Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Folha de S. Paulo

GILMAR MENDES
Carlos Heitor Cony

Uma toga em questão

‘Sem entrar no mérito técnico do problema -se acaso houve algum-, acredito que já é hora de avisarem ao presidente do Supremo Tribunal Federal que ele não está agradando. E não é de agora essa constatação nacional. Basta abrir sua suculenta página no Google para tomarmos conhecimento de sua carreira polêmica -à falta de classificação mais apropriada, ressalte-se o caráter polêmico de sua personalidade pública.

Desde a sua indicação para o STF, desde a sua passagem pela AGU, em tudo o que fez ou deixou de fazer causou irritação e pasmo, sobretudo nos meios jurídicos do país. Prestou serviços também polêmicos ao governo de Fernando Henrique Cardoso e provocou até mesmo pedidos de impeachment, que não foram adiante devido ao rolo compressor que ele próprio ajudou a criar durante o tucanato.

Impressionante a sua mania de dar opinião sobre qualquer assunto, antecipando inclusive juízos sobre causas que não chegaram a ser processadas, contrariando a tradição secular segundo a qual um juiz só se manifesta nos autos.

Impressionante também a sua gula pela visibilidade. Disse bem o ministro Joaquim Barbosa: o presidente do STF está na mídia, vulgarizando o Poder Judiciário -ou destruindo-o, segundo a acusação feita em alto som no plenário daquele tribunal e divulgada à saciedade pela televisões.

Os oito ministros que assinaram nota de solidariedade ao presidente daquela corte tiveram o propósito saudável de preservar a instituição de uma crise que pode ter desdobramentos imprevisíveis.

A opinião pública, estarrecida com o escândalo das passagens às famílias de alguns congressistas, ficou sabendo que até mesmo no Judiciário a lama respingou numa toga que, apesar de preta, deve permanecer imaculada.’

 

BANDA LARGA
Felipe Caruso

Internet grátis tem acesso restrito em morro do Rio

‘O sinal gratuito para acesso à internet banda larga do morro Santa Marta, em Botafogo, inaugurado em março, ainda está longe de alcançar os 10 mil beneficiados anunciados pelo governo do Estado do Rio..

Durante os primeiros 15 dias da rede, o acesso ficou restrito a um número entre 50 e cem usuários, segundo a empresa responsável pelo sistema.

O projeto enfrenta problemas relativos à informação da população e da própria geografia íngreme e acidentada da favela, causando a chamada ‘sombra de cobertura’, que impede que o sinal chegue aos primeiros andares e porões, principalmente no centro do bairro.

O projeto Santa Marta Digital foi implementado pelo Estado através da Secretaria de Ciência e Tecnologia e custou R$ 496 mil. São 16 antenas que transmitem o sinal 24 horas.

Logo que a rede foi inaugurada, Raphael Cassimiro, 24, que mora entre duas antenas, sendo a mais próxima a 30 metros de sua casa, testou o serviço em seu notebook e constatou que a internet não funcionava.

Irritado com o sinal intermitente, subiu na laje e sentou ao pé de uma das antenas, que mesmo assim não funcionou.

Fez o mesmo com a outra antena e, enfim, conseguiu captar o sinal. Morador do Santa Marta há um ano, Cassimiro trabalha como auxiliar administrativo e complementa a renda vendendo pipas na favela.

Mesmo com um orçamento apertado, ele cogita contratar um provedor privado.

Já Giovana de Souza, 19, não teve tempo de tirar suas conclusões. Nos primeiros dias de sinal aberto, segundo ela, alguns moradores quebraram a antena que ficava a 10 metros da casa dela por pensarem que se tratava de uma câmera.

Ela, que tinha comprado o receptor do sinal por R$ 80, teve que revendê-lo para assinar um provedor particular. ‘Se botarem a antena aqui de novo, eu vou desfazer o contrato com meu provedor e usar a internet aqui do morro, porque é de graça. Hoje, pago R$84 por mês.’

Segundo a empresa Mibra Engenharia, responsável pelo sistema, o adaptador do sinal pode chegar a custar R$ 200.

‘Com toda essa inovação, esse crescimento para colocar a favela como modelo, eles esquecem que isso onera muito a população. Nem todo mundo vai poder comprar esse equipamento’, diz Itamar Silva, presidente do Grupo Eco, que desenvolve projetos de informática no Santa Marta desde 1995.

Para ele, primeiro se deve pensar no acesso da população aos computadores e, depois, na intensidade do sinal.

Para tentar se aproximar da população e resolver os problemas da rede, a Mibra Engenharia recrutou quatro jovens da comunidade e os treinou para darem suporte técnico.’

 

CURSO
Folha de S. Paulo

Edição, concisão e análise são tema de aula

‘A secretária de Redação da Folha Suzana Singer dá na próxima terça, dia 28, palestra sobre edição, concisão e análise no jornalismo diário, na unidade Liberdade do Centro Universitário Alcântara Machado (UniFiam-Faam).

Será a segunda aula deste ano na Cátedra de Jornalismo Octavio Frias de Oliveira, criada em 2002 pelo centro em homenagem ao publisher da Folha, morto em 2007, aos 94 anos.

Singer falará às 20h, no auditório da Casa Metropolitana de Direito (av. Liberdade, 749, 5º andar, São Paulo).

Para participar, é preciso escrever para jornalismo@fiamfaam.br, com nome, telefone e faculdade/empresa/instituição a que pertencem.

A programação completa da cátedra está em http://fiamfaam.br/jornalismo.’

 

TELEVISÃO
Daniel Castro

O profeta da ilha

‘No ar em ‘Revelação’, o ator Daniel Alvim, 34, já grava as primeiras cenas de ‘A Ilha do Profeta’, próxima novela do SBT, adaptação de Íris Abravanel para ‘Vende-se um Véu de Noiva’, de Janete Clair. Ele será Gustavo Baronese, milionário que consegue conciliar a exploração da pesca industrial com a defesa da fauna e da flora marinha. ‘O personagem consegue unir as duas coisas. Ele não é contra o progresso, desde que haja reflorestamento’, explica. Gustavo irá recuperar uma ilha, a que dá título à trama. Será o primeiro mocinho da carreira de Alvim, que já trabalhou em várias novelas do SBT e da Record.

Herói da novela das oito vira ‘implacável’ e esquece Maya

Bahuan, o insosso mocinho de Márcio Garcia em ‘Caminho das Índias’, passará por uma transformação radical nos próximos capítulos. No Brasil, o ‘intocável’ virará um executivo ambicioso, que gosta de luxo e dinheiro, vai se tornar sócio majoritário da Cadore e será disputado por mulheres.

A mudança não tem nada a ver com a falta de química entre o ator e Juliana Paes, a mocinha Maya. Já estava prevista na sinopse de Glória Perez.

‘Assistimos nascer um outro Bahuan: duro, implacável, que se deixa levar e dominar pelas exigências dos sentidos e pelas ambições materiais’, escreveu a autora na sinopse. Nesse contexto, ‘Maya é uma lembrança do passado, parte de uma vida que ele deixou para trás’..

Apesar da colaboração que Glória vem recebendo de Carlos Lombardi, Bahuan não irá tirar a camisa nem desfilará de sunga pelo Rio. ‘Ele será um indiano no Brasil’, diz. No último dia 18, a autora passou por uma cirurgia para retirada da tireoide. Lombardi escreverá parte da novela até esta semana.

Segundo Glória, Bahuan irá se envolver com várias moças, entre elas Ciça (Aninha Lima). ‘Mas ele não quer nada sério com ninguém. Só quer virar a página, esquecer Maya.’

A sinopse prevê Bahuan noivo de uma filha de industrial, quando, na reta final da história, volta para a Índia e reencontra Maya. Eles vão terminar juntos? ‘Ainda é cedo para dizer. Triângulo de novela é igual triângulo da vida’, despista.

TANGO

O ator argentino Pablo Bellini (foto) conseguiu emplacar seu segundo trabalho na Globo. Depois de interpretar Miguel, o segundo marido da cantora Maysa, na microssérie homônima, ele participará de cinco episódios de ‘Tudo Novo de Novo’. Viverá um cafajeste que dará em cima de Ruth (Arieta Corrêa), filha do protagonista Miguel (Marco Ricca). Pablo, que já está sendo sondado para novos trabalhos na Globo, mora no Brasil por amor a uma bailarina, sua mulher há quase dez anos.

SHOW DE BELEZA

A transmissão pela Band do concurso de Miss Brasil, no próximo dia 9, será ancorada por duas experts no assunto: a jornalista Renata Fan, miss Brasil de 1999, e a empresária Nayla Micheris, miss Brasil de 1997. Nos últimos anos, as apresentações foram feitas por casais.

NOVA GRADE

Com a estreia da versão brasileira de ‘Betty, a Feia’, prevista para junho, a Record veiculará três novelas na sequência, como ocorreu nas duas últimas semanas, temporariamente. ‘Bela, a Feia’ ocupará o horário de ‘Promessas de Amor’, que entrará mais tarde.

‘APANHEI NO CONGRESSO’

Sabrina Sato causou frisson no Congresso na última quarta. Ela fez ‘reportagem investigativa’ sobre a ‘farra das passagens’, que o ‘Pânico na TV’ exibe hoje. Parlamentares como Fábio Faria, ex de Adriane Galisteu, fugiram dela. Fernando Gabeira, não.. ‘Eu pedi uma passagem e a sunga de crochê que ele usava. Mas teve um deputado que bateu na minha mão’, conta. Sabrina ficou impressionada com a quantidade de deputados obesos e com as piadas que eles produzem. ‘Brasília é a maior roubada.’’

 

Bia Abramo

Tematizando a violência

‘O CAMINHO foi aberto pelo cinema. Depois, vieram as minisséries independentes na Globo. Em seguida, a Record entendeu que nesse mato havia coelho. E, agora, a Globo, desta vez em produção própria.

Podemos, mais simplesmente, classificar como ‘policiais’ ou de ‘ação’ a telenovela da Record ‘Poder Paralelo’ e o seriado da Globo ‘Força-Tarefa’. Mas também podemos pensar que nessas duas estreias recentes há uma tendência nova na teledramaturgia e que seu interesse extrapola a adrenalina da ‘ação’.

De alguma maneira, essas e outras novelas e séries (‘Cidade dos Homens’, ‘Vidas Opostas’, ‘A Lei e o Crime’) vêm tentando tematizar a violência que se tornou parte constitutiva da sociedade brasileira. Se os resultados nem sempre são ótimos, às vezes nem mesmo bons, pelo menos indicam uma vontade de buscar cenários, histórias e personagens mais verdadeiros.

A realidade, claro, nem sempre é a resposta para as deficiências da ficção, mas o desinteresse e o desprezo que muitos autores têm mostrado por tentar entender (e representar) melhor o que anda pelo mundo não têm feito nenhum bem, sobretudo, às telenovelas.

Tematizando a violência, novelas e séries também conseguem buscar o telespectador pouco afeito ao ramerrame das intrigas amorosas que fazem o arroz com feijão da teledramaturgia. No centro de ambas, está a polícia. Mas qual polícia? A polícia, no imaginário moderno, é aquela instituição que serve mais ou menos para qualquer coisa -para representar a iniquidade das relações sociais, para decretar a falência das leis, para demonstrar a estupidez das relações autoritárias etc. É, portanto, matéria ficcional de alta qualidade.

Na tradição do filme de gângster, em ‘Poder Paralelo’ há um policial dedicado, um ‘intocável’ a investigar um suposto mafioso. A polícia aqui, mesmo que passe por cima da burocracia e transgrida aqui e ali o que a lei tem de burocrática, tem uma missão justiceira. No caso de ‘Força-Tarefa’, o objeto de investigação é a própria polícia: trata-se de um grupo de elite da corregedoria encarregado de caçar policiais corruptos e criminosos. A tarefa, no caso, é quase metafísica: fazer a lei incidir sobre os homens da lei.

A novela da Record começou melhor do que o seriado da Globo, com mais ritmo, agilidade e direção mais segura. A Globo tem melhores atores à disposição, além de contar com a liberdade e o tempo mais cuidadoso de um seriado. Mas ambos acertam em sair do estúdio e voltar-se para as ruas.’

 

Lúcia Valentim Rodrigues

Série é versão ‘light’ de ‘Grey’s Anatomy’

‘A médica obstetra Addison Montgomery (Kate Walsh) está cansada de tanto trabalhar. Sua vida sentimental é um enrosco sem fim com Derek Shepherd (Patrick Dempsey), que tampouco sabe o que quer. Ela ganha um beijo de um doutor hippie e decide: é hora de mudar. De casa, de estilo de vida, de marido, até de Estado. Assim começa ‘Private Practice’, derivada de ‘Grey’s Anatomy’ e que tem sua primeira temporada lançada em DVD sem muito alarde.

Addison sai de um emprego confortável em Seattle e segue para a Califórnia, para trabalhar numa clínica de fertilização. Ela desiste de uma carreira em ascensão pela necessidade de viver a vida por completo.

A primeira providência ao chegar é dançar nua. Transpira alegria de viver, até que dá de cara na janela com o marido da melhor amiga. De supetão, volta para o mundo real, onde todos fofocam sobre todos. Em princípio, sente-se uma intrusa. Logo percebe que é mais uma entre saudáveis lunáticos.

Tomando como exemplo a dona da clínica e sua melhor amiga, Naomi: se separou recentemente do marido, Sam, e se entope de doces para esquecer a solidão -e a falta de sexo. A psiquiatra Violet se autoanalisa e percebe todos os seus erros com os homens, apenas para voltar a cometê-los sem pestanejar. Apaixonado por ela é Cooper, um pediatra que passa as noites procurando companhia sexual na internet.

Já Pete faz medicina alternativa, com acupuntura, ervas e massagens. Cheio de segredos, perdeu a mulher e ainda não sabe lidar com isso. Ele é o bonitão que causa a mudança na vida de Addison, mas parece que os dois nunca vão acertar os ponteiros. O mais maduro dessa equipe é Dell, um secretário-surfista de 20 e poucos anos.

A vida pessoal de todos eles está desarranjada: divórcios, sexo casual e ciúmes bobos estão por toda parte. E uma falta de comunicação que parece ser natural nos tempos de hoje.

Embora a vida fora da clínica seja muito mais relevante no seriado, os casos analisados são bem instigantes, como o de uma mulher de 35 anos que não consegue consumar seu casamento e, quando eles conseguem transar e resolvem ter um filho (não há tempo a perder!), descobrem que ele é quase estéril. Sem querer estragar o episódio, o enredo ainda vai ter um final feliz para o casal.

Aqui, os criadores de ‘Grey’s’ parecem ter tomado um dos chás do ‘curandeiro’ Pete para fazer uma série bem mais relaxada -embora recheada de dramas de pacientes. Uma terapia saudável de ver.

PRIVATE PRACTICE – 1ª TEMPORADA

Criadora: Shonda Rhimes

Distribuidora: Buena Vista

Quanto: R$ 59,90, em média

Classificação: não indicado a menores de 14 anos

Avaliação: bom’

 

Cláudia Dallaverde

Depois do castelo

‘Roteirista da série DE TV sensação nos anos 90 investiga o paradeiro dos personagens mirins Pedro, Bia e Zeca.

Para onde vão os heróis quando as histórias acabam? As princesas tudo bem, sabemos que se casam e são felizes para sempre; os solitários partem para novas aventuras; os que entraram por uma porta e saíram pela outra continuam suas vidas fora do mundo encantado. Nino, o bruxo-criança da série ‘Castelo Rá-Tim-Bum’ (exibida pela TV Cultura até 1997), provavelmente continua a jogar sua bola mágica para fora do pátio, para atrair novos amigos.

Mas como continua a história de Pedro, Biba e Zequinha, que um dia em 1994 saíram da escola como se fosse um dia normal e correram atrás da bola de Nino? Quando foi, exatamente, que pararam de visitar o Castelo Rá-Tim-Bum? Por quê? A resposta é a mesma, aconteceu o que acontece com toda criança convidada a passar pela porta do encantamento: é um mundo transitório, que existe enquanto a gente é criança e que o tempo se encarrega de colocar de volta naquela região mágica que não tem explicação, ou não seria mágica.

Alice cresceu e passou a ler livros sem figuras e sem diálogos. Wendy ainda foi de muita utilidade para sua filha quando chegou a vez dela de viajar para a Terra do Nunca. Agora se abre novamente uma oportunidade para quem teve a infância embalada ao som do ‘bum bum bum, Castelo Rá-Tim-Bum’. Diga a senha, entre, respire fundo. Você está prestes a se reencontrar com Pedro, Biba e Zequinha. Boa aventura.

Primeiro Episódio

O COMEÇO

Luciano Amaral, o Pedro, tinha 13 anos quando entrou pela primeira vez no Castelo, mas já era um veterano em viagens desde o programa ‘Mundo da Lua’, quando, na pele de Lucas, ligava seu gravador e reeditava as aventuras da família Silva e Silva. Cinthya Rachel, a Biba, tinha de 12 para 13 e fazia outro programa da TV Cultura, chamado ‘O Professor’. Fredy Allan, o Zequinha, estreava no teatro com ‘A Fuga do Planeta Kiltran’, onde dividia o palco com os outros dois. Tinha 6 ou 7 anos e foi indicado para o prêmio Apetesp de ator revelação. O diretor do programa, Cao Hamburger, foi ver o espetáculo já sabendo dos outros dois, gostou do entrosamento e completou o time.

Foram um ano e sete meses de gravações, dos quais todos se lembram como trabalhosos e divertidos. Luciano fala dos aniversários comemorados no Castelo, Cinthya da roupa linda de princesa que vestiu para gravar ‘Tico-Tico no Fubá’ no Teatro Municipal. Fredy, como Zequinha, era enxerido: dava sua opinião sobre movimentos de câmera e, na hora do almoço, ia para a ilha de edição. O mais legal era que o diretor deixava.

Todos falam com carinho de programas que reuniam o elenco completo, o que era raro. Vale lembrar que o anfitrião, Nino, era Cássio Scapin, sobrinho da Morgana (Rosi Campos) e do dr. Victor (Sérgio Mamberti). As visitas atendiam pelos nomes de Bongô (Eduardo Silva), Penélope (Ângela Dip), Caipora (Patrícia Gaspar). Sem contar que o arquiinimigo, dr. Abobrinha, era defendido com brilhantismo por Pascoal da Conceição e a cobra Celeste falava pela voz inconfundível de Cleide Queiroz. Por tudo isso, os visitantes se lembram das aventuras do ‘Castelo’ como uma grande experiência de aprendizagem e estímulo, como dá para ver no próximo episódio.

Segundo Episódio

VIDA REAL

Em que pese a sedução do faz de conta, nossos heróis não tiveram problemas de adaptação com o mundo real.

CENA 1 – LUCIANO AMARAL

‘Vai parecer um pouco chato, mas é verdade: quando as gravações terminaram é claro que fiquei triste, mas faz parte do processo. Já tinha passado por isso algumas vezes, pra mim foi bem tranquilo..’

CENA 2 – CINTHYA RAQUEL

‘No nosso trabalho, passamos repetidamente pela experiência do fim, de abrir mão daquele universo, daquela família e daqueles personagens. O trabalho acaba, mas ficam os amigos.’

CENA 3 – FREDDY

‘Se entramos em algum mundo mágico, que é o da criação da magia, eu pelo menos não saí dele. A magia do ‘Castelo’ vai além da magia como algo irreal, porque ele não só sustentou as crianças daquela época como acompanhou as crianças que foram vindo.’

Terceiro Episódio

A FAMA

CENA 4 – LUCIANO

‘Minha vida já tinha mudado muito por causa do ‘Mundo da Lua’. O Castelo veio dar mais credibilidade para minha carreira.’

CENA 5 – CINTHYA

‘Até hoje, 15 anos depois, as pessoas ainda me chamam de Biba: tem gente muito carinhosa, que diz que o programa ajudou na criação dos filhos, tem quem chegue pegando(!!), beliscando (!!) e ainda recomenda para o filho: belisca pra ver se é de verdade, filho! É engraçado.’

CENA 6 – FREDDY

‘A longo prazo, é como um artista se coloca perante esse reconhecimento que todos adoram chamar de fama, mas, se você se coloca como igual, apenas mais um criador do telúrico social, a reação das pessoas vai mudando. É estimulante e assustador e, por causa dos dois, divertido ao mesmo tempo.’

Desfechos

Luciano, 29, o viajante virtual

É ator de teatro e continua trabalhando na TV, mas como apresentador (HIT TVê, exibido até janeiro deste ano pela Rede TV!). Seu trabalho mais recente é a direção do espetáculo ‘Mamma Mia’, na Casa de Artes Operária, que forma atores para musicais.

Cinthya, 28, de criatura a criadora

Se formou em jornalismo e tem uma paixão: escrever. Publicou dois livros, um deles ‘O Menino que não Queria Tomar Banho’. E se define no (ótimo) blog como ‘apenas mais uma pessoa que adoraria viver num comercial de margarina no qual todos são felizes e ninguém precisa lavar a louça no final.’

Freddy, 24, teatro porque sim

Participou da montagem de ‘Os Sertões’, dirigida por Zé Celso Martinez Corrêa, no teatro Oficina. Está montando ‘A Morta’, de Oswald de Andrade, para ser apresentado virtualmente em homenagem aos cem anos do teatro Dulcina de Moraes, no Rio. ‘Eu escrevo peças, adaptei ‘A Morta’ em homenagem à Dulcina [de Moraes, uma das maiores atrizes do teatro brasileiro], toco trompete por amor.’’

 

WALT DISNEY
Raquel Cozer

O magnata da fantasia

‘Era inevitável, e Walt Disney logo percebeu. Um dia, alguém ganharia uns bons trocados às custas de sua história -que, nos anos 50, já incluía uma revolução nas animações, um gigantesco mercado de produtos associados a seu nome e a criação do parque Disneylândia.

Em 1956, então, ele aceitou dar uma série de entrevistas a um jornalista, com a condição de que sua primeira biografia autorizada, ‘The Story of Walt Disney’, saísse com a assinatura de Diane Disney Miller. Se era para alguém faturar em cima dele, que fosse a filha.

Depois dessa biografia, vieram outras dezenas, meticulosas, capengas, inócuas, sensacionalistas -incluindo uma sob o duvidoso título ‘O Príncipe Sombrio de Hollywood’.

A que chega amanhã às lojas do país, ‘Walt Disney: O Triunfo da Imaginação Americana’ (Novo Século), do americano Neal Gabler, foi feita a partir de uma fonte, pode-se dizer, até mais confiável que as lembranças de Disney (1901-1966).

A origem de suas 944 páginas (incluindo mais de 200 só de referências) são milhares de desenhos, cartas e outros documentos reunidos ao longo da vida de Disney e que, arquivados nos estúdios em Burbank, Califórnia, até então só haviam sido parcialmente liberados.

Gabler, jornalista experiente, autor do best-seller ‘An Empire of Their Own: How the Jews Invented Hollywood’ (um império só deles: como os judeus inventaram Hollywood; não lançado no Brasil), teve total acesso a esses registros e os pesquisou durante sete anos.

‘Acontece que Walt amava fantasiar sua vida. Ele era, antes de tudo, um contador de histórias, e adorava alimentar sua própria mitologia’, diz Gabler, 59, à Folha, por telefone, de Nova York. ‘A um ponto em que eu não me sentia confortável em usar a versão de Walt se não pudesse checá-la.’

No livro, o autor coloca Disney, o contador de histórias, contra Disney, o jovem empreendedor que tropeça na própria ansiedade, que erra muito e que relata seus infortúnios em cartas para a mulher, o irmão (Roy, que comandou os estúdios com ele desde o começo) e mesmo desafetos.

‘Em vez de apenas lembranças, tive em mãos documentos do momento, por exemplo, em que Disney, depois de concluir ‘Steamboat Willie’ [o primeiro desenho que sincronizava som e imagem], tentava vender Mickey para algum distribuidor em Nova York’, diz Gabler.

Treinador de camundongo

São com certeza versões menos românticas que aquela, do próprio Disney, segundo a qual ele criou Mickey após conseguir treinar camundongos.

‘Nunca esquecerei o grito que uma garota deu quando entrou em meu escritório um dia e encontrou um rato sentado em minha mesa enquanto eu o desenhava’, ele relata, em uma entrevista citada na biografia.

Na verdade, segundo confirmou Gabler, Disney praticamente já não desenhava aos 23 anos, quando comandava seu pequeno estúdio, e quatro antes de Mickey ser criado.

Ele foi de fato um dos mentores intelectuais do personagem (e lhe deu voz até os anos 40, quando se cansou de arranhar a garganta com o falsete e passou a tarefa a um técnico de som), mas seu esboço de Mickey não ficou bom. ‘Era comprido e magro’, lembraria um colega.

Disney, diz Gabler, até sabia desenhar Mickey, ‘mas certamente não tão bem quanto Ub Iwerks’, o dono do traço de personagem nas primeiras animações. Iwerks pediu as contas menos de dois anos após a estreia do camundongo, sentindo-se lesado por Disney ficar com todos os louros. Ele acabaria voltando aos braços (ou melhor, aos estúdios) do colega anos depois, quando este já era internacionalmente famoso.

‘Príncipe sombrio’

A fama de ‘príncipe sombrio’ -que ganhou força com a questionável biografia de Marc Eliot, lançada em 1993- tem seu fundamento. ‘Walt Disney não era um homem fácil, e tento dar essa noção. Houve momentos, enquanto escrevia, em que me senti profundamente incomodado com suas atitudes, e um deles foi durante a greve nos estúdios’, diz Gabler.

Em princípio, Disney tentava lidar com os funcionários de igual para igual, mas os estúdios se tornaram tão grandes que, a certa altura, ele não tinha como saber o nome de todos os seus empregados. Foi então -quando havia até quem ‘desmaiasse de fome’, segundo o livro, sem tempo nem dinheiro para almoçar- que os funcionários decidiram paralisar.

‘Walt Disney não agiu particularmente bem ali’, diz Gabler, ‘e uma das coisas que fez foi fugir. Ele deixou os estúdios e foi para a América Latina’.

A greve, em 1941, coincidiu com a ideia do governo de usar Walt Disney como uma espécie de embaixador dos EUA na América Latina -numa época em que os Aliados precisavam conquistar os países abaixo da linha do Equador para evitar a aproximação deles com o Eixo.

Enquanto exaltava o Brasil e seus vizinhos em ‘Alô, Amigos’ (1943) e ‘Você Já Foi à Bahia?’ (1944), com Zé Carioca, Walt Disney vivia também seus anos mais tristes, segundo Gabler -produzindo curtas por encomenda do governo norte-americano, como aqueles em que Pato Donald aprende a pagar seus impostos ou no qual, vestido de nazista, sofre nas mãos dos oficiais da SS.’

 

***

Disney não se interessava pelas HQs

‘Ao terminar de ler a biografia ‘Walt Disney – O Triunfo da Imaginação Americana’, muitos leitores sentirão falta de remissões ao Tio Patinhas. O autor, Neal Gabler, comenta: ‘Disney investia as suas energias naquilo que realmente o interessava. Foi assim com o Mickey, a ‘Branca de Neve’ e a Disneylândia. Ele não tinha absolutamente nenhum interesse pelos quadrinhos publicados sob seu nome’. Tio Patinhas, assim como a cidade Patópolis, foram criados por Carl Barks (1901-2000) apenas para as HQs.’

 

ITÁLIA
Miguel Mora

Enquanto a morte não chega

‘Não sei se estou meio morto ou meio vivo. O que sei é que a ameaça dos Casaleses [clã mafioso] me converteu em uma pessoa pior. Mais desconfiada, mais egoísta. Sinto ódio dos amigos que me abandonaram quando o livro saiu, entre uma partida de Playstation e uma da Liga Fantástica. Apenas saio de casa. Não posso usar cartão de crédito. Vivo sob escolta 24 horas por dia. Deixei de ser um homem -virei uma equipe. Os rapazes são ótimos, são napolitanos como eu. Praticamos esportes juntos, lutamos boxe no ginásio… Mas sinto falta de Nápoles, aqueles eternos atrasos de trem na estação… O tempo se deformou, os minutos são estranhos, cada movimento banal requer um dia inteiro. E não posso mais fazer as coisas mais simples: passear, tomar uma bebida num bar, comprar uma geladeira. Ontem fomos ao supermercado, e foi patético. Os ‘carabinieri’ [policiais militares] em torno do carrinho, todos opinando sobre a pasta que eu devia comprar. As pessoas se assustaram; nos abriram um espaço no caixa para que fôssemos embora logo. Quando saímos, eu disse aos rapazes: ‘Não vamos voltar’.’

Assim é a vida de Roberto Saviano. Uma vida que não é vida, uma vida-morte, uma espécie de morte em vida.

O sucesso de ‘Gomorra’ [ed. Bertrand Brasil], um dos maiores fenômenos da história italiana, converteu-se numa maldição para seu autor.

Reconhecimento, prêmios e elogios, fama, dinheiro e viagens, nada disso compensa o outro lado da moeda: Saviano foi difamado, cuspido e insultado pelos jovens de sua própria terra, abandonado por seus amigos, condenado à morte.

E hoje vive agachado, rodeado de armas e de policiais, em alta velocidade e à meia-voz.

O Sistema

Tem apenas 29 anos, mas percebe-se que já não é mais aquele rapaz que gostava de contar piadas e que ia conquistar o mundo quando formou-se em filosofia pela Universidade Federico 2º, em Nápoles.

Foi naquela época que Saviano começou a escrever seu primeiro relato real, intitulado ‘La Terra Padre’ [A Terra Pai]. Naturalmente, o tema era a Camorra.

Conforme descrita por Saviano, a máfia napolitana, ou, melhor, da região da Campanha, deixou de ser o que era aos olhos de muitas pessoas -um grupo de bandidos dirigidos por tipos mais ou menos honrados que traficam e assassinam, mas que, no fundo, protegem uma população abandonada à própria sorte (embora esta última parte continue sendo verdade).

Ela passou a ser O Sistema, uma poderosa holding criminal que, de acordo com o último censo feito pelo chefe dos ‘carabinieri’ de Nápoles, o general Gaetano Maruccia [leia entrevista na pág. 6], responsável pela segurança de Saviano, ‘tem pelo menos 80 clãs e mais de 3.000 filiados armados, aos quais se soma uma extensa rede de colaboradores’.

Quando Saviano começou a escrever, era um jovem feliz, embora trabalhasse sem parar.

‘Eu tinha quatro ou cinco trabalhos: numa pizzaria, dando aulas de reforço para crianças à tarde, como pedreiro ocasional no campo de Caserta, bolsista de doutorado em história contemporânea e colaborador de periódicos e sites.’

Levou apenas alguns meses para juntar os 11 relatos verídicos que formam ‘Gomorra’.

Pouco depois, o manuscrito se converteu em livro, graças ao faro dos editores da Mondadori. ‘Publicaram meu primeiro relato na revista ‘Nuovi Argumenti’ (em abril de 2005), e depois fecharam comigo um contrato de promessa jovem. Me deram 5.000 de adiantamento por 5.000 cópias’, recorda Saviano.

Logo depois esse contrato deu lugar a outro, com valores estelares. ‘Em maio de 2006, quando o livro finalmente saiu nas livrarias, eu era o cara mais feliz do mundo. Vivi os cinco melhores meses de minha vida. Eu era um homem livre. Ganhei o Prêmio Viareggio, comecei a escrever no ‘La Repubblica’ e no ‘Espresso’, a falar na televisão… E, de repente, tudo parou. Tudo o que aconteceu desde então eu não vivi.’

Chegaram as primeiras ameaças dos Casaleses, o clã do povoado onde Saviano cresceu, Casal di Principe. E eram inequívocas. Ele teria que morrer. Não apenas sabia demais e tinha contado o que sabia, dando nomes e sobrenomes, relacionando cada informação com sua fonte, como também, e sobretudo, o livro havia chegado a pessoas demais.

A Camorra estava na boca de todos. Já não era o tradicional mal menor napolitano (fisiológico, à margem da lei). Era um câncer internacional.

Os juízes antimáfia levaram a advertência a sério. Era preciso protegê-lo, e rápido. No dia 13 de outubro de 2006, o ministro do Interior, Giuliano Amato, decidiu que Saviano deveria viver escoltado.

‘Lembro-me do dia em que os policiais militares vieram me buscar em casa para me levar ao quartel. Os vizinhos brincavam: ‘Robbè, finalmente estão prendendo você!’. Amato foi de uma sensibilidade extraordinária. Disse que o Estado tinha que me proteger, porque por mim defendia a liberdade de expressão, um princípio constitucional. Isso me converteu em símbolo da liberdade de expressão. Sempre o agradecerei por isso.’

Dois anos e quatro meses se passaram. Seus velhos amigos se afastaram dele. Sua antiga namorada o deixou. Sua família se dispersou ainda mais do que já estava dispersa (seus pais se separaram em pouco tempo).

E Saviano se culpa por tudo isso. Diz que lamenta por ‘ter destruído meu mundo por um livro e ter feito mal a todos os que me queriam bem’.

Sua vida está ‘suspensa, cancelada, detida’. É um destino quase irreversível.

Por questões de segurança, foram necessárias semanas para marcar o encontro para esta entrevista. A primeira tentativa foi adiada porque os níveis de alerta dispararam.

Um primo de Sandokan [líder mafioso] chamado Carmine Schiavone e colaborador com a Justiça (um ‘pentito’, ou arrependido), revelou que a Camorra tinha plano e data marcada. Iam matar Saviano antes do fim do ano, colocando uma bomba no caminho que ele percorreria na rodovia A1, que liga Roma a Nápoles.

Mas o nível de alerta diminuiu. Schiavone -que, mais do que um arrependido, parece ser o porta-voz da Camorra- declarou que seus ex-comparsas tinham decidido esperar que os holofotes fossem um pouco apagados antes de matá-lo. Com mais calma.

Finalmente pudemos marcar o encontro.

‘Vão acabar comigo’

Com a ajuda de sua amabilíssima assistente, Manuela, programamos ir juntos a Nápoles, fazer uma refeição com Saviano e conhecer seu amigo, o general Maruccia, chefe do Comando Provincial dos Carabinieri de Nápoles.

É 16 de janeiro, a manhã é bela e gelada, e os dois carros blindados chegam pontuais e muito juntos, deslizando com elegância italiana.

Saviano está sentado no primeiro carro, no banco de trás, à direita. As sirenes deixam de tocar, e os carros param. Cinco policiais descem e vasculham a rua com seus óculos escuros e seus ‘walkie-talkies’. Saviano continua sentado dentro do Lancia cinza.

Nos cumprimentamos e o fotógrafo começa a fazer imagens. Os guardas permanecem impassíveis. Estão acostumados. A esta altura, já foram fotografados 2.000 vezes e sabem que a Camorra conhece seus rostos milimetricamente. Mesmo assim, suas expressões não traem medo algum.

Saviano faz um apanhado do armamento: os Casaleses têm cem quilos de TNT e um arsenal de metralhadoras e pistolas. ‘Sei que vão acabar comigo. Cedo ou tarde, vão fazê-lo.’’

 

***

O homem blindado

‘Leia a seguir entrevista com Roberto Saviano.

PERGUNTA – Quer dizer que é assim sua vida atual?

ROBERTO SAVIANO – É assim. Eles vão aos lugares antes de mim. Chegam primeiro, controlam tudo, e depois eu vou. Para qualquer coisa. Se é preciso comprar uma geladeira, por exemplo, eles vão na frente, depois eu vou, a olho, escolho o modelo, e então vamos a outra loja diferente para comprá-la. Nunca voltamos ao mesmo lugar.

PERGUNTA – O sr. sempre teve cinco guardas?

SAVIANO – Comecei com dois, depois passaram a ser cinco.

PERGUNTA – O sr. muda muito de casa?

SAVIANO – Sempre que observamos algum detalhe diferente. Por exemplo, se há uma obra em andamento num edifício próximo e sabemos que há pessoas de Nápoles trabalhando ali que já foram julgadas, eles me mudam de casa. Basta algo assim.

PERGUNTA – Eles o escoltam também dentro de casa?

SAVIANO – Não, normalmente não entram em casa. Esperam atrás da porta. Vinte e quatro horas por dia.

PERGUNTA – Parecem tranquilos.

SAVIANO – Têm muitos anos de experiência no combate à máfia. Já protegeram personalidades, juízes e ‘supertestemunhas’. Maruccia os escolheu.

PERGUNTA – Com tanto contato, vocês já devem ter virado amigos.

SAVIANO – Claro, são magníficos. E isso me obriga a seguir adiante, a não desistir. Devo isso a eles, que me defendem.

PERGUNTA – O sr. encontra amigos em casa?

SAVIANO – Poucas vezes. Muitos de meus amigos se afastaram desde que o livro saiu. Foi muito doloroso entender isso. É natural, porque você desaparece, vira invisível e se torna outra pessoa. Você fica desconfiado, vive nervoso, com a cabeça em outro lugar, e nada nem ninguém parece estar à altura trágica de sua situação…

PERGUNTA – A normalidade se torna absurda.

SAVIANO – Sim, as propostas das pessoas normais, falar de coisas bobas, sair para tomar uma cerveja, bater papos superficiais, no início eu não suportava. Eu estava mergulhado num turbilhão no qual existia apenas meu trabalho, minha situação, e procurava respostas nos livros. Fiz uma espécie de descida aos infernos literários para entender quem, antes de mim, em situações mais graves, conseguiu sobreviver.

PERGUNTA – E quais autores o ajudaram?

SAVIANO – Os perseguidos pelos soviéticos: Boris Pasternak [1890-1960], Varlam Shalamov [1907-82]…. e, mais recentemente, Anna Politkovskaia [1958-2006], que acabou de forma trágica, mas sempre enfrentou as difamações. Não vou esquecê-la. Tampouco me esqueço das cartas e dos diários do juiz Giovanni Falcone [1939-92], o que ele escreveu e publicou, porque resistiu a ataques cotidianos, parecidos com os que eu sofro.

PERGUNTA – E, tantas vezes, com a cumplicidade do governo.

SAVIANO – Sim. Estou convencido de que, na Itália, quando se luta contra determinados poderes, o destino das pessoas está selado. Não necessariamente de forma trágica, embora muitas vezes seja assim.

PERGUNTA – Deixando o sr. fora do circuito?

SAVIANO – Eles o caluniam, dizem que você está se exibindo, que está procurando publicidade. É isso que é incrível, porque se cria um círculo vicioso que impede que você tenha a palavra. E o que as máfias temem é justamente isso: a atenção.

PERGUNTA – Quando o sr. escreveu o livro, imaginou que aconteceria algo assim?

SAVIANO – Eu era um sujeito jovem que lia, discutia e escrevia.. De repente me vi no meio desta guerra. Pensava que teria problemas, mas não tão graves. Agora não posso pôr os pés em Nápoles. Esta viagem é a primeira que faço em um mês. Todas as cidades me convidam, menos a minha. Apesar de ‘Gomorra’ ser o livro mais vendido da história da cidade.

PERGUNTA – Soa irônico, é verdade.

SAVIANO – Restam poucos focos de resistência ali, poucas forças sadias. Uma delas é Marotta, o filósofo; outra, o cardeal Sepe. E o bispo Raffaele Nogaro, em Caserta, que leva adiante o trabalho do dom Peppino Diana, o padre de Casal di Principe que foi assassinado. É curioso que as instituições religiosas façam o trabalho do Estado. Esse é o drama do sul da Itália.

PERGUNTA – A crise econômica vai agravar a situação?

SAVIANO – Com certeza. E isso vai permitir ao dinheiro do crime entrar em todo lugar. [Devemos estar por volta do quilômetro 80. Faltam 150 para Nápoles. Não há muito tráfego na estrada e o automóvel voa, como os dos videogames. Os que andam pela esquerda nos acompanham em alta velocidade. ‘Vamos levar pouco mais de uma hora’, informa Saviano. ‘Se os ‘carabinieri’ nos pararem, vamos sorrir.’ É a primeira piada da viagem.] [Parece estar de humor melhor do que estava alguns meses atrás, quando disse que deixaria o país. Mas, à medida que nos aproximamos de Nápoles, vai ficando mais tenso]

PERGUNTA – Na realidade, o sr. vive uma espécie de vida virtual. Como um super-herói ao avesso.

SAVIANO – Uma vida virtual e blindada. As pessoas me visitam como se eu fosse um doente, me trazem água e açúcar, como dizemos na Itália. O que me dá satisfação são coisas virtuais, como o Facebook -recebo milhares de mensagens de jovens. Isso é precioso. Neste país ainda há pessoas que têm vontade de se expressar.

PERGUNTA – O sr. sente mais esse apoio que o da classe intelectual?

SAVIANO – O papel do escritor mudou de repente, e alguns se sentiram assediados. Muitas pessoas exigem que os escritores se pronunciem. Antes achavam que os livros não podiam mudar as coisas; hoje já não se pode afirmar isso. Talvez se possa dizer que alguns escrevem palavras que não mudam as coisas e que outros escrevem palavras que permitem que as pessoas tenham instrumentos para mudar as coisas. O poder enorme que tem o leitor que escolhe ler um livro… Talvez ele não se dê conta disso. Eu, sim. Os leitores, e não o livro, são a chave de minha história. Se ninguém tivesse lido meu livro, a Camorra teria se importado muito menos com ele.

PERGUNTA – A jornalista do ‘Il Mattino’ Rosaria Capacchione, autora de ‘L’Oro della Camorra’ [O Ouro da Camorra], também vive sob escolta.

SAVIANO – Sim, é um caso parecido com o meu. A diferença é que ela ainda vive e trabalha em Nápoles. Consideram-me um palhaço porque escrevo fora da cidade. Já ela é respeitada.

PERGUNTA – [O jogador de futebol] Cannavaro já disse que essas coisas da máfia é melhor não espalhar…

SAVIANO – A máfia faz todo mundo sentir-se culpado. Alguns se sentem culpados porque sabem pouco, outros, porque pensam muito. Cannavaro se equivoca em uma coisa.. Não é um problema local, é global: eles investem em todo lugar.

PERGUNTA – Muitos napolitanos pensam como ele.

SAVIANO – Sim, um dia um advogado gritou para mim: ‘Sou eu quem paga sua escolta!’. E os vizinhos de um apartamento que tive se organizaram e pagaram vários meses de meu aluguel adiantados, para não me terem ali.

[Nápoles aparece no horizonte, grande e belíssima. ‘Você vê Nápoles e depois morre’, reza o ditado. Uma frase que não parece oportuno citar quando o carro estaciona no quartel da polícia. Por sorte a pizzaria fica perto dali, na rua de Toledo.]

[Os livros são a grande paixão de Saviano, desde pequeno. Seu rosto só se ilumina quando fala de literatura e quando chega a pizza fumegante, verdadeiramente napolitana: mussarela de búfala, tomates cereja, crocante e macia.]

[Saviano a corta em triângulos e sopra por cima, fazendo círculos, como um menino. Então conta que tirou de ‘Soldados de Salamina’, de Javier Cercas, a inspiração para escrever seu ‘relato real’. E que gostaria de encontrar Mario Vargas Llosa.] É um escritor fabuloso, e, como Cervantes, conhece a alma napolitana. Eu o escolheria como padrinho de meu retorno público.

Seria maravilhoso se Marotta organizasse sua vinda aqui no Instituto, porque foi essa grande tradição laica e civil de Nápoles que me ajudou a escrever o livro. Os mestres dos revolucionários franceses eram napolitanos. Aqui nasceram as ideias de liberdade na Europa.

E não foi por acaso que Giordano Bruno morreu na fogueira, e sim porque tentou retornar a Nápoles. Tinha a hospitalidade do mundo inteiro, mas preferiu voltar. Foi detido em Veneza e o queimaram.

Alguns me dizem: ‘Fale da grande cultura, e não da vida ruim’. Caravaggio é a beleza, e essa beleza me dá forças para relatar o mal. Se não existisse essa beleza, não haveria esperança de sair. Mas, se usamos a beleza para encobrir o mal, ela se converte em disfarce.

Estive com Salman Rushdie em Nova York. Cheguei com a escolta, ele se aproximou com Ian McEwan, cada um me pegou por um braço e eles me levaram ao carro. Eu mal conseguia acreditar.

Salman me disse o que eu sinto. Que muitas pessoas pensam que, para um escritor, viver ameaçado é algo glamouroso. Que ninguém vai me entender, exceto algum político (ele diz que apenas Margaret Thatcher o entendia). Que ninguém vai acreditar que o que você mais deseja é tomar um café num bar. Que a única forma de reconquistar sua liberdade é decidir fazê-lo. Que o importante é manter sua cabeça livre e saber quando você quer voltar a ser livre. Que eu devo procurar um bom exílio…

Mas isso é algo que preciso pensar bem, porque começar do zero é difícil.

[Estamos de volta a Roma. Saviano escapuliu na metade da tarde de sexta-feira para passar o fim de semana com sua ‘mamma’ (versão oficial) e hoje ficamos na sede de sua editora, a Mondadori. Finalmente, a boa notícia: Saviano está escrevendo outra vez. Tem dois projetos em andamento. Um é um relato verídico sobre o crime organizado internacional. O outro falará dele próprio, do homem solitário. Será quase uma vendeta.]

[‘Tenho que canalizar de alguma maneira o rancor que sinto pelos amigos que me abandonaram quando escrevi ‘Gomorra’. Sinto ódio por eles. Entendo que a vendeta não é uma arte nobre, mas me deixaram no chão quando eu mais precisava deles. E a amizade é o contrário disso, não?’]

PERGUNTA – Com sua família as coisas vão melhor?

SAVIANO – Quando meus pais se separaram, meu irmão e eu ficamos com nossa mãe, que é química e vivia viajando a congressos. Estudamos num colégio de Caserta. Víamos meu pai, que é o médico da cidade, nos finais de semana.

Arruinei a vida de todos que me eram próximos. Meu irmão foi trabalhar no norte. E não tenho relações com meu pai.

PERGUNTA – Dizem que tudo vem da infância. O que o sr. se recorda da Camorra daquela época?

SAVIANO – Meu pai me levava para visitar doentes nos povoados rurais de Caserta. Muitas vezes víamos cenas apocalípticas. Eu me lembro das búfalas mortas boiando no rio Volturno. Quando ficavam velhas, jogavam-nas na água, para economizar balas..

Lembro que pescávamos percas marinhas no rio, porque, de tanto a Camorra roubar a areia do rio para fazer cimento, em vez de o rio desembocar no mar, a água salgada penetrava em seu leito.

Meu pai sempre teve medo da Camorra, mas nunca se rebelou. Via os carros luxuosos deles e sentia raiva. Mas não dizia nada, nunca.

Sempre senti essa asfixia. Tudo ia mal, mas ninguém podia fazer nada. Sempre foi assim. ‘Se você é ‘furbo’ (malandro), pode aproveitar’, diziam. Se você pensa que pode mudar alguma coisa, é um louco.

A Camorra sabe que só tem problemas quando mata demais. Ela ajuda as famílias com filhos deficientes.

PERGUNTA – Quer dizer que não é apenas um Estado, mas um Estado de Bem-Estar Social.

SAVIANO – Mas o bem-estar social da Camorra não é um direito, é um privilégio. Eles podem tirá-lo de você.

PERGUNTA – Quando decidiu ser escritor?

SAVIANO – Aos 14 ou 15 anos. Eu sempre lia; adorava os clássicos. Nascer na terra da Camorra não supõe apenas viver entre morte e sangue -você também vive rodeado das melhores ruínas da Antiguidade. Aníbal e Espártaco eram os personagens de minha infância. Meu avô e meu tio sempre me contavam histórias de Espártaco.

A cultura é o que realmente salva nossa vida; minha terra me deu isso de presente. A ‘Anábasis’ de Xenofonte se parece comigo.

Para escrevê-la, ele se tornou mercenário. Xenofonte era tatuado, e eu também. Ele se fez tatuar com a figura de um javali. Consideravam-no um reacionário. Mas no livro, dizia: ‘Não confia em quem escreve sobre coisas não vividas’.

PERGUNTA – Mas, para o sr., esse livro apenas estragou sua vida.

SAVIANO – Agora vivo encerrado em ambientes fechados; ando de um cômodo a outro, às vezes dou socos nas paredes. É uma meia morte, ou uma meia vida.

PERGUNTA – Ela acabará um dia…

SAVIANO – Quem sabe minha libertação chegue e eu possa passear novamente na praça do Plebiscito quando eu for velho, ou usando uma peruca loira.

Mas não acredito. Nápoles não só não esquece como sente rancor. ‘Gomorra’ arrancou a tampa que fechava tantos silêncios. Não me perdoarão nunca. Dizem: ‘Você está ganhando dinheiro com a ‘monnezza’ (o lixo), hein?’, ou ‘pare de escrever porcaria, ‘buffone’.

Os guarda-costas se indignam mais do que eu, e tenho que dizer a eles que têm que me defender dos ataques físicos, não dos espirituais.

PERGUNTA – Orhan Pamuk deixou a Turquia.

SAVIANO – A Europa e o México são hoje os lugares onde os escritores correm mais risco. Mataram com um tiro na cabeça o autor [Georgi Stoev] de ‘BG Godfather’ [Chefão Búlgaro]. Também mataram Politkovskaia e a jornalista que retomou seu trabalho… Dá medo neles o autor que consegue fazer sua mensagem extrapolar seu território.

PERGUNTA – O sr. pensa muito em sua própria morte?

SAVIANO – Bastante. Me dizem que o TNT é o pior, mas eu sinto mais medo de balas.. Sei que me farão pagar -está escrito.

Convivo tanto com isso que já não me assusta mais. Quando chegarem, porque chegarão, será dentro de algum tempo. A tensão me defenderá por alguns anos. Enquanto isso, eles, seus 200 mil seguidores e tantos políticos que tentam minimizar o que acontece, dizendo que é exagero, continuarão com a difamação. Dirão que copiei, que sou um palhaço.

Diziam isso a Falcone. E ele disse uma coisa muito importante a sua irmã. Disse que não se defendia das calúnias porque elas se defendem sozinhas, e que a máfia lhe faria um favor matando-o, porque assim ficaria claro que não era arrivista e que dizia a verdade..

PERGUNTA – Não podemos terminar assim. Suas armas são a palavra e a verdade, e são mais poderosas que as balas.

SAVIANO – Contar a verdade me ajudou a afastar as sombras que eu carregava por dentro e que se projetavam sobre mim. Eles venceram em parte, por me fazerem viver assim.

Mas, por outro lado, perderam. Hoje no Facebook há milhares de jovens discutindo a Camorra. Destruíram minha vida, mas, quanto a mim, o que fiz já não é meu. É das crianças.

A íntegra deste texto saiu no ‘El País’. Tradução de Clara Allain’

 

Isto é a Camorra

‘Desde 1979, a Camorra comete em média um assassinato a cada 2,5 dias. Tem faturamento de bilhões de euros anuais, controla parte do tráfico de cocaína na Europa, domina o negócio da extorsão, da agiotagem, da coleta de lixo e do transporte de dejetos tóxicos.

Ela controla crianças de 11 anos, que atuam como sentinelas, abocanha grandes contratos públicos para os quais são feitas licitações na região da Campanha -onde fica Nápoles.

A Camorra também lava dinheiro no setor da construção civil da Espanha, compra políticos, faz prefeitos, administra direta ou indiretamente 40% do comércio de Nápoles, fabrica roupas no mercado negro para grandes empresas, dirige a importação e distribuição de mercadorias falsificadas vindas da China e domina o porto da cidade.’

 

Isto é ‘Gomorra’

‘O livro ‘Gomorra’, publicado na Itália pela editora Mondadori, vendeu mais de 2 milhões de exemplares em seu país e foi traduzido para mais de 30 línguas. Lançado no Brasil no final do ano passado pela Bertrand Brasil (trad. Elaine Niccolai, 350 págs., R$ 39), já vendeu no país 37 mil exemplares.

A adaptação cinematográfica, dirigida por Matteo Garrone, recebeu o Grande Prêmio em Cannes em 2008 e foi vista por 65 mil pessoas nos cinemas brasileiros. Está disponível nas locadoras (Paris Filmes).’

 

ALEMANHA
Lorraine Rossignol

A nova cidade luz

‘Será que Berlim, que brilha cada vez mais no cenário internacional, irá absorver agora o mundo literário da outra margem do Reno, depois de já ter feito o mesmo com a arte e a música? A imprensa alemã se faz essa pergunta desde que a editora Suhrkamp, instalada em Frankfurt desde sua criação, em 1950, oficializou sua transferência para a capital até 2010.

Porém 80% dos colaboradores da editora, incluindo seus acionistas mais importantes, discordaram da mudança. Mas de nada adiantaram suas opiniões: as malas começarão a ser feitas em pouco tempo.

Para Ulla Unseld-Berkéwicz, viúva de Siegfried Unseld (o sucessor de Peter Suhrkamp, morto em outubro de 2002), não há o que discutir.

‘Hoje é Berlim que assume o lugar de laboratório. A Suhrkamp precisa estar em Berlim, portanto’, disse a diretora da casa que sempre se distinguiu pela posição de vanguarda, pelo talento para atrair os maiores escritores e pelo interesse pela literatura estrangeira.

E Unseld-Berkéwicz ainda cita seu marido morto: ‘Aquilo que Berlim talvez ainda não seja hoje, ela vai se tornar: o centro nevrálgico e decisório da cultura alemã’.

Volta dos anos dourados

Frankfurt -que, como centro financeiro, não possui os encantos boêmios de Berlim, mas se orgulha de abrigar a maior feira de livros do mundo- fez de tudo para conservar seu maior nome literário.

Devido às dificuldades econômicas enfrentadas pela Suhrkamp há vários anos, a cidade chegou a doar um novo prédio para sua sede. Em vão.

Essa decisão unilateral corre o risco de não aliviar a imagem de autoritária conquistada por Unseld-Berkéwicz desde que assumiu as rédeas da Suhrkamp, em 2003, em meio a um clima de luta pelo poder.

Enquanto vários colaboradores (como o escritor Martin Walser ou o influente crítico Marcel Reich-Ranicki) já abandonaram o barco da Suhrkamp nos últimos anos, agora foi o escritor suíço Adolf Muschg que resolveu fazer o mesmo.

Só Berlim não esconde sua alegria e seu orgulho. A chegada da Suhrkamp irá assinalar a volta dos ‘anos dourados’ (os anos 1920), quando a capital alemã irradiava sua luz para toda a Europa? É a esperança que nutrem os berlinenses na esteira da queda do Muro.

Vinte anos depois desse marco, ‘a cidade hoje está pronta para voltar a ser a grande metrópole alemã da edição que foi no passado’, assegura o ministro da Economia da cidade-Estado, Harald Wolf.

Quase 200 editoras já teriam se instalado às margens do rio Spree. ‘E isso é apenas o começo’, garante o prefeito da cidade, Klaus Wowereit.

A íntegra deste texto saiu no jornal ‘Le Monde’. Tradução de Clara Allain’

 

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