Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Hugo Studart

‘Quando assumiu o Ministério das Comunicações, Eunício Oliveira sequer sabia o que era unblunding. Um ano depois, ele já pronuncia o termo, que prevê o compartilhamento das redes das operadoras fixas, com sotaque quase britânico. Seu tema preferido, porém, é o Fust, um fundo constitucional que hoje tem nada menos que R$ 3,3 bilhões acumulados sob o controle da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) – Eunício está às vésperas de tomar todo o dinheiro para si. ‘Preciso aplicar essa verba em projetos de inclusão digital’, justifica. Na virada do ano, o ministro teve sua primeira grande vitória no jogo do poder, quando convenceu o presidente Lula a tirar o desafeto Pedro Jaime Ziller da presidência da Anatel. E ainda conseguiu colocar no lugar um aliado, Elifas Gurgel do Amaral. Por enquanto, Elifas é presidente interino, mas Eunício luta para efetivá-lo. Sua maior batalha, contudo, está apenas começando – evitar que os reajustes das tarifas telefônicas pressionem a inflação. Nos últimos dez anos, o índice de preços da Fipe subiu 154%, enquanto a assinatura do telefone fixo subiu 706%. ‘O problema é que, nos contratos das telefônicas, está prevista a correção das tarifas pelo IGP-DI, que leva em conta preços de produtos como o tomate e o chuchu’, explica Eunício. ‘Vou expurgar dos telefones a inflação do chuchu’. Como fazer isso? Com a palavra, o ministro das Comunicações.

DINHEIRO – O que o governo pretende fazer para evitar que as tarifas telefônicas pressionem a inflação?

EUNÍCIO OLIVEIRA – Pode-se negociar o que está nos contratos, mas não se pode quebrá-los. O que dá para fazer é mudar os contratos futuros. A partir de março vamos nos sentar com as quatro teles fixas, Telemar, Telefônica, Brasil Telecom e Embratel, para negociar novos contratos. Eles vão vigorar por 20 anos, a partir de 2006. Vários ajustes serão feitos, incluindo o do índice de reajuste. O objetivo é aproveitar a renovação dos contratos e criar um novo índice exclusivo para o setor de telecomunicações.

DINHEIRO – E como será esse índice?

EUNÍCIO – Ora, hoje as tarifas são reajustadas pelo IGP-DI, que reflete inflação geral do País, de todos os setores, com as suas sazonalidades. Subiu o tomate porque teve aumento dos defensivos agrícolas? Subiu o feijão ou o chuchu porque choveu na época da colheita? Então também sobe o telefone. Mas o que o telefone tem a ver com cereais, frutas e legumes? Não dá mais para aceitar que a antológica inflação do chuchu influencie na telefonia. Da mesma forma que o setor da construção civil tem o INCC, vamos ter o Índice Setorial das Telecomunicações, IST, que reflita especificamente os custos das companhias telefônicas.

DINHEIRO – E se alguma das telefônicas alegar quebra de contrato?

EUNÍCIO – Não acredito que isso vá acontecer. Mas lembro que chegou a hora de renegociar um contrato, e são essas condições que vamos colocar na mesa. Temos que estabilizar o mercado e a principal a função do governo é defender o consumidor. O Antônio Palocci e o Henrique Meirelles estão fazendo a parte deles. Posso ajudá-los criando o índice de inflação do setor.

DINHEIRO – A adesão das telefônicas poderá ser voluntária?

EUNÍCIO – Na questão jurídica, o índice pode ser modificado pelo governo após sete anos de contrato. Mas vamos trabalhar para que haja acordo entre as partes. Neste momento, o ministério e a Anatel estão conversando sobre os parâmetros desse novo índice. O próximo passo é encomendar o estudo a uma consultoria, o IBGE ou a Getúlio Vargas, por exemplo. Na seqüência, a Anatel vai colocar o índice em consulta pública.

DINHEIRO – Que outras novidades os contratos terão?

EUNÍCIO – Outra questão importante são novas regras de interconexão que aumentem o acesso das classes C e D ao telefone. Está sendo discutido com as companhias o chamado AICE, Acesso Individual de Classe Especial. Neste momento, a tendência é criar um tipo de telefone com assinatura mais baixa, um serviço fixo com características do celular pré-pago. A Telemar já vem experimentando espontaneamente isso. O importante é prever nos novos contratos alguma boa saída para a universalização da telefonia. No caso dos celulares, nossa saída foi o pré-pago. Ano passado, esse setor cresceu nada menos que 47%. A tendência para os próximos anos é a inclusão de milhões de usuários de baixa renda também nos serviços fixos.

DINHEIRO – Quando o governo vai utilizar nos projetos de inclusão social os R$ 3,3 bilhões já acumulados do Fust?

EUNÍCIO – O imbróglio do Fust não foi criado nem neste governo nem por este governo. A confusão foi criada pelo Tribunal de Contas da União, no governo passado. O TCU não tem a função de interpretar leis; esse é um atributo do Supremo Tribunal Federal. Mas o TCU interpretou que o fundo só poderia ser aplicado em novos serviços, a serem implantados através de licitações. A Anatel está criando os novos Serviços de Comunicação Digital. O plano é dividir o Brasil em 11 regiões e licitar as concessões para 11 novas empresas. Mas esse processo é demorado e lento. Além disso, é provável que não se concretize.

DINHEIRO – Por quê?

EUNÍCIO – Porque tramita no Congresso a nova Lei das Agências Reguladoras, e por essa nova lei, os recursos do Fust terão aplicação múltipla, que independe de novas outorgas. Portanto, poderá ter aplicação imediata por quem formula as políticas públicas do setor, ou seja, o Ministério das Comunicações. O governo vai fazer um esforço para aprovar a lei ainda neste semestre.

DINHEIRO – Essa nova lei tira poderes das agências reguladoras e dá ao governo. Afinal, o governo quer diminuir as agências?

EUNÍCIO – É claro que não. O projeto não tira poderes das agências, mas apenas corrige algumas posições, colocando cada um no seu lugar. Pergunto: você acha natural que os conselheiros de uma agência não possam ser convocados pelo Congresso para prestar esclarecimentos? Ora, eu que sou ministro, posso ser convocado. Então por que um conselheiro também não pode? Também não é correto imaginar que um organismo de Estado formule políticas públicas, decidindo como e onde aplicar o dinheiro do Fust.

DINHEIRO – Mas há investidores com medo de que as agências percam a independência.

EUNÍCIO – Pelo contrário, estão sendo fortalecidas em suas atividades fim, que é o direito de regular e fiscalizar seus respectivos setores, ficando livres da tarefa de formular políticas públicas. Outro dia li uma reportagem dizendo que estamos indicando para as agências pessoas filiadas a partidos políticos. Mas quando as agências foram criadas, ninguém ofereceu as vagas de diretores e conselheiros para a oposição. Repito, a oposição não ocupou as primeiras vagas nas agências. No caso da Anatel, dois conselheiros foram indicados na minha gestão ao presidente Lula, Plínio Aguiar e Elifas Gurgel. Nunca pedi a ficha de filiação partidária a nenhum dos dois. O importante é critério de competência técnica.

DINHEIRO – Qual dos dois será o presidente da Anatel?

EUNÍCIO – Ainda não sei. É o presidente quem escolhe no momento em que ele achar oportuno.

DINHEIRO – Por que Pedro Jaime Ziller caiu?

EUNÍCIO – Pedro Jaime foi um bom presidente. Foi nomeado para um mandato de 12 meses, que terminou.

DINHEIRO – Até que chegue a hora de tomar de volta o dinheiro do Fust, como o governo pretende aumentar a base de usuários de computadores?

EUNÍCIO – Com recursos do Tesouro. Somente um de nossos programas de inclusão digital, o Governo Eletrônico, já beneficia diariamente 180 mil pessoas, que utilizam 20 mil máquinas ligadas com internet banda larga, em pontos via satélite. São 3 mil pontos em escolas, bibliotecas e locais onde nem o telefone fixo chega, como tabas de índios e quilombolas. Nos próximos 30 meses, vamos investir R$ 114 milhões para instalar mais 1.200 pontos e chegar a 4.200 pontos. Quando vier o dinheiro do Fust, vai dar para pensar em acelerar o processo. Só os R$ 3,3 bilhões acumulados, dá para atender a quase 50 milhões de brasileiros. O Fust arrecada em média R$ 350 milhões por ano.

DINHEIRO – Quando a economia real poderá usufruir dos programas de inclusão digital?

EUNÍCIO – É um processo muito longo e demorado; falar em prazo seria um chutômetro ou blefe. Há quanto tempo que o País tenta erradicar o analfabetismo? Temos 180 mil escolas públicas e 30 mil não têm sequer energia. Então não adianta ficar aqui anunciando que vamos colocar computadores em todas as escolas, porque isso não vai acontecer tão cedo. A inclusão digital é incipiente. Nada menos que 79% dos brasileiros nunca manusearam um computador e 89% nunca tiveram acesso à internet. O objetivo agora é utilizar os programas de inclusão digital para aumentar o acesso da classe C. Vai dar para contar, já este ano, com ajuda internacional.

DINHEIRO – De quem?

EUNÍCIO – Dias atrás, lá no Fórum Econômico em Davos, participei de uma reunião com um grupo de 200 executivos de companhias como Cisco, Intel e Philips. Elas formaram um grupo para financiar projetos pilotos de inclusão digital em países em desenvolvimento. Havia uma disputa entre Índia, China, Chile e Brasil pelo primeiro piloto. Vencemos. O Brasil vai abrir projetos de inclusão pelos próximos dez anos. E as empresas vão injetar dinheiro delas. US$ 10 milhões já estão disponíveis. Nos próximos dias chega uma comissão de executivos para discutir com o governo que projetos serão esses.

DINHEIRO – Qual a tendência do mercado interno? Ainda há vendas, fusões ou incorporações em gestação?

EUNÍCIO – Não chegou aos meus ouvidos, até o dia de hoje, nenhum novo projeto de fusão ou incorporação. Nem saída ou entrada de novas empresas no mercado. Mas pode haver num futuro próximo, talvez a partir de 2006, uma grande movimentação no setor com a chegada dos telefones celulares de terceira geração, os 3G, que têm o poder de transmitir sons e imagens de alta definição. Esses serviços já existem na Europa e na Ásia, logo vão chegar ao Brasil.

DINHEIRO – O presidente Lula falou em transformar a Telebrás numa estatal de satélites. O governo vai ressuscitá-la?

EUNÍCIO – A Telebrás está é em processo de extinção e não há dentro do governo nenhuma motivação para reativá-la. Como a Telebrás tem ações em bolsa, que fique claro que idéias trocadas dentro do governo não significam ações de governo. Uma questão em debate é se o governo vai ter ou não um satélite geoestacionário próprio. A orientação do presidente Lula foi não discutir isso em público.

DINHEIRO – Com a fusão da Sky com a DirecTV, o empresário Rupert Murdoch virou dono de 95% do mercado brasileiro de TV via satélite. Não é demais?

EUNÍCIO – A agência reguladora do setor, a Anatel, já está examinando a questão sob ponto de vista técnico. E obviamente a fusão terá que passar pelos órgãos de defesa da concorrência, o Ministério da Justiça e o Cade.

DINHEIRO – Quando o Brasil terá a TV digital?

EUNÍCIO – Contratamos 79 universidades para trabalhar no projeto de definição de um padrão brasileiro para a TV. Ainda não dá para arriscar dizer se teremos uma TV digital nacional. Espero que os pesquisadores tenham respostas até o final deste ano.

DINHEIRO – Vai dar para atender ao desejo do presidente Lula de assistir à Copa do Mundo da Alemanha, de 2006, em TV digital?

EUNÍCIO – Tenho pressa de fazer as coisas, só que não posso cometer o pecado de fazer promessas irresponsáveis. Mas acho que há boas chances do presidente assistir à próxima copa pela TV digital.’



ENTREVISTA / CELSO AMORIM
Luiz Alberto Weber

‘Pelos resultados’, copyright Carta Capital, 23/02/05

‘Mais ousada do que na era FHC, a política externa do governo sofre preconceito interno, diz o ministro Celso Amorim

Cinéfilo, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, refugia-se das intrigas brasilienses, que, muitas vezes, miram o Itamaraty, nas salas de cinema da cidade, onde, de boa vontade, desliga seu celular. Ex-presidente da Embrafilme nos estertores do regime militar, o chanceler teve mais êxito em inseminar nos filhos a paixão pelo cinema do que pela diplomacia. Assistiu mais recentemente aos filmes O Caminho das Nuvens e Olga – o primeiro dirigido por seu filho, Vicente; o último, editado pelo filho Pedro.

Diplomata desde 1965, Amorim avalia que nunca o Brasil se projetou tanto no cenário internacional, visibilidade que ele atribui ao capital político de Lula somada à missão do presidente de reunir líderes mundiais no combate à fome. Nesta entrevista a CartaCapital, o chanceler diz quais são as diferenças entre a política externa do governo do PT e de FHC, avalia o futuro da Alca, mostra-se surpreso com a cobertura de parte da mídia dos assuntos do Itamaraty, às vezes mais americanista do que os próprios americanos.

CartaCapital: O senhor acha que há certa má vontade dos formadores de opinião com a política externa do presidente Lula? Lembro que a visita de Lula, no fim do primeiro ano de governo, à Líbia foi atacada, mas, pouco depois, o encontro de líderes europeus com o presidente Khadafi foi louvado como grande momento da política internacional…

Celso Amorim: Eu prezo muito a liberdade de expressão. Fui presidente da Embrafilme durante o governo militar e perdi meu cargo porque apoiei a realização de filmes que criticavam práticas que haviam ocorrido naquele período. Mas acho que há uma visão – que não vou atribuir à má-fé de ninguém – que é de procurar achar que certas coisas os outros podem e nós não podemos, como se tivéssemos de pedir licença para cada gesto de política externa, para cada ação que nós tomamos. Esse exemplo da visita do presidente Lula aos países árabes foi um dos mais gritantes. Com poucas semanas de diferença, estiveram por lá o Aznar (José María Aznar, ex-primeiro-ministro espanhol) e o Tony Blair. E a cobertura foi totalmente diversa. Acho que isso, sinceramente, reflete uma visão equivocada e revela um aspecto importante, que é o desenvolvimento do que o presidente costuma dizer da auto-estima do brasileiro. E a auto-estima passa por aí, por ter atitudes independentes, dignas, abertas. Nosso intercâmbio com a Líbia, com a Síria e com os países árabes em geral aumentou muitíssimo depois da visita do presidente à região.

CC: Há certo preconceito?

CA: Vejo isso às vezes espalhado na população. Não sei se é a mídia que influencia a população ou é a população que influencia a mídia. Mas acho essa visão um pouco acanhada, de autoflagelação do brasileiro, de automesquinhamento, é totalmente infundada. Por exemplo, vários dirigentes norte-americanos, como o ex-secretário de Estado Collin Powell e a própria Condoleezza Rice, têm dito palavras positivas sobre o Brasil, sobre a política externa brasileira mais especificamente. Nós somos criticados pela política externa que os Estados Unidos elogiam. Quando o Robert Zoellick (representante de comércio dos Estados Unidos) precisa de um interlocutor na Organização Mundial do Comércio (OMC), ele procura o Brasil. Eles sabem que nós somos negociadores confiáveis, sérios, sabem que defendemos nossos interesses, mas sabem que podemos contribuir. Com o secretário Collin Powell, eu mantive um diálogo excelente sobre muitos temas, entre eles Venezuela, por exemplo. Essa é a contradição. Quando fazemos determinada política, ela é criticada, quando grandes potências elogiam nossa política, isso é algo que passa ao largo. O que é curioso é que ela é criticada por antiamericanismo. Talvez não houvesse o hábito de ver o Brasil atuar de maneira tão forte na área internacional quanto no governo Lula.

CC: O senhor mencionou as relações com a Síria. Novamente, o Itamaraty foi criticado por recorrer à Síria, uma ditadura, para que interviesse no caso do engenheiro brasileiro (João José Vasconcellos) seqüestrado no Iraque desde 19 de janeiro.

CA: Falar com o presidente da Síria era uma das coisas mais eficazes que podiam ser feitas no alto nível político. é um pouco essa questão do ‘o que quer que você faça, você vai ter crítica’. Agora, o Brasil possui relações diplomáticas com a Síria e não tem de ficar querendo dar lições, nem impondo pela força – pela força muito menos – o sistema de governo a outros países. Não fazemos isso na região, não faremos isso fora da região.

‘Nossa política é criticada por antiamericanismo, mas elogiada pelas grandes potências, pelos EUA’

CC: No que a política externa do governo Lula é diferente da adotada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso?

CA: Em primeiro lugar, a questão da fome é algo totalmente novo e isso tem repercussão nos mais variados campos. Na ONU, testemunhei, por ocasião da visita de Lula à Assembléia, uma pessoa de língua francesa pronunciar uma frase que qualquer dia vou colocar em um livro de memórias, porque falou de maneira carinhosa: o Brasil abraça o mundo. Então é um elemento que certamente não tinha na política do Fernando Henrique Cardoso. Também acho que atitudes como as que nos levaram ao G 20, não creio que houvesse, porque aquilo implicou riscos. Acho que a intensidade e a determinação com que são levadas adiante certas decisões são realmente coisas novas. Outro exemplo é a integração da América do Sul. Isso nos permitiu em dois anos ter um acordo que cria uma área de livre comércio sul-americana, além da parte da infra-estrutura. Isso implicou o quê? O presidente Lula recebeu todos os presidentes da América do Sul, foi a todos os países. A intensidade acaba afetando o conteúdo. O presidente Lula, agora com a viagem à Guiana e ao Suriname, completa todos os países da América do Sul.

CC: Não é mais uma etapa de integração retórica?

CA: Não. Acabei de receber o decreto que introduz na legislação brasileira o acordo entre o Mercosul e a Comunidade Andina. Isso é uma coisa histórica porque, com esse acordo, na realidade, você criou uma área de livre comércio sul-americana. Isso é um sonho. Hoje estamos trabalhando na América do Sul para criar uma base sólida para negociarmos melhor. Dentro e fora do continente. Então, ela não é abstrata, não é retórica. Agora, além disso, temos as obras de infra-estrutura. O Brasil está empenhado em muitas obras de infra-estrutura que beneficiam empresas brasileiras e beneficiam a integração ao mesmo tempo. Tudo é muito positivo e é muito real.

CC: A política externa brasileira sempre foi elogiada pelo pragmatismo, por antever e entender a configuração geopolítica do mundo. O Brasil, ao fazer tantas apostas simultâneas (áfrica, Oriente Médio, América do Sul), não estaria deixando de concentrar suas fichas no bilhete certo?

CA: Os momentos de maior brilho da política externa brasileira no passado, indiscutivelmente, ocorreram justamente onde o Brasil procurou projetar no plano externo essa característica plural da sua própria cultura e da sua própria população. Para nós é bom que seja assim, um mundo multipolar é um mundo que favorece países como o nosso, e acho que temos atuado dentro desse quadro.

CC: Muitos criticam que essa ação global retira energia política, diplomática e econômica de um acordo que seria mais produtivo, em todos esses campos, com os Estados Unidos, no âmbito da Alca.

CA: Ninguém pode fazer um juízo definitivo sobre essas coisas. Política não é matemática. Mas na medida em que a matemática ajuda a política, todos os estudos feitos até hoje em relação ao acordo com a Alca, ou quase todos, mostram que ela pode trazer benefícios setoriais, mas não necessariamente para o conjunto da economia brasileira. Estudos recentes mostram que teríamos um déficit na nossa relação comercial com os EUA. Esses são os dados com os quais estamos trabalhando.

CC: Isso quer dizer que a Alca está sacramentada e enterrada?

CA: Nós temos de negociar uma Alca que seja favorável para nós, da mesma maneira que temos de negociar com a União Européia um acordo que nos seja favorável. A Alca, da maneira como estava desenhada antes, significava, primeiro, que nós não teríamos concessão alguma em agricultura, porque o comitê de agricultura nem sequer se reunia e progressivamente íamos fazendo concessões nas áreas mais sensíveis para nós, que eram as áreas de serviço, de propriedade intelectual, de investimentos. Nessas áreas, todos os temas sensíveis estavam caminhando e, na área que nos interessava, que era a agricultura, não caminhava. Não caminhava porque os americanos alegavam que subsídios agrícolas eles só iriam tratar na OMC, mas queriam tratar na Alca os temas de interesse deles. Quando se fala, por exemplo, que é por causa das patentes que a Alca não está avançando, não é por causa disso. Eu já fiz essa pergunta ao Zoellick. Perguntei a ele: vamos supor, para saber onde estamos pisando, se por acaso aceitássemos uma visão de patentes como os Estados Unidos desejam, isso faria com que o mercado de produtos agrícolas se abrisse para nós e as tarifas caíssem a zero? Ele respondeu com a franqueza que tem. Para nós, a Alca é uma negociação com os Estados Unidos, com os outros países ou temos acordo ou estamos negociando, de modo que não temos nenhuma dificuldade em ter acordos com outros países.

CC: Os EUA estão celebrando acordos bilaterais na América Latina. O Brasil pode vir a celebrar um acordo comercial assim?

CA: Não, não. Bilateral só com o Mercosul. Quatro mais um. Bilateral porque são dois lados. Fora do Mercosul, não. O Mercosul é algo muito precioso que deve ser mantido. Ele já chegou a absorver quase 18% das nossas exportações. Caiu um pouco e agora voltou a subir muito, batendo até recorde em termos absolutos.

CC: A impressão que se tem é que o Mercosul está pelas tabelas por causa das várias exigências feitas pela Argentina…

CA: é uma questão de compreender o que é estratégico e o que é tático. Acho que o governo e, a rigor, a mídia, já que ela exerce uma grande influência, teriam de olhar para o conjunto. Quando estive na última reunião do Mercosul, uma reunião importantíssima, que avançou em áreas sensíveis, como a eliminação da dupla cobrança da tarifa externa comum, o avanço mais concreto em termos de união aduaneira que nós fizemos nos últimos anos, e acordos com a índia e a áfrica do Sul, havia tudo isso e a única pergunta – até por isso que digo que é algo impregnado na população – foi: ‘Poxa, vocês estão fazendo um bom trabalho, mas os argentinos dão um trabalho…’ Eu disse: ‘Tenho trabalho com os argentinos, mas tenho trabalho também com setores da nossa mídia’. As coisas têm de ser vistas em um conjunto. E o conjunto é esse: nossas exportações com a Argentina – claro, houve uma crise -, mas aumentaram 90% em um ano e no ano seguinte 70%. Um recorde. Progressivamente, nos setores onde havia problemas estão sendo feitos acordos, isso já aconteceu no passado em outros setores – siderúrgico, químico… Agora, se você me pergunta: é bom que haja restrições ao comércio? Não. Estou defendendo? Não. Agora, nós temos de ter a compreensão de quais são as soluções para o problema.

CC: Como está a candidatura brasileira à presidência da OMC?

CA: A questão da OMC está lançada. O Brasil tem um candidato. O sentido da apresentação da nossa candidatura na OMC é político. Nem o embaixador Seixas Corrêa nem o Brasil aspiravam a esse cargo, mas criou-se uma situação política em que se tornou importante pelo próprio papel que o Brasil e o G 20 desempenharam nessa verdadeira revolução que houve nos processos negociadores da OMC. As negociações deixaram de se processar fundamentalmente entre o presidente de uma comissão ou de um conselho e os grandes países – porque era o que ocorria, depois você só poderia chegar lá e mudar uma vírgula. O fato de a renegociação, do acordo-quadro, como ocorreu em Cancún e Genebra, ter sido feita com a participação efetiva dos principais interlocutores foi algo que só ocorreu por causa do G 20. E o G 20 não teria existido se não tivéssemos já antes uma política de integração da América do Sul que tenha despertado confiança, uma política de aproximação intensa com a índia, com a China, com a áfrica do Sul, todos esses fatos estão ligados e eles não existem isoladamente. Nós ganharíamos muito mais com uma boa conclusão da Rodada de Doha (negociação para acessos a mercados e redução de subsídios), o ganho a médio e longo prazo do Brasil, inclusive para os setores que gostariam de ter um acordo rápido com a Alca, seria muito maior na OMC, porque é lá que estamos brigando pelo fim dos subsídios.

CC: Não vai acabar em impasse como nas outras etapas?

CA: é uma batalha e eu não quero cantar vitória antes do tempo. Talvez não consigamos tudo o que queremos, mas hoje em dia a questão, por exemplo, da eliminação do subsídio da exportação é ponto pacífico. Se não ocorrer, não tem a Rodada, acaba tudo. Não acredito que isso vai ocorrer. E o que vai resultar de uma negociação que permita redução efetiva de subsídios é muito mais do que pode resultar dessas outras negociações.

CC: Inventaram muitos inimigos para o senhor no governo, entre eles o assessor especial de Lula para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia…

CA: Olha, eu até hoje não sei quem indicou meu nome para o presidente Lula, mas uma das pessoas deve ter sido ele. Como, então, posso ter o Marco Aurélio como inimigo? (risos)

CC: E na Fazenda, onde alguns acreditam que um acordo com os americanos é melhor do que insistir em outras regiões?

CA: Eu tenho um excelente entendimento com o ministro Palocci. Para falar a verdade, o que pensam as burocracias não me interessa. Nem a dele, nem a minha. Nunca tivemos nenhum desacordo nas reuniões feitas no Palácio do Planalto.

CC: O Brasil ficou diferente aos olhos do mundo?

CA: Olha, quando é que tivemos dois primeiros-ministros da Espanha em um espaço de oito meses no Brasil? Veio o Aznar, mudou o governo, aí veio o Zapatero (José Luis Rodríguez Zapatero). E por aí vai. Os contatos que temos tido com os Estados Unidos, com o Reino Unido, e até em outras áreas, como o apoio que vários países têm dado à candidatura do Brasil a um assento permanente no Conselho de Segurança, tudo isso reflete uma percepção do que o país representa. O presidente Lula está convidado para a reunião do G 8 em julho. é pouco isso? Agora, resulta do processo da consolidação democrática e de muita coisa boa que aconteceu no passado. Tudo isso em um quadro onde a relação com os países desenvolvidos tem sido cultivada de maneira muito especial. Mas resulta, também, de um grande empenho de termos relações internacionais amplas, justamente no sentido de reforçar essa multipolaridade que é saudável para nós e para o mundo.’