Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jarbas Passarinho

‘O 31 de março de 1964 foi resultado de um clamor popular para a deposição de João Goulart e hoje é tido como um golpe para usurpação do poder pelos militares. Por quê?

Manchetes, em letras garrafais, de ‘Basta!’ e ‘Fora João Goulart’, da grande imprensa nacional, são hoje substituídas, nos mesmos jornais, por ácidas críticas aos ‘anos de chumbo’ do ciclo militar. Por quê?

A massa humana de 1 milhão de pessoas, entre elas padres, bispos e o laicato católico, em passeatas nas ruas de São Paulo, rezando por Deus e pela liberdade, em março de 64, transformou-se no milhão de pessoas entusiásticas que exigiam ‘Diretas Já!’ em 1984. Por quê?

Nenhum democrata -e são tantos- pegou em armas contra o governo. Só os comunistas, treinados e financiados em Cuba, fizeram-no. Antes Fidel Castro, que os adestrava, era visto e repudiado como ponta-de-lança da União Soviética nesta parte do hemisfério Sul, na exportação da revolução comunista. Passou a ser venerado por Lula, antes de eleito nosso presidente, e aplaudido quando se permite nos visitar. Por quê?

A igreja, que maciçamente apoiou o golpe preventivo -como o chamou Jacob Gorender-, pouco a pouco se deixou dominar pela corrente da Teologia da Libertação. Dom Paulo Evaristo Arns, que em 31 de março de 1964 foi ao encontro dos mineiros, sublevados, para oferecer-lhes assistência religiosa, veio a se transformar no cardeal símbolo da resistência organizada aos governos dos generais. Por quê?

Os dominicanos, que em Conceição do Araguaia homenagearam-me, governador do Pará, em 1965, oferecendo-me pernoite, viriam a ter, na ordem, no Convento das Perdizes, em São Paulo, uma célula comunista, com frades subordinados ao líder Carlos Marighella. Por que tamanha mudança?

Os guerrilheiros e terroristas comunistas que desencadeavam a luta armada -e a perderam por falta de apoio popular- são agora reverenciados com nomes de ruas, placas comemorativas e indenizações bilionárias. Por quê?

Toda essa transformação terá ocorrido devido a sucessivos erros praticados no ciclo militar.

O apoio da imprensa, perdemo-lo quando lhe foi imposta a censura e, por cima disso, por censores despreparados, incapazes de distinguir uma notícia de um recado para a guerrilha. Como a liberdade é para a imprensa o mesmo que o oxigênio para a vida, a mídia não demorou a ficar contra o governo e a adubar, habilmente, terreno para os líderes de oposição.

A igreja, minada pelos padres e bispos partidários da Teologia da Libertação e da análise marxista do capital, não a perderíamos de todo se encarregados de IPM inteiramente despreparados não indiciassem, como indiciaram, padres e bispos como favoráveis à guerrilha, quando só os frades dominicanos tinham codinomes, agindo na clandestinidade na luta armada.

No ciclo militar, já em 1967, eclodiram as guerrilhas comunistas. O Estado respondeu fogo com fogo. Perdeu cerca de 200 combatentes. Filhos do povo, soldados e civis, seguranças de embaixadores ou de bancos foram mortos covardemente. Militares estrangeiros foram assassinados ‘por engano’. Na ‘guerra suja’, crueldades foram praticadas de ambos os lados, mas só vem a público a hediondez das torturas, que não eram uma política de governo, nas deformações dos que esqueceram a Convenção de Genebra, aprendida nas escolas militares. Preferiram seguir o exemplo dos pára-quedistas franceses na Argélia.

Tudo de bom que os militares fizeram pelo Brasil foi posto a perder: a modernização do país, a reforma universitária e de primeiro e segundo graus, a expansão do ensino público, as muitas rodovias construídas e asfaltadas, o espetacular crescimento da economia, alçada ao oitavo lugar do mundo, a geração de empregos, a eficiência dos Correios e Telégrafos, a transformação radical da telefonia -incapaz, em 64, de garantir uma linha urbana e que veio, com o auxílio de satélites, a garantir não só a linha urbana, como a DDD e a DDI. As hidrelétricas -Tucuruí, a maior do Brasil, e Itaipu, a maior do mundo-, as aposentadorias dos trabalhadores rurais, que FHC disse ser o maior projeto de renda mínima do mundo.

Por quê?

Primeiro, pela demora da devolução do poder aos civis, além de 1973. As guerrilhas urbanas tinham sido esmagadas. A do PC do B não ameaçava a segurança do Estado, isolada na floresta, com pequeno contingente e apoiada apenas pela ridícula Albânia, pela rádio de Tirana, sem nenhum valor. Serviu, porém, de pretexto para a continuação do ciclo militar.

Segundo, e especialmente, pela prática da tortura na repressão.

À vitória na luta armada, que prescindiria das atrocidades, seguiu-se a derrota da batalha das comunicações, ganha pelos que escondem as felonias que praticavam e hoje são quase deificados herdeiros de recompensas milionárias.

Jarbas Passarinho, 84, é coronel da reserva. Foi governador do Pará (1964-65) e senador pelo Estado em três mandatos (1967-74, 1975-82 e 1987-95), além de ministro da Educação (governo Médici), da Previdência (governo Figueiredo) e da Justiça (governo Collor).’



Janio de Freitas

‘Os papéis do horror’, copyright Folha de S. Paulo, 19/12/04

‘Há 30 anos, ou desde que os civis recuperaram o direito de governar o Brasil, a abertura dos arquivos da ditadura é reclamada, mas nunca se questionou devidamente a motivação dos militares para seu tamanho horror a tal medida. Deu-se como estabelecido, meio por alto, que a tortura em quartéis e o encobrimento dos seus autores aciona o espírito de corporação dos militares.

A breve explicação é inegável, mas não reflete toda a gravidade do que está por trás da atitude dos militares. A tortura praticada no Exército, Marinha e Aeronáutica começou a ser narrada por suas vítimas ainda na ditadura, quando de interrogatórios em julgamentos. Cedo ficou documentada, portanto, em partes inseparáveis de processos depois recolhidos aos depósitos judiciais. Apesar de menos ampla do que deveria, a narrativa pública da tortura, pela imprensa outra vez liberalizada, deu conhecimento do que se passara a todo o país. A omissão acovardada dos poderes públicos foi suprida pelo trabalho valiosíssimo do ‘Tortura Nunca Mais’ e outras entidades, que levantaram e publicaram os relatos das vítimas e a identificação dos torturadores.

Com isso, a resistência dos militares à abertura de arquivos pouco acrescenta à proteção dos torturadores e de seus comandos, não menos comprometidos. Mas a tortura não é tudo o que pode surgir de arquivos que, para começar os problemas dos militares, nem eles sabem o que contêm. Os milhares de documentos da repressão agora encontrados em Salvador e Porto Alegre são apenas dois exemplos do que há por aí. O que nos leva a aplaudir a imprevidência e a desorganização dos militares.

No problema dos presos desaparecidos há casos pavorosos. Com testemunhas, há anos ouvi o coronel Heitor Linhares contar, indignado, que soubera por um sargento do destino dado a um preso do Doi-Codi no Rio: morto na tortura, foi enterrado em um trecho de estrada que logo seria asfaltado. Não foram só os criminosos da oficialidade argentina que jogaram presos de avião ao mar. Bem antes dos argentinos, o brigadeiro Burnier, guru de tantos nas Forças Armadas, já lançara a idéia aqui, como denunciou (e pagou pelo restante da vida) o bravo capitão Sérgio Miranda Carvalho.

Que registros terão deixado por aí os que não se limitaram à tortura, como autores, comandantes e outros? Em relação aos desaparecidos do Araguaia o risco não é menor, se encontrados os seus despojos. Ali foram feitas monstruosidades que, se submetidas a um tribunal como os que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, também levariam a fuzilamentos e enforcamentos. Se for achado corpo sem cabeça, é isso mesmo: decapitação de preso, até decapitação de gente desarmada, indefesa. Foi da temida comprovação de crimes militares desse gênero que partiu, e se mantém, a recusa à abertura de arquivos relativos à guerrilha do Araguaia.

A repressão acima das leis levou a transgressões que não se contiveram em práticas repressoras. A pretexto, e depois sem se ocupar com pretextos, de prover locomoção disfarçada para agentes dos serviços militares, muitos civis perderam seus automóveis. Roubados mesmo, como outros perderam bens em sortidas de ‘repressão’ a moradias particulares. Além de roubos que deram em inquéritos e processos na justiça militar. Um deles, narrado aqui há muito tempo, foi até humorístico: um vasto aparato acompanhou, desde o Rio Grande do Sul, um carregamento de botas militares que adotava percurso incomum, e certamente levaria seus seguidores militares a um foco subversivo. No destino, foi constatado que se tratava do desvio de estoques do Exército, feito por oficiais do Exército (entre os quais um ex-craque da seleção brasileira de basquete), para venda no interior de São Paulo. Enquanto o comboio ladrão varava estradas, presos eram torturados para identificar os imaginados subversivos da operação botina.

O Puma explodido no Riocentro nunca teve sua origem considerada a propósito do atentado. Por coincidência, um Puma com todas as mesmas características identificadoras desapareceu de sua proprietária, dona, também, de uma butique na cidade de São Paulo. Por outra coincidência, o usual era o roubo de carros fora do Estado onde passariam a trafegar, acobertados pela alegação de que seus ‘proprietários’ eram da repressão. E, na mesma linha, um outro gênero: a conexão, para proveitos pessoais, com atividades contraventoras e com grupos criminais. Por ser o mais notório, não é único o caso do capitão Guimarães, do Doi-Codi, que se tornou general da contravenção, no jogo do bicho e outras atividades.

A participação de militares brasileiros na Operação Condor está razoavelmente conhecida. Mas as Forças Armadas brasileiras deram contribuição importante ao golpe de Estado no Uruguai e tiveram participações comprometedoras no golpe de Pinochet. A ação internacional violou tanto leis brasileiras, como leis e tratados internacionais de que o Brasil já era signatário, inclusive a Carta da ONU. As violações dependeram de ordens e providências que se transformaram, com o tempo, em documentos que seus detentores temem como explosivos.

As razões para a recusa à abertura de arquivos são muito maiores do que a solidariedade por espírito de corporação.’



Iuri Dantas e Eduardo Scolese

‘Governo vai ‘dramatizar’ a divulgação dos arquivos’, copyright Folha de S. Paulo, 16/12/04

‘A Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas decidiu ontem identificar autores de crimes cometidos após a Lei de Anistia, de 1979, e ‘dramatizar’ a divulgação de alguns papéis com finalidade ‘pedagógica’.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva dirigiu a primeira reunião da comissão, criada para discutir a abertura de arquivos da ditadura militar (1964-1985) e composta por sete ministros. A dramatização se daria com a divulgação dos documentos para a imprensa.

‘A idéia é mandá-los [os arquivos] para o Arquivo Nacional. Acredito que se possa dramatizar um pouco isso [a abertura], em relação a alguns documentos, fazendo uma divulgação pedagógica daqueles que não firam a intimidade e a confidência das pessoas’, disse o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos.

Os militares sempre resistiram à divulgação dos documentos por temerem revanchismo. Segundo Bastos, serão perdoados crimes cometidos de 64 a 79. ‘[Em relação a] coisas posteriores à Anistia, se houver algum crime, será apurado. As coisas abrangidas pelo esquecimento jurídico da Anistia serão preservadas’, disse Bastos.

Após quase três horas de reunião, ficou decidido também que serão requisitados todos os documentos sobre a ditadura à Polícia Federal, à Abin (Agência Brasileira de Inteligência) e aos órgãos de inteligência das Forças Armadas.

Até hoje, o governo mantinha silêncio sobre documentos dos centros de inteligência das Forças Armadas. Os militares terão que apresentar seus arquivos.

Sabe-se até agora da existência dos arquivos da CGI (Comissão Geral de Investigações), do CSN (Conselho de Segurança Nacional) e dos extintos SNI (Serviço Nacional de Informações) e Dops (Departamento de Ordem Política e Social), da PF. Segundo Bastos, arquivos classificados como confidenciais, reservados e secretos cujo prazo tenha terminado serão imediatamente enviados para o Arquivo Nacional, no Rio. Os ultra-secretos serão avaliados.

Desde o ano passado, um grupo interministerial investiga a existência de relatórios nas Forças Armadas, na Abin e na PF sobre a guerrilha do Araguaia -as instituições negam ter tais papéis.

Deflagrada na década de 70 no sul do Pará, a guerrilha do Araguaia foi um movimento armado conduzido por militantes do PC do B. A maioria foi presa ou morta por militares, mas muitos corpos estão desaparecidos.

Há duas semanas, o Tribunal Regional Federal de Brasília determinou ao governo a apresentação de documentos e a localização das ossadas. Para cumprir a sentença, a União vai apresentar o relatório do grupo interministerial, que ontem foi distribuído aos membros da comissão.

Receberam o relatório os ministérios da Justiça, Defesa, Relações Exteriores, Advocacia Geral da União, Secretaria Especial de Direitos Humanos e a Casa Civil, que coordena a comissão.

O último ponto discutido na reunião de ontem foi a queima de documentos confidenciais na Base Aérea de Salvador (BA). A incineração foi filmada e divulgada pelo ‘Fantástico’, da Rede Globo, no domingo. Ontem, advogados da emissora entregaram ao ministro Nilmário Miranda (Direitos Humanos) alguns dos papéis que não foram queimados.

Nilmário afirmou que encaminhou os papéis para perícia na PF. A possibilidade de a incineração ter sido ‘armada’ por militares insatisfeitos já foi cogitada pelo ministro da Defesa, o vice-presidente José Alencar, e pelo comandante da Aeronáutica, o brigadeiro Luiz Carlos Bueno.

Para Nilmário, episódios como esse não devem mais ocorrer devido ao ‘rigor na apuração’.’