Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Folha de S. Paulo

DIGITAL

Luciana Coelho

Jornal só para iPad abre debate sobre o valor do conteúdo

Reverências a seu empreendedorismo à parte, a pergunta escancarada pelo recém-nascido ‘The Daily’ é se a tecnologia se tornou mais importante do que o conteúdo em si.

O primeiro jornal exclusivo para iPad estreou nesta semana acompanhado da mesma dose de polêmica e empreendedorismo que permeia tudo o que o empresário Rupert Murdoch faz. Mas, após as primeiras reações positivas, no segundo dia as dúvidas pipocaram.

‘O aplicativo é uma bela execução do que pode ser uma revista em tablet e dá um passo adiante na forma como apresenta o conteúdo’, diz Michael Learmonth, repórter da publicação especializada em mídia e publicidade ‘Advertising Age’.

Já os textos e artigos, avalia, não têm o mesmo brilho. ‘Não vejo nada muito exclusivo além da apresentação. Não há reportagens que você não consiga encontrar em outros lugares.’

Um mantra do jornalismo hoje reza que para conquistar o público e fazê-lo pôr a mão no bolso -US$ 40 ao ano, no caso do ‘Daily’- é preciso ir muito além do noticiário-padrão.

O que torna a mais nova cria de Murdoch um experimento crucial é exatamente se ela vai mostrar que ‘ir além’ pode se restringir ao formato e ao meio de entregar a notícia, mais do que ao teor em si.

‘Ficou claro que a forma como se apresenta o conteúdo é uma parte importante da comunicação’, diz Learmonth, enumerando as contratações de desenvolvedores de aplicativos e programadores pelos principais veículos americanos.

Ainda assim, o fato de o ‘Daily’ dividir suas reportagens em ‘notícias’, ‘fofocas’, ‘opinião’, ‘artes’, ‘aplicativos’ e ‘esportes’ deixou analistas confusos sobre o leitor-alvo -que, na apresentação do jornal, foi definido por seus criadores como ‘todo mundo’.

Tanto em tema quanto em desenho ou linguagem, a capa de sua segunda edição mais lembrava os apelos populares do tablóide ‘New York Post’ do que as reportagens exclusivas do ‘Wall Street Journal’.

‘O ‘Daily’ ainda precisa arrumar um jeito de parecer essencial, para que quem não quiser pagar US$ 0,99 por semana para lê-lo ache que vai ficar por fora das conversas’, escreveu Josh Benton, do laboratório de jornalismo da Fundação Nieman, em Harvard.

Embora pioneiro, o ‘Daily’ terá concorrência pesada. Neste mês o ‘New York Times’ deve lançar seu pacote digital -para ser usado no iPad, no iPhone, em outros tabletes e telefones celulares e no website do jornal (coisa que o ‘Daily’ não tem).

O preço deve ser bem mais alto -a estimativa atual é US$ 240 ao ano. Mas as expectativas quanto à qualidade também são. ‘As pessoas querem notícias mais do que nunca’, afirma Learmonth. ‘A questão é que elas têm mais meios de obtê-las.’

 

CRISE NO EGITO

Diretor da rede árabe Al Jazeera no Cairo é preso

O diretor da sucursal no Cairo da rede de televisão Al Jazeera, Abdel Fattah Fayed, e um dos jornalistas de suas equipe, o repórter Ahmad Yussef, foram detidos pelas forças de segurança egípcias.

A prisão ocorre um dia depois de o escritório do canal ter sido incendiado por forças pró-Mubarak, que quebraram os aparelhos usados para realizar as transmissões.

Na segunda-feira passada, outros seis jornalistas da emissora haviam sido detidos e liberados pouco depois.

‘Esse ataque [ao escritório] parece ser uma nova tentativa do regime e dos seus partidários de impedir que a Al Jazeera cubra os acontecimentos’, afirmou o canal.

Desde o aumento dos protestos contra o ditador Hosni Mubarak, as autoridades do país estão perseguindo os veículos de imprensa.

Um dos alvos principais é a Al Jazeera, emissora sediada no Qatar que conta com a maior audiência no mundo árabe.

No dia 29 de janeiro, seus jornalistas entrevistaram um dos opositores ao regime de Mubarak, o influente clérigo muçulmano Yusuf al Qaradawi.

No dia seguinte, o governo ordenou que a Al Jazeera interrompesse a transmissão. Ao mesmo tempo, o sinal em algumas regiões do Oriente Médio foi simplesmente cortado.

 

TELEVISÃO

Keila Jimenez

O ‘prêt-à-porter’ de Jacques Leclair

Nem a pinta de toureiro do rival Victor Valentim (Murilo Benício) consegue roubar as atenções do guarda-roupa do estilista Jacques Leclair (Alexandre Borges), no remake de ‘Ti Ti Ti’, da Globo.

Com camisas abertas de bicheiro, cabelos esvoaçantes e lenços de seda no pescoço, ele se mostra ‘cafajeste como ele é’, diz Marília Carneiro, figurinista da Globo.

A inspiração dela para compor o look do personagem veio do estilista Dener, morto em 1978, considerado pioneiro na moda brasileira.

Mas o ‘caminho’ do personagem, ela conta, foi descoberto no Harlem, em Nova York, onde comprou as primeiras peças de Jacques.

O restante do guarda-roupa saiu de uma loja nos Jardins, em São Paulo. ‘A ideia é fazer uma caricatura dos estilistas’, diz Marília sobre os exageros do personagem.

Entre as peças, há camisas de seda, calças de couro, calças brancas -sempre justíssimas- e lenços, marca registrada do personagem.

‘O Jorge [Fernando, diretor] é criativo e bota o lenço no personagem até com cueca e na praia’, conta Marília.

Mas Jacques só é Jacques com seus paletós extravagantes, terno de jeans e sapatos de verniz e com escamas.

E o exagero conquistou fãs. Jaquetas e acessórios do estilista estão entre os mais pedidos pelo público na CAT (Central de Atendimento ao Telespectador) da Globo.

Mérito de Marília e de Alexandre Borges, que fez até dieta para ficar bem no figurino abusado do estilista.

‘Ele embarcou no personagem e topou tudo. Hoje em dia digo: ‘Menos, Alexandre! Pelo amor de Deus!’, conta Marília, rindo.

19 pontos

Foi a média na estreia da 2ª temporada de ‘Amor & Sexo’ (Globo), na terça-feira (1º) A estreia da primeira temporada, em 2009, marcou 18 pontos

5 pontos

Foi a média do reality ‘Solitários’ (SBT), no dia 2 É o pior índice desde a estreia do programa, no dia 5 de janeiro, quando marcou 6 pontos

@IngridGuimaraes

Me vendo em ‘Por Amor’! Época de ralação… Pelo menos eu servia café pra Vera Holtz.

a atriz Ingrid Guimarães comentando suaparticipação na novela, que é reprisadano canal pago Viva

@receribelli

Saudades dessa época, quando os humoristas sabiam ESCREVER TEXTO DEHUMOR. Hojemuitos só conseguem fazer rir do outro.

a jornalista Renata Ceribelli comentando sobre um vídeo do YouTube do extintoprograma ‘TV Pirata’ (Globo)

@cortezrafa

Empoucos dias morreram John Herbert, Geórgia Gomide, Gilberto Scarpa, Nildo Parente e, agora, o vocalista do Fat Family. Sonia Abrão tá radiante!

o ‘CQC’ (Band) Rafael Cortez alfinetando a apresentadorado ‘A Tarde é Sua’ (Rede TV!)

DA MÚSICA AOS MORADORES DE RUA

Aos 22 anos, Sophia Reis, filha do músico Nando Reis, encara uma nova experiência na TV e na ruas.

Após alguns testes, ela foi escolhida para substituir Rosanne Mulholland no semanal ‘A Liga’, jornalístico da Band que estreia nova temporada em março.

‘Não me considero repórter ou apresentadora. Na ‘Liga’ somos nós mesmos. O que importa são nossas impressões’, diz.

Diferente do glamour de VJ da MTV, onde ficou por dois anos, Sophia já começou na nova atração entrevistando moradores de rua e catadores de lixo.

‘Não senti medo. Senti foi curiosidade de entender a vida dessas pessoas.’

com SAMIA MAZZUCCO

 

Clarice Cardoso e Vitor Moreno

William Shatner vive pai rabugento em série

Gostem ou não, Ed (William Shatner) vive conforme as próprias regras. Usa o tempo todo o mesmo colete de pesca, gosta das coisas sempre iguais e fala tudo o que pensa -doa a quem doer.

É dono de uma lógica direta, que pode beirar o absurdo. Com ela, garantiu fama ao escritor Justin Halpern e piadas à série criada por ele, ‘$#*! [lê-se ‘blip’] My Dad Says’, que estreia amanhã no Warner.

Ed é inspirado no pai de Halpern, rapaz que começou a se tornar célebre quando voltou a morar com a família.

Ele tinha acabado de levar um pé na bunda da namorada e, no Twitter, passou a compartilhar com os amigos frases que ouvia em casa.

De repente, o perfil @shit mydadsays angariou 1 milhão de seguidores, deu origem ao livro ‘Meu Pai Fala Cada M*rda’ (Sextante, R$ 19,90, 144 págs.) e chegou aos ouvidos de David Kohan e Max Mutchnick, criadores de ‘Will & Grace’.

Foi graças à dupla que o pai de Justin, Sam, tornou-se o Ed da ficção, interpretado por William Shatner, 79.

Importante nome da TV americana, Shatner se tornou figura cult ao dar vida ao capitão Kirk em ‘Jornada nas Estrelas’ (1966-1969) -até livros de ficção inspirados naquele universo ele escreveu.

Mais tarde, levou o Globo de Ouro e o Emmy pela atuação em ‘Boston Legal – Justiça sem Limites’ (2004-2008).

Hoje, o ator, que tem certa fama de ranzinza entre jornalistas, parece confortável no colete acinzentado de Ed.

‘A maioria das pessoas pega a saída mais fácil e disfarça o que pensa. Gosto do Ed porque ele fala: ‘Vou te dizer o que penso’. E diz mesmo. É uma lição de vida’, afirmou à Folha, por telefone.

A série começa como na vida real: quando Henry (Jonathan Sadowski), desempregado, volta a viver com Ed. ‘Houve uma mudança cultural nos EUA e não há mais vergonha no fato de um filho morar com os pais depois de adulto. Na formatura do meu neto, o orador falou de como todos ali passavam por isso. Meu programa reflete essa pequena revolução.’

O fato de acolher os dois filhos e a nora em casa, diz Shatner, é um indício da boa índole que Ed sempre expressa. ‘Não seria horrível se ele fosse malvado com as pessoas e ainda tivesse um coração ruim? Ele é rude, age sem pensar, mas, no fundo, tem um bom coração. E é quando ele tenta consertar o que fez que garante risadas.’

Shatner diz admirar a filosofia do personagem, mas afirma que ela não é para qualquer um. ‘Ed não faz rodeios. Eu entendo como deve ser agradável fazer isso, mas estou exposto demais à opinião pública para me expressar tão livremente’, diz, para logo depois encerrar a conversa no estilo de Ed: ‘É isso?

Acho que temos mais entrevistas na sequência’.

 

Mauricio Stycer

Na TV, negro vive no país das maravilhas

André Gurgel, um dos protagonistas de ‘Insensato Coração’, é um designer famoso. Bem-sucedido, é a principal estrela de um escritório de design e sofre assédio para prestar seus serviços para uma concorrente.

Premiado e paparicado, é objeto da curiosidade da imprensa, aparece em capas de revistas e cultiva a fama de mulherengo.

Em um único capítulo da novela, sem fazer esforço, apenas exalando seu charme, André Gurgel foi capaz de conquistar três mulheres.

Já levou uma mulher para a cama de seu apartamento, por insistência dela, e a dispensou depois do sexo sem deixar que ela dissesse qual era seu nome.

Até agora, todas que cruzaram seu caminho, fossem clientes, repórteres, colegas de academia ou paqueras da balada, quiseram transar com ele.

Para conquistar a única mulher que resiste um pouco a ele, Carol (Camila Pitanga), contratou os serviços de um iate e a levou para passear em alto-mar.

Ao final do encontro, por conta de um acidente, foi a uma delegacia onde a irmã de Carol estava detida. Exigiu que um policial avisasse o delegado da sua presença e, isso feito, conseguiu que a garota fosse liberada.

Em pelo menos dois capítulos, André foi visto nu tomando banho. A primeira vez, depois do passeio de iate e da carteirada na delegacia.

Enquanto Carol se banhava para dormir, em casa, André tomava uma chuveirada antes de ir para a balada conquistar mais uma mulher.

Na segunda vez, o banho ocorreu depois de dispensar uma moça e antes de sair com outra, que o aguardava.

Não bastassem todas as suas qualidades e talentos, ele ainda é negro. Vivido por Lázaro Ramos, o personagem não sofre qualquer preconceito ou discriminação por conta disso. Passados 15 capítulos, não houve uma única cena, um único personagem que mencionasse a questão racial na trama.

André Gurgel, em resumo, é um fenômeno. Mais do que viver num país em que não há racismo, transita pelas mais altas esferas como se fosse invisível. Como em ‘A Roupa Nova do Rei’, não há ninguém ao redor do personagem com coragem de dizer que ele é negro.

Gilberto Braga e Ricardo Linhares usaram esse mesmo artifício com o casal gay de ‘Paraíso Tropical’ (2007).

Como observou o colega Alcides Nogueira, ‘podia ser tanto um casal de gays quanto um casal de símios, porque não era nada’.

Ao tratarem como natural o que não é natural, os autores podem até ter a intenção de transmitir uma mensagem de cunho educativo: ‘Assim é que deveria ser, assim é que os negros deveriam ser vistos, assim é que os gays deveriam ser tratados’.

Como na fábula de Hans Christian Andersen, porém, correm o risco de ser confrontados por alguma criança capaz de enxergar que ‘Insensato Coração’ se passa no país das maravilhas.

MAURICIO STYCER é repórter e crítico do UOL.

 

Vanessa Barbara

100% de aproveitamento

DOS 19 PARTICIPANTES do ‘Big Brother Brasil 11’ (Globo, 22h15, 12 anos), mais da metade mora com os pais. Há sete modelos, três dançarinos e um nefrologista, que dificilmente terá oportunidade de pôr seus talentos em prática.

É gente que passará três meses confinada numa casa, sem fazer absolutamente nada de útil.

Considerando-se que a Globo paga salário a todos e até agora não se atinou com o franco desperdício de mão de obra, aqui vão as minhas sugestões para a reformulação do reality show.

Em vez de eliminar dois participantes de uma vez e trocá-los por outros dois, o que matematicamente dá na mesma, seria melhor enxugar a folha de pagamento e demitir cinco por justa causa. Os restantes acumulariam funções.

Em lugar de promover festas com bebidas energéticas, orgias de picolés e sessões de cinema para o líder, Boninho deveria instituir uma rotina de 12 horas de trabalho por dia, com linhas de produção para confeccionar clones da boneca Maria Eugênia, mascote do ex-BBB Kleber Bambam.

O setor administrativo da emissora poderá sair de férias ou delegar o excesso de serviço aos ‘brothers’.

Mesmo Bial pode exigir que um dos participantes (sugestão: Diogo) o substitua.

A alta produtividade dos confinados não prejudicará a audiência, pois todas as tarefas serão obrigatoriamente executadas de biquíni. As conversas à beira da piscina, por exemplo, acontecerão enquanto os envolvidos descascam uma pilha de batatas. Durante a labuta, os ‘brothers’ poderão fofocar à vontade, espalhar maledicências, debulhar-se em lágrimas etc.

Entrará para a história a cena em que Rodrigão larga o maçarico e vai abordar a colega Paula, que pede só um minuto para concluir sua ânfora em argila.

O paredão será literal, quando as futuras celebridades terão que erguer um muro de tijolos resistente (paredão duplo ou triplo), sob a supervisão de um empreiteiro famoso.

O líder da semana ficará ao fundo, gritando REMEM! REMEM!, e o anjo irá ao confessionário com um padre de verdade, a fim de garantir a salvação das almas.

Todos doarão à comunidade seu tempo, sangue, medula óssea e, quiçá, um rim. Quando essa hora chegar, finalmente encontraremos um uso para o nefrologista residente.

 

Ferreira Gullar

O melhor que se faz é rir

FOI UMA pancada difícil de suportar a notícia de que meu amigo e parceiro Dias Gomes (1922-1999) havia morrido naquela noite de maio de 99, em São Paulo, num desastre de automóvel. Na verdade, o chofer do táxi que o levava -ele e Bernadete, sua mulher- para o hotel fez uma manobra insensata e foi abalroado por um ônibus.

Mas por que em São Paulo? É que fora assistir à estreia de uma peça teatral e, após o espetáculo, decidira jantar num restaurante próximo. Terminado o jantar, ele pediu que lhe providenciassem um táxi. O chofer, que parecia bêbado, dobrou onde não podia, colidiu com o ônibus e Dias, impelido para fora do carro, bateu com a cabeça numa mureta que separava as duas pistas. E tudo acabou para ele.

Lembro com frequência desses detalhes que determinaram a tragédia. E penso: se em vez daquele chofer tivessem chamado outro, Dias ainda estaria aqui, entre nós, vivo, brincalhão, escrevendo para a televisão e para o teatro. Mas como por mero acaso o chofer foi aquele e não outro, e também por acaso, naquele exato momento, veio o ônibus em alta velocidade… Seria mais fácil aceitar se ele tivesse morrido num hospital, vítima de uma doença incurável.

Fomos amigos e parceiros. A primeira parceria deu-se em ‘Dr. Getúlio, Sua Vida e Sua Glória’ (1968). Ele já havia sacado a ideia básica da peça, que teria a estrutura narrativa de um desfile de escola de samba. Aliás, ele me chamou precisamente por causa de minha proximidade com as escolas de samba e porque a peça teria, como eixo, um samba-enredo, coisa que ele não saberia fazer.

Essa parceria nos aproximou tanto que, anos depois, quando voltei do exílio, ele, que era então roteirista da TV Globo, me convidou para colaborar na roteirização de seriados, minisséries e novelas.

Devo dizer que foi ele quem me ensinou a escrever para a televisão, já que minha experiência até então era apenas teatral. Esse convite, porém, era diferente daquele primeiro: agora, seu propósito era conseguir-me um meio de suprir as necessidades da família, agravada pela doença de dois filhos.

E foi também por isso que aceitei o convite, uma vez que escrever para a televisão não fazia parte de meus planos. Pelo contrário. Só então, por razões profissionais, passei a ver novelas e aprender os macetes necessários à sua roteirização. Sempre deixei claro que aquela não era a minha praia e isso talvez explique o fato de que, alguns meses após a morte do Dias, fui demitido. Era ele quem garantia minha permanência ali, exigindo me ter como parceiro.

Mas os anos que trabalhei na televisão muito me ensinaram de teledramaturgia e sobre o próprio veículo. Ao ser demitido, levei um susto, mas, ao constatar que sobrevivera 40 anos sem aquele salário, ganhei alma nova e convidei a Cláudia para um jantar comemorativo de minha demissão. Como sempre fui demitido dos empregos que tive, sei que ser demitido sempre faz bem.

Mas voltemos ao Dias, a quem tanto deve nossa teledramaturgia. Trabalhando com ele, pude observar o seu domínio da técnica narrativa e a capacidade de ir fundo nos problemas, de que são exemplos ‘Roque Santeiro’ (1985), ‘O Bem-Amado’ (1973) e ‘Saramandaia’ (1976), entre muitas criações suas.

É que, por trás do teledramaturgo, estava o que Dias essencialmente era: homem de teatro. Algumas de suas criações para a televisão foram originalmente obras teatrais. Apesar dessa preciosa contribuição, inventando personagens que passaram a integrar nosso cotidiano, nenhum teatro ou logradouro público do Rio, cidade onde viveu a maior parte de sua vida, traz seu nome. Por quê, não sei.

Mas não importa. Ele se mantém presente na memória das pessoas que se comoveram com suas histórias e se identificaram com seus personagens. A toda hora, ouvem-se menções a Odorico Paraguaçu, à viúva Porcina, a Roque Santeiro e aos arapongas.

Uma das suas melhores qualidades era o senso de humor, cada vez mais raro em nossas telenovelas. Nele, sobrava. Quando surgiram duvidosos cursos para ensinar teledramaturgia, comentou, brincalhão: ‘Quem sabe faz e quem não sabe ensina’.

 

Roberto Kaz

Divã remoto

Na última quinta-feira, Sônia Abrão, apresentadora do programa ‘A Tarde é Sua’, da Rede TV!, brindou seu público com novidades sobre a acusação de assassinato que envolve o ex-goleiro Bruno.

Como de praxe, ela estava acompanhada do psicólogo Haroldo Lopes, que, após seis meses de comentários semanais sobre o assunto, preferiu se abster: ‘Estou tão confuso quanto vocês. Não sei mais nada a respeito do caso Eliza Samudio [ex-namorada do jogador, supostamente assassinada por ele].’

Para saber quem são as pessoas que exercem o saber psicológico na TV, a Folha entrevistou alguns profissionais do ramo. Ouviu de todos um mantra comum (e nem sempre verdadeiro): ‘Não comento casos específicos. Falo de situações genéricas.’

Formado em psicologia pela Universidade de Santo Amaro, Haroldo Lopes conheceu Sônia Abrão há 15 anos, no júri do programa Flávio Cavalcanti. Não se largaram mais. ‘Acompanhei-a em programas de rádio, até chegarmos à TV’, conta.

SESSÃO A R$ 200

Quando não está em estúdio (‘Fico à disposição de segunda a sexta, das 14h às 17h’), atende no bairro de Moema. Cobra, em média, R$ 200 a sessão. ‘Sempre atendo um paciente de graça. É missão minha com Deus.’

Conta que a exposição na TV foi benéfica ao consultório: ‘Passei a ter mais clientes, não vou negar. Um paciente veio do Ceará para passar 15 dias sendo atendido por mim’. Diz que, no ar, a abordagem ‘deve ser a mais superficial possível’. ‘Sempre digo ‘partindo do princípio de que é um homicida’, e aí faço minha abordagem’.

Alexandre Rivero, que já participou do ‘Hoje em Dia’ e do ‘Superpop’, atende em uma casa no Ipiranga, por R$ 250. Seu consultório tem reproduções de quadros do renascentista Rafael (1483-1520) e uma Bíblia aberta, rente à sua poltrona. Em um episódio recente do programa ‘Domingo Espetacular’, da Record, ele aparecia lendo um livro sobre hipnose, para depois opinar sobre um caso de homicídio: ‘Não me parece um perfil psicopata. O psicopata não tem afetividade, não tem valores’.

Egresso da Universidade de São Marcos, Rivero acredita que as aparições ‘dão credibilidade ao trabalho’, embora sejam mal vistas: ‘A academia tem o receio de que os programas populares manchem uma pureza doutrinária. Mas grande parte do sustento científico vem do povo, através dos impostos. Esse conhecimento tem que retornar a eles.’

A opinião é compartilhada por Jacob Goldberg, que, além de ter colaborado com os telejornais da Globo, já apareceu nos programas de Ana Maria Braga, Márcia Goldschmidt e Clodovil Hernandes (1937-2009).

‘Muitos intelectuais se encastelam na universidade, considerando as aparições na TV narcísicas. Mas sempre ocupei todos os espaços possíveis para contestação e crítica’, diz, em seu consultório adornado com reportagens publicadas a seu respeito.

Goldberg atende em Higienópolis, bairro de endinheirados; cobra R$ 200 pela consulta. Acredita que, no seu caso, a exposição é prejudicial: ‘Se participo de um programa trash, ouço reclamações dos meus clientes durante um mês. Mas o trash também é uma realidade social. Não tenho o menor constrangimento de aparecer na Márcia Goldschmidt’.

Ildo Rosa da Fonseca, cativo do ‘Casos de Família’, do SBT, estreou na televisão cinco anos atrás, em um programa sobre o Dia da Sogra. Ganha R$ 500 por episódio gravado. Entre os psicólogos entrevistados, ele é o único a ter cachê fixo. Formado no Instituto Metodista, Fonseca também apresenta uma atração de rádio, o ‘Café com Cristo’, na Boa Nova AM.

Seu consultório, na Vila Mariana, tem uma coleção de DVDs do seriado ‘Sex and the City’. Explica: ‘Trabalho com terapia de casal. Quando o tema não vem, coloco o DVD e faço aparecer’.

O artifício não é necessário quando está gravando. Em um episódio recente do ‘Casos de Família’, Fonseca opinou sobre um conflito amoroso: ‘Moacir, você é uma pessoa extremamente sedutora, como qualquer criança. Mas não é sedutor como homem. Por isso está sozinho’.

Em dezembro, Fonseca e Atahy d’Amico (também psicóloga do ‘Casos de Família’) foram convocados a se apresentar ao Conselho Regional de Psicologia. ‘Tomamos café, foi gratificante. Para eles, é bom que divulguemos a psicologia’, disse ele.

Já Graça de Carvalho Câmara, conselheira da entidade, disse que o encontro teve caráter preventivo. ‘É antiético fazer um diagnóstico no ar. Você precisa de algumas sessões para isso. Recebi-os para dizer que a postura deles era inadequada e que, se não fosse alterada, poderia resultar em processo ético.’

Atualmente, o Conselho move 18 processos ligados à aparição de psicólogos em programas de TV. Eles correm em sigilo. Nenhuma licença foi cassada.

 

WIKILEAKS

Claudia Antunes

Segredos de liquidificador

RESUMO

O escândalo dos vazamentos de documentos secretos do governo dos EUA pelo WikiLeaks ganha novos desdobramentos com a publicação, na semana passada, de livros de três dos veículos escolhidos para difundir o material, revelando rixas e animosidades entre jornalistas e Julian Assange, o fundador do site.

***

TUMULTUADA e desconfortável, a associação entre alguns dos principais veículos da imprensa internacional e a guerrilha de informações proposta pelo fundador da organização WikiLeaks, Julian Assange, foi ainda assim proveitosa para todos os envolvidos.

A partir de julho do ano passado, foram seis meses de manchetes estufadas com documentos militares e diplomáticos dos EUA repassados pelo WikiLeaks. Assange, alçado a um polêmico estrelato, assinou um contrato equivalente a R$ 4,3 milhões para escrever sua autobiografia, que será publicada em abril (a editora brasileira será a Companhia das Letras).

ROUPA SUJA

O conteúdo dos documentos, entretanto, submergiu no monte de roupa suja lavada em público entre os dois lados. Os sócios estremecidos de Assange acham que ele precisa lavar literalmente as dele (‘ele fedia como se não tomasse banho há dias’, escreveu o editor do ‘Times’), e fazem balanços da relação em livros lançados na última semana, além de incluir as reportagens feitas a partir dos vazamentos.

Os livros foram editados pelo ‘Guardian’ britânico, o ‘The New York Times’ e a revista alemã ‘Der Spiegel’, formação inicial de um grupo que seria ampliado e viria a incluir a Folha. Os três são, em essência, aliados na disputa que de início opôs Assange ao ‘Times’, mas com diferentes ênfases. Em contraponto provisório, saiu nos EUA ‘The Age of WikiLeaks: from Collateral Murder to Cablegate’ [A Era do WikiLeaks, do Assassinato Colateral ao Escândalo dos Telegramas; US$ 11,95]. O autor, Greg Mitchell, é da revista de esquerda ‘The Nation’ e mantém um blog em defesa de Assange. A edição do autor -justo na era da espionagem cibernética- é a única não disponível em versão eletrônica. Tampouco está à venda na Amazon, que aderiu ao boicote ao WikiLeaks, sob pressão de congressistas conservadores.

THE GUARDIAN

David Leigh e Luke Harding, do ‘Guardian’, contam em ‘WikiLeaks – Inside Julian Assange’s War on Secrecy’ [WikiLeaks -Dentro da Guerra de Julian Assange ao Secretismo; ebook: US$ 13,79] que a associação com o australiano de 39 anos foi iniciativa do repórter veterano Nick Davies.

Assange registrou o domínio WikiLeaks em 1999. O diário britânico, identificado com a social- democracia trabalhista, havia publicado informes sobre corrupção no Quênia conseguidos por ele quando viveu no país africano, enfronhado em ONGs que participaram do Fórum Social Mundial de 2007. Em junho de 2010, Davies iniciou sua própria caça a Assange assim que leu a notícia de que o hacker andarilho estava sendo procurado pelo Departamento de Defesa americano. Era uma consequência da prisão do analista de Inteligência do Exército Bradley Manning, que teria copiado 260 mil páginas de documentos confidenciais quando servia no Iraque.

O australiano divulgara dois meses antes o vídeo em que os tripulantes de um helicóptero Apache americano atiram contra supostos terroristas em Bagdá e matam 12 pessoas, entre elas um fotógrafo e um motorista da agência de notícias Reuters. O vídeo, feito pela câmera do Apache em 2007, foi um hit na internet. Mas não teve o efeito político que Assange esperava. Em parte porque a Reuters, que já havia recebido do governo americano uma versão editada das imagens, decidiu não fazer muito barulho.

Em parte também, aponta o ‘Guardian’, por causa do título dado por Assange, ‘Assassinato Colateral’. Referência a ‘dano colateral’, eufemismo para a morte de civis em bombardeios, era ‘tendencioso’ e ‘leitores e espectadores não gostam de ser encurralados num ponto de vista’. Davies disse a Assange que a imprensa tradicional aumentaria o impacto da divulgação do material em poder do WikiLeaks, além de facilitar sua contextualização. Ele propôs incluir o ‘Times’ na sociedade, dizendo que a maior proteção à liberdade de expressão nos EUA evitaria que a publicação fosse embargada por ordem judicial.

RIXA

O australiano topou e incluiu a ‘Spiegel’ no primeiro lote do material, sobre a guerra no Afeganistão. Eram boletins repletos de siglas e jargões militares. Quando foram publicados, no fim de julho, começou a rixa entre Assange e o ‘Times’. Primeiro, porque o jornal foi o único que não incluiu em seu site um link para o WikiLeaks. O argumento era o de que o grupo poderia não ter o cuidado de preservar os informantes, que correriam risco de morte.

Depois, por causa de um perfil de Bradley Manning. Para Assange, o texto ‘psicologizava’ a decisão do soldado de 23 anos de copiar os documentos secretos, ao enfatizar seu histórico de desagregação familiar e sua condição de gay, quando ainda vigorava nas Forças Armadas a regra de ‘não pergunte, não conte’. Por fim, em outubro, um dia depois do início da publicação da segunda remessa do material, sobre a guerra no Iraque, o ‘Times’ publicou um perfil do fundador do WikiLeaks que este considerou ‘calunioso’.

No mês seguinte, quando estava para sair a última e maior remessa, com despachos de embaixadas e consulados americanos em quase todo o mundo, Assange tentou excluir o ‘Times’ da sociedade. Mas o ‘Guardian’ já havia passado os telegramas ao jornal americano. Alegou que o acordo de exclusividade havia sido rompido quando um simpatizante do WikiLeaks entregou uma outra cópia a uma jornalista freelancer.

Assange acusou os jornais de ‘roubo’ e disse que a cópia entregue ao ‘Times’ era ilegal – ‘sem dar- se conta de que só havia cópias ilegais’, assinala a equipe da ‘Spiegel’ em seu livro ‘Staatsfeind WikiLeaks’ [WikiLeaks, Inimigo Público Número Um; 336 págs.; € 14,99].

O fundador do WikiLeaks conformou-se, não sem antes ampliar sua rede, incluindo ‘Le Monde’ e ‘El País’. Também decidiu distribuir despachos a veículos de fora de EUA e Europa. Em dezembro, Assange acabaria rompendo com Nick Davies, seu contato original no ‘Guardian’, quando tornou-se ele próprio alvo de um vazamento.

O repórter publicou a íntegra dos depoimentos à polícia sueca das duas mulheres que o acusam de crimes sexuais. Por causa do processo, ele espera o julgamento da extradição pedida pela Suécia na mansão de um improvável protetor, Vaughan Smith, ex-capitão de um regimento de elite e dono do clube Frontline, em Londres, ponto de encontro de jornalistas.

NEW YORK TIMES

A partir dessa sequência de fatos mais ou menos consensual, a avaliação dos envolvidos se diferencia. No texto publicado há 11 dias pelo ‘Times’ e que abre ‘Open Secrets: WikiLeaks, War and American Diplomacy’ [Segredos Abertos: WikiLeaks, Guerra e Diplomacia Americana; ebook: US$ 8,84], o editor-executivo do jornal, Bill Keller, é muito duro com Assange.

Ele o chama de ‘evasivo, manipulador e volátil’. Diz que demonstrava ‘desprezo’ pelo governo dos EUA e que era visto pelo jornal como ‘fonte, e não parceiro’. Relata ‘indiferença’ do WikiLeaks quanto à sorte de pessoas que estariam ameaçadas caso os seus nomes viessem a público.

O editor do ‘Guardian’, Alan Rusbridger, é mais flexível. Diz que Assange não cabe fácil num papel, podendo ser ‘fonte, intermediário ou editor’. Avalia que as rusgas mútuas ‘foram, em sua maioria, superadas’. Conta que o hacker, no final, até se ofereceu para negociar a edição dos documentos com o Departamento de Estado -oferta que foi recusada.

‘Não foi demonstrado nenhum prejuízo à vida de ninguém’, diz. O livro julga ‘revoltante’ que tal suspeita seja lançada ‘por generais que tinham galões de sangue de civis em suas mãos’.

REAÇÕES

O editor britânico mata a charada ao contrastar as reações do público de cada jornal. Enquanto os leitores do ‘Guardian’ pediam mais vazamentos, nos EUA ‘a discussão foi amarga e partidária, ensombrecida por ideias diferentes sobre patriotismo’.

Keller acena para esse contraste ao enfatizar o ‘compromisso pessoal’ dos jornalistas do ‘Times’ com a segurança nacional e sua proximidade do establishment da política externa americana. Ele antecipou para o Departamento de Estado os despachos que seriam publicados, medida que o parceiro britânico não segue.

A decisão sobre o enfoque da notícia também atendeu a ‘musas’ distintas, escreve Keller. A primeira reportagem do ‘Guardian’ destacou as mortes de civis afegãos; a do ‘Times’, o jogo duplo do serviço secreto do Paquistão em relação ao Taleban.

O editor do ‘Times’ diz que as mortes não eram novidade. Tampouco, diga-se, a cumplicidade paquistanesa com os fundamentalistas, tão velha quanto a iniciativa americana de armar combatentes religiosos contra a ocupação soviética do Afeganistão, já se vão mais de 30 anos.

Keller conta, a propósito dessa reportagem, que Richard Holbrooke, enviado dos EUA à Ásia Central e que morreu há dois meses, sabia o que seria publicado e planejava fazer ‘do limão uma limonada’: usaria a informação para pressionar o Paquistão a um alinhamento mais fiel a Washington.

Como o ‘Guardian’ e o ‘Times’, a ‘Spiegel’ alfineta os parceiros. Diz que eles tinham um plano para deixar a revista de fora da divulgação dos telegramas diplomáticos. Insinua que o perfil que o ‘Times’ fez de Assange, citando ‘especialmente seus inimigos’, foi produzido para aplacar os críticos à direita do diário americano.

BALANÇO

No meio de tanta intriga, que balanço os livros trazem do conteúdo do megavazamento? Para começar, contagem feita pelo ‘New York Times’ mostra que a maioria dos mais de 250 mil documentos obtidos pelo WikiLeaks não é confidencial. Cerca de 11 mil são ‘secretos’. E apenas cerca de 3.000, pouco mais de 1% do total, foram divulgados até agora.

Assange, antes um anarquista que defendia o despejo bruto do material, teria se dado conta das virtudes da edição. De todo modo, Keller e Rusbridger contestam os bocejos dos que avaliam que tudo já era sabido. ‘As notícias avançam em centímetros, não em saltos. [Os documentos] trouxeram nuances, textura e drama’ mesmo ao já conhecido, escreve Keller.

Frank Rich, colunista do jornal, dá razão a Assange e a Daniel Ellsberg, o ex-funcionário que há 40 anos vazou ao ‘Times’ os papéis do Pentágono. Ambos equiparam os documentos de agora aos de então. Ele lembra que nos anos 70 a ofensiva de Richard Nixon (1969-1973) contra a imprensa teve mais atenção do que o conteúdo dos documentos sobre o Vietnã. ‘Também se dizia que não mudariam o curso da guerra, mas foram um marco na retirada em câmera lenta’ das forças dos EUA do sudeste asiático, diz.

David Sanger, repórter do ‘Times’, diz que os despachos são prova do ‘pragmatismo extremado’ da diplomacia, mas admite que Assange ‘não está totalmente errado’ ao alegar que eles revelam ‘a contradição entre a persona pública americana e o que se diz a portas fechadas’. Sanger vê nos documentos um retrato realista dos movimentos da superpotência num mundo que considera ameaçador, depois de duas guerras ‘que abalaram sua influência’.

O material mostra que a lógica dicotômica transferiu-se da Guerra Fria à guerra ao terror. Daí os relatos confidenciais sobre desmandos de ditadores aliados, como o tunisiano Zine el Abidine Ben Ali, deposto em janeiro, e o egípcio Hosni Mubarak.

O ‘Guardian’ e o ‘Times’ apontam possível influência desses telegramas sobre as rebeliões populares nos países árabes, mas não como fator determinante. O que fica claro é que autocratas de todo o mundo desenvolveram a arte de dizer aos emissários americanos o que eles gostariam de ouvir.

EUROPA

Mas é na relação com as democracias da Europa que as contradições americanas ficam mais evidentes. Os despachos detalham a ofensiva do governo Barack Obama para suspender a investigação no Judiciário da Espanha de seis funcionários de George W. Bush (2001-09) acusados de criar a justificativa legal para a tortura de suspeitos de terrorismo.

Na Alemanha, a embaixada faz ameaças e consegue barrar o mandado de prisão e o pedido de extradição de agentes da CIA acusados do sequestro ilegal de Khaled Masri. Alemão de origem libanesa, Masri foi levado ao Afeganistão e solto na Albânia depois que seus captores descobriram ter apanhado o homem errado.

Nos telegramas de Brasília, chamam atenção as disputas internas no governo Lula, sobre temas como a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) e o programa nuclear. Divergências entre o Itamaraty, a Fazenda e a Defesa são expostas à embaixada, que as utiliza para promover suas políticas.

LIQUIDIFICADOR

É possível que os vazamentos tenham exposto segredos de liquidificador, que berram sob as aparências. Mas seria imprudente subestimar o número dos que não ouvem -por desinformação, credulidade ou interesse.

O livro do ‘Guardian’ é o que dá maior destaque ao soldado Manning, que emerge como a figura mais trágica da narrativa. Confinado há seis meses numa cela de 1,8 m por 3,6 m nos EUA, Manning teria sido denunciado por Adrian Lamo, hacker de Boston com quem trocou mensagens angustiadas quando estava no Iraque.

‘Deus sabe o que acontecerá agora: espero que uma discussão mundial, debates e reformas. Mas pode ser que eu seja apenas jovem, ingênuo e estúpido’, diz o soldado, segundo transcrição publicada pela revista ‘Wired’.

 

Fernando Rodrigues

Folha e WikiLeaks: como se estabeleceu o contato

EM MEADOS DE NOVEMBRO do ano passado, recebi recados por e-mail e pelo Facebook. A jornalista Natalia Viana queria fazer um contato. ‘É algo muito importante’, escreveu. Sugeria necessidade de sigilo. Em outra mensagem, falou que o assunto se relacionava ao ‘pessoal’ de Londres e ao jornalista britânico Gavin MacFayden. Entendi na hora.

Conheci MacFadyen há alguns anos. Participamos de reuniões internacionais, desde 2003, para criar a Global Investigative Journalism Network (em português, Rede Global de Jornalismo Investigativo, bit.ly/xAQ5w).

Os pontos se juntaram. MacFadyen já havia me dito ser amigo de Julian Assange, o criador do WikiLeaks. Em uma das oportunidades em que Assange foi procurado pela polícia, MacFadyen escondeu-o em seu apartamento, em Londres. Parecia óbvio que o assunto era relacionado ao WikiLeaks -a mídia internacional estava inundada de informações sobre os próximos vazamentos.

A Folha se beneficiou de uma percepção tardia de Julian Assange. Depois de ter firmado um acordo de exclusividade com cinco publicações -os jornais ‘The New York Times’, ‘The Guardian’, ‘Le Monde’, ‘El País’ e a revista ‘Der Spiegel’-, decidiu divulgar de forma regionalizada os telegramas confidenciais e secretos do Departamento de Estado dos EUA.

Na avaliação de Assange, os meios de comunicação acima do Equador dariam pouco destaque a eventos relacionados a países como o Brasil. Mas havia um problema na nova estratégia: o WikiLeaks se comprometera com as publicações citadas. Se repassasse o material para a Folha, estaria descumprindo um trato.

A solução foi negociar por partes. Escolheu-se um lote de telegramas de interesse do público brasileiro. As publicações contatadas pelo WikiLeaks foram informadas que a organização divulgaria esses documentos em seu site em determinada data, com textos contextualizando o assunto.

Foi assim que a Folha recebeu antecipadamente os telegramas usados na reportagem ‘Brasil disfarçou luta antiterror, dizem EUA’, publicada em 29 de novembro de 2010. O jornal foi o sexto órgão de imprensa no planeta a ter acesso aos dados com exclusividade. O acordo durou pouco mais de uma semana, com a Folha recebendo com antecedência os telegramas para fazer a apuração necessária. Havia uma troca frenética de e-mails antes da decisão sobre quais telegramas seriam liberados e quando poderiam ser publicados.

Durante a negociação para que a Folha recebesse os telegramas, a jornalista Natalia Viana, intermediária no Brasil, evitava escrever ‘WikiLeaks’ em suas mensagens. Era sempre ‘a organização’.

Achei curioso. O procedimento seria para evitar que os e-mails fossem rastreados pelo seu conteúdo. Não me pareceu muito eficaz. No Brasil, qualquer um poderia grampear meu telefone com muita facilidade -e eu só falava de WikiLeaks o tempo todo, discutindo o assunto com a Direção da Folha, em São Paulo. Na dúvida, segui o ritmo. Só me referia ao WikiLeaks em e-mails como ‘a organização’.

Em 5/12, um domingo chuvoso, o WikiLeaks decidiu ampliar sua parceria no Brasil. A Folha foi informada de que ‘O Globo’ também receberia o lote de telegramas nos quais havia menção sobre o Brasil. Uma reunião foi marcada à noite no restaurante Planeta’s, no centro de São Paulo. Um novo acordo de exclusividade foi firmado entre Folha, ‘Globo’ e WikiLeaks. A Folha já publicou dezenas de reportagens e divulgou telegramas na íntegra, alguns traduzidos para o português (bit.ly/fOj3ew).

A Folha usou a seu favor e dos seus leitores o acesso antecipado aos telegramas. Os repórteres envolvidos na operação puderam ler os textos, contextualizá-los e ouvir, quando necessário, partes envolvidas.

Por exemplo, na reportagem ‘Para EUA, Dilma planejou assaltos durante a ditadura’ (10.dez.2010), houve tempo suficiente para que o jornal relesse o processo sobre a presidente na Justiça Militar, cujas informações não confirmam os dados contidos no telegrama dos EUA.

O embaixador norte-americano também foi ouvido e negou ter algo para comprovar o despacho diplomático.

O material sobre o Brasil é vasto: 1.937 telegramas originados na Embaixada dos EUA, em Brasília; 902 de consulados norte-americanos no país e 43 despachados do Departamento de Estado, em Washington. Muito mais ainda pode ser garimpado.

 

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