Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

História de máfia

O Estado de S. Paulo, 20/3

Alexandre Agabiti Fernandez

Poderoso chefão

Quando o jornalista Gay Talese cruzou o olhar com o mafioso Bill Bonanno, sabia que teria uma das melhores histórias de sua carreira. Era 1965 e Talese, repórter do New York Times, acompanhava o julgamento de Bill, filho do famoso Joe Bonanno, chefe de uma das famílias da máfia que controlaram atividades ilegais em Nova York durante as duas décadas anteriores. ‘Eu insistia em entrevistá-lo e argumentava que contaria a versão deles e não a do FBI, como fazia a imprensa da época’, relembra Talese, que reconheceu naquele olhar o esperado consentimento.

Mesmo assim, não foi imediato – o repórter gastou dois anos em insistências e, depois do ‘sim’, esperou outros dois até poder iniciar a escrita do que seria um de seus melhores livros, Honra Teu Pai (tradução de Donaldson M. Garschagen), recém-lançado pela Companhia das Letras. Trata-se de um raio X da máfia americana, como ele conta nessa entrevista.

O que o atraiu na história da família Bonanno?

Acho que curiosidade é o que domina o cérebro de um repórter. Eu já me interessava pela máfia aos 12 anos, na década de 1940, quando, durante a guerra, agentes de segurança do governo americano, preocupados com a proteção das áreas marítimas, foram obrigados a se envolver com gangues mafiosas, pois elas dominavam os sindicatos portuários. Outro motivo é minha origem italiana – havia muita desconfiança sobre os italianos nos EUA durante a guerra, todos associados de alguma forma a Mussolini e a Hitler. Como repórter, cheguei a cobrir histórias da máfia até que, em 1965, acompanhei um julgamento da família Bonanno. Joe e seu filho Bill eram acusados de promover uma guerra entre facções mafiosas. O fato atraiu grande parte da mídia e, num determinado momento, quando a corte estava em recesso, eu me aproximei de Bill Bonanno e insisti em entrevistá-lo. Eu dizia que não me interessava pela versão da polícia e do FBI. Minha intenção era descrever o que se passava na cabeça de um chefe da máfia, como se organizava a família, sua hierarquia, os direitos e os deveres de cada membro.

E o que aconteceu?

Bill, que tinha praticamente a mesma idade que a minha, me olhou e não disse nada mas, pelo contato visual, percebi que ele entendeu minha intenção: que o que eu dizia fazia sentido para ele. Então, iniciei um trabalho de persuasão a fim de que Bill aceitasse me receber. Foram dois anos de insistência, até que ele e o advogado concordaram em jantar comigo. A condição era que não seria uma entrevista, apenas uma conversa. Aceitei e, durante o encontro, como eu sabia que Bill, assim como eu, tinha dois filhos e em idades semelhantes aos meus, eu o convidei para vir um domingo à noite à minha casa, com a mulher e os filhos, sem compromisso de entrevista. Para minha surpresa, ele respondeu: ‘Claro!’. Foi o suficiente para quebrar o gelo, mas ainda esperei dois anos até ter permissão para começar a escrever.

Bill Bonanno sentia-se abençoado ou amaldiçoado pela vida que levava?

Creio que ambos. É algo que envolve toda família que detém algum poder. Veja o caso do Egito: Mubarak assemelhava-se a um chefe da máfia e preparava seu filho para sucedê-lo, assim como Bill receberia do pai o controle da família. O mesmo se passava com Kadafi e seus dependentes, e também com os filhos de reis sauditas – todos acreditavam ser abençoados porque receberiam o poder. E o que acontece? Revoluções impedem que o processo se concretize e todos aqueles privilégios não servem para nada. O mesmo se passou com a família Bonanno. Foi nessa época – creio que em 1970 – que recebi permissão para publicar nossa conversa. Até então, tudo o que apurava era computado como um aprendizado: durante 4 anos, coletei dados sem poder escrever uma linha. Precisei de mais um ano para então terminar o livro. Visitei Bill na prisão e também depois que foi solto. Sempre mantivemos contato – ele tentou controlar a máfia da região de São Francisco, foi preso novamente, nós envelhecemos, nosso filhos nos deram netos, enfim, cobri todas as gerações que viveram nos Estados Unidos da família Bonanno. Foi um árduo trabalho de apuração, não há uma linha ficcional no texto.

Bill foi um mafioso inteligente?

Não como deveria. Afinal, o bom mafioso é mais esperto do que a polícia: ele está acima da lei e não é submetido a ela. Bill, ao contrário, foi preso várias vezes, principalmente por ter usado um cartão de crédito que não lhe pertencia. Isso é estupidez. Seu pai, Joe Bonanno, também foi preso mas era mais esperto. Ele passou 18 meses desaparecido sem que ninguém, nem a polícia, soubesse de seu paradeiro. Isso é fantástico. Dizia-se que era um sequestro e eu só descobri que era uma armação 30 anos depois.

O que foi mais difícil em seu longo trabalho de apuração?

Creio que foi ter paciência. As pessoas têm uma visão deslumbrada da máfia, como se só acontecessem trocas de tiros, assassinatos, perseguição de carros. Na verdade, há muita chatice envolvida. É como estar em uma prisão: nos momentos mais delicados, seja na guerra com outras famílias, seja fugindo da perseguição policial, os mafiosos eram obrigados a passar dias e dias escondidos em apartamentos, sem fazer nada, apenas assistindo novelas na TV. É estar preso sem usar uniforme. É muito aborrecido. E ainda com a obrigação de devotar sua vida a outros que fazem o mesmo, ou seja, uma irmandade que não pode ser quebrada.

É por isso que esse é um de seus livros preferidos?

Sim. Gosto muito desse e de A Mulher do Próximo. O que gosto em Honra Teu Pai foi a possibilidade de ter acompanhado toda a história, do começo ao fim – o livro foi publicado em 1971 e mesmo agora, 40 anos depois, mantém um frescor pois se trata de uma narrativa não ficcional. Tive a chance de acompanhar Bill Bonanno até sua morte, dois anos atrás. Aliás, nós nos vimos pela última vez um mês antes de sua morte. Enfim, manter uma proximidade com os personagens de sua reportagem é um privilégio.

E quando o senhor pretende publicar seu próximo livro, sobre seu casamento de 50 anos com a agente literária Nan Talese?

Pretendo terminá-lo no próximo ano. Minhas impressões serão confrontadas com as da minha mulher. Será a crônica de um casamento de meio século, uma reportagem sobre a intimidade do lar.