora. Esses compositores e letristas eram garotos, todos menores de 30 anos em 1930, recém-chegados à cena musical carioca, vindos de Minas Gerais, da Bahia, do Estado do Rio ou dos subúrbios cariocas mais distantes: Ary Barroso, André Filho, Lamartine Babo, a dupla João de Barro e Alberto Ribeiro, Assis Valente, Ataulpho Alves, Synval Silva, Alcyr Pires Vermelho, Herivelto Martins, Dorival Caymmi. Alguns deles, como Ataulpho, Synval, Alcyr e Caymmi, tiveram em Carmen sua primeiríssima intérprete; outros, como Ary, André ou Assis, tiveram nela sua principal ou mais frequente intérprete. É difícil imaginar esses autores nas vozes de Gesy Barbosa, Olga Praguer Coelho ou da própria Aracy Côrtes, que eram as cantoras já estabelecidas quando Carmen apareceu -todas formidáveis a seu modo, mas refinadas demais para o que o samba exigia. Carmen, por sua vez, já nasceu falando a língua e a linguagem deles.

Drible de língua

Ela levou as ruas para a música popular, liquidando com o sotaque lírico, de bibelô, que marcava suas antecessoras. E que ruas eram essas? As da Lapa, onde foi criada, dos seis aos 16 anos, entre 1915 e 1925, um caldeirão onde se cozinhavam políticos, empresários, ministros de Estado, turistas, escritores, jornalistas, boêmios e malandros, entre a fauna que efetivamente trabalhava ali: policiais, garçons, cozinheiros, engraxates, motoristas de táxi, leões-de-chácara, cafetões, prostitutas. Na Lapa nasciam as gírias, os duplos sentidos, as corruptelas e outras modernidades que fariam da nova língua cantada algo a anos-luz das lindas valsas e modinhas de Freire Jr. e Bastos Tigre que predominavam até bem pouco.

Saíam as pálidas morenas, os luares prateados e as velas em silhueta à beira-mar para dar lugar a ‘Já me disseram que você andou pintando o sete/ Andou chupando muita uva e até de caminhão/ Agora anda dizendo que está de apendicite / Vai entrar no canivete, vai fazer operação’ (‘Uva de Caminhão’, por Assis Valente, que Carmen gravou em 1939). Mas, mais do que isto, Carmen levou um jeito novo de cantar -esperto, moleque, malicioso- em oposição ao ‘sentimento’ ou ‘sinceridade’ dos outros cantores. Com um drible de língua, podia-se ouvi-la sublinhar certas palavras ou extrair conteúdos insuspeitos de um verso.

Obras-primas

Nesse sentido, pode ter sido tudo, menos uma cantora romântica ou dramática -lacuna que só se preencheria em 1935, quando surgisse Aracy de Almeida. Equivale a dizer que, por cinco anos, Carmen reinou sozinha, e a única cantora a lhe fazer alguma sombra era sua irmã Aurora -mas uma sombra benigna, porque as duas viviam se apresentando juntas e até trocavam repertório. Considerando-se que tudo que Carmen gravou no Brasil foi em primeira mão -ou seja, legítimas criações suas como intérprete-, devemos a ela, como se não bastasse, uma quantidade de obras-primas do patrimônio musical brasileiro.

Mas o poder da máquina é arrasador. Quando Carmen foi trabalhar nos Estados Unidos, teve de deixar para trás seu grande instrumento de trabalho -as sutilezas da língua portuguesa- e trocá-lo por sua graça como dançarina e comediante e limitar seu repertório a músicas mais simples, como ‘Mamãe Eu Quero’ e ‘Touradas em Madri’. Em Hollywood, por imposição da indústria, os turbantes, os balangandãs e as saias só fizeram crescer. Nada de mal nisso -mas esta foi a Carmen que o mundo passou a conhecer e que, ironicamente, o Brasil também pôs no lugar da cantora que tinha quebrado tudo.

RUY CASTRO é autor de ‘Carmen – Uma Biografia’ (editora Companhia das Letras)’

 

 

Luiz Fernando Vianna

Herdeiros se unem para gerir imagem de Carmen

‘A morte da mãe, a cantora Aurora Miranda, em dezembro de 2005, levou a psicanalista Maria Paula Richaid a uma, segundo diz, ‘tomada de consciência’ da importância da imagem de sua tia Carmen.

Em maio do ano passado, ela e os outros três herdeiros oficializaram a criação da Carmen Miranda Administração e Licenciamento, trazendo para as mãos da família o que estava com um escritório especializado havia dez anos. ‘Vão vir muitas mudanças’, avisa Maria Paula, 59, diretora da empresa.

De acordo com seu relato, já estão vindo, ainda que ela prefira não dar nomes de projetos. Um deles foi vetado às vésperas de acontecer, pois os responsáveis não tinham consultado a família. Outros foram realizados sem autorização e estão sendo notificados.

‘Queremos que as coisas comecem do começo, que falem com a gente’, diz Carminha Miranda, 72, que representa na sociedade sua mãe, Cecília, 95, única irmã viva de Carmen.

As primas não negam que um dos objetivos da nova empresa é aumentar a receita dos herdeiros -além delas, há Gabriel, irmão de Maria Paula, e Suely, filha adotiva de Mário, outro irmão de Carmen. Mas garantem que terão bom senso. Maria Paula diz que se por um lado acabou de fechar um bom contrato de uso da imagem de Carmen em publicidade, por outro está encantada com um projeto cujo autor tem poucos recursos. ‘Não temos intenção de complicar nada, queremos estimular os projetos. Mas é preciso ter uma ordem, regras’, afirma ela, que pensa em ouvir especialistas para avaliar, por exemplo, roteiros de filmes.

Pendenga judicial

Roteiros envolvendo Carmen, por enquanto, só de ficção. Os direitos audiovisuais sobre a vida da cantora foram comprados por Paula Lavigne em 1998, e uma pendenga judicial se arrasta desde então.

A produtora pagou US$ 20 mil de sinal, mas a Copyrights Consultoria, que representava os herdeiros, entrou na Justiça para rescindir o contrato. Paula depositou os US$ 180 mil restantes em juízo, ganhou os recursos e a causa.

Segundo a advogada Silvia Gandelman, da Copyrights, desde 2006 Paula está livre para iniciar a produção. Só que, agora, a dona da Natasha Filmes quer duas coisas. A primeira é o ressarcimento do que gastou no processo. ‘R$ 400 mil. É isso o que eu quero de volta, e eu vou ter’, afirma.

A segunda é que o contrato seja refeito, para lhe dar mais ‘segurança’. ‘Vou fazer o filme assim que a família me der garantias de que eu posso começar uma produção tão grande e que não vou ter problemas’, diz ela, que planeja um longa e uma minissérie.

Maria Paula e Carminha mostram interesse em ver uma solução negociada para o caso, mas preferem não fazer muitos comentários. Até 2025, quando se completarão 70 anos da morte de Carmen e os direitos cairão em domínio público, os herdeiros poderão ganhar royalties sobre o que se refere à cantora.’

 

 

LITERATURA
João Cezar de Castro Rocha

Machado em cena

‘É exemplar a organização realizada por João Roberto Faria da produção de Machado de Assis relativa ao teatro [‘Machado de Assis: do Teatro – Textos Críticos e Escritos Diversos’, ed. Perspectiva, 679 págs., R$ 92]. A iniciativa valoriza os anos de aprendizagem do futuro autor de ‘Dom Casmurro’: ‘Tudo indica que Machado acompanhou de perto a vida teatral do Rio de Janeiro, a partir do segundo semestre de 1856, e que isso foi decisivo em sua formação’.

Demonstrar a relevância do palco no desenvolvimento da visão do mundo machadiana é um dos maiores méritos da alentada e desde já indispensável introdução, ‘Machado de Assis e o Teatro do Seu Tempo’. Em primeiro lugar, antes de principiar a produzir seus romances, Machado consagrou-se como crítico -literário e teatral.

Além disso, atuou como censor do Conservatório Dramático, recomendando ou desaprovando a encenação de obras.

E não se pense, anacronicamente, que a ótica corrosiva do Machado mais celebrado tenha favorecido pareceres a contrapelo dos preconceitos da época. Pelo contrário, ‘o censor rigoroso negou a licença a três peças, que considerou imorais’.

Basta um único exemplo, difícil, mas revelador, do longo caminho que o Machadinho precisou vencer antes de converter-se no autor das ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’.

Ao avaliar o drama ‘Mistérios Sociais’, Machado não hesitou em recomendar a ‘alteração da condição social do protagonista (…) de escravo para homem livre’.

Assim, além de ganhar em verossimilhança, a trama ficaria mais adequada às complexas condições de uma sociedade escravocrata, porém com uma retórica liberal.

Universidade

Nesse sentido, não surpreende que Machado compreendesse o teatro como uma espécie de universidade sem muros, capaz de exercer uma função civilizadora segundo o corte clássico ‘da velha máxima de Horácio (…), deleitando e ao mesmo tempo instruindo’.

Contudo, reconhecer esses impasses conservadores ou, no mínimo, observar a timidez calculada de seus princípios não esgota o interesse da presente compilação.

No tocante à crítica teatral, dois fatores ocupam o centro da cena.

‘Machado foi um crítico preocupado com todos os aspectos da montagem teatral. Seus folhetins quase sempre seguem um padrão: ele faz um estudo da peça, do ponto de vista literário e dramático, (…) e em seguida um comentário sobre a encenação, destacando porém (…) as interpretações dos artistas.’

E, mesmo em relação à análise da atuação dos atores, Machado também construiu um modelo próprio: ‘Passando aos artistas do Ginásio, os comentários (…) obedeceram a uma constante’.

O ponto é fundamental: a crítica machadiana supôs o desenvolvimento de um método particular de análise, em busca do equilíbrio entre a fatura literária e o interesse dramático, sem jamais perder de vista a performance no aqui e agora do espetáculo.

Mesmo em sua fase menos ousada, portanto, o autor de ‘O Alienista’ começou a esboçar o caminho que lhe seria próprio, aliando narração e reflexão, intriga e análise, criação e crítica.

Como os temas tratados na introdução e, sobretudo, os próprios textos críticos e escritos diversos ultrapassam os limites de uma resenha, apenas menciono o que talvez seja a hipótese mais fascinante proposta pelo organizador.

Refiro-me à descoberta machadiana de um novo Shakespeare por meio das memoráveis atuações do célebre Ernesto Rossi.

Dicção autobiográfica

O elogio de Machado possui dicção autobiográfica: as encenações do ator italiano revelavam um autor que o público brasileiro conhecia sobretudo por meio de ‘partituras musicais. Esta verdade deve dizer-se: [William] Shakespeare está sendo uma revelação para muita gente’.

Esse texto, escrito em 1871, vale por uma confissão.

De fato, no ano seguinte, na publicação de seu primeiro romance, ‘Ressurreição’, sua epígrafe é tomada de empréstimo ao dramaturgo inglês de ‘Medida por Medida’.

Desde esse momento, Shakespeare ocupou o centro do palco do museu imaginário de Machado.

João Roberto Faria vai ainda mais longe e sugere uma conexão surpreendente: ‘O Otelo que Bentinho vê no teatro, pelos olhos de Machado, é o de Ernesto Rossi’.

Em artigo de 1896, Machado escreveu palavras definitivas: ‘Quando não se falar inglês, falar-se-á Shakespeare’. Nos tristes trópicos, devemos aprender a falar Machado.

Mas, a partir de agora, contamos com uma gramática indispensável: a primorosa edição desses ‘Textos Críticos e Escritos Diversos’.

JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA é professor universitário e ensaísta.’

 

 

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