Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

João Domingos


‘Partiu do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a ordem para a Secretaria dos Direitos Humanos suspendesse a distribuição da cartilha Politicamente Correto & Direitos Humanos. Na terça-feira, em cerimônia no Palácio do Planalto para a expansão da capacidade produtiva da Açominas, o presidente Lula chamou alguns ministros e auxiliares e perguntou o que achavam da cartilha. Sem esperar resposta, o próprio Lula disse: ‘Acho um absurdo, uma perda de tempo e um gasto desnecessário de dinheiro.’


Em seguida, perguntou ao secretário Nilmário Miranda por que ‘peão’ é uma palavra pejorativa. ‘Mas Nilmário, eu sou um peão e não me importo com isso. E também chamo as pessoas de peão’, disse Lula, de acordo com relato de um dos presentes ao encontro. Em seguida, Lula determinou que toda a publicação fosse recolhida. Mais tarde, num encontro com os ministros que formam o núcleo central do governo, eles e Lula ridicularizaram a cartilha, por tê-la na condição de ‘bobagem, uma perda de tempo e um irradiador de confusão sem motivo algum’.


A cartilha tem 96 expressões condenadas por terem sido consideradas pejorativas pela Secretaria dos Direitos Humanos. Entre elas, expressões e palavras muito populares, faladas em todas as regiões do País, como ‘a coisa ficou preta’, ‘sapatão’, ‘cabeça-chata’, ‘comunista’, ‘peão’, ‘barbeiro’, ‘palhaço’, ‘xiita’ e até ‘funcionário público’.


Em suas indagações sobre o conteúdo da cartilha, Lula ouviu ainda de um amigo a opinião de que os termos da Politicamente Correto poderiam resultar em enxurrada de ações de indenização contra o governo. ‘É só alguém arrumar um advogado esperto e ficar esperando a hora de pedir a indenização, sob o argumento de que determinado termo o ofendeu, porque consta da cartilha.’


O próprio Lula usa mais do que ‘peão’ – ou ‘peãozada’ – em suas falas. Na entrevista coletiva que concedeu há uma semana, ele se referiu a ‘xiitas’, um dos ramos do islamismo, no sentido usado no Brasil: de pessoas radicais. O termo é desaconselhado pela cartilha por não se referir ao Islã, mas a políticos ou sindicalistas radicais e inflexíveis.


O Comitê Nacional dos Direitos Humanos vai analisar o conteúdo da cartilha e dar novo parecer, a pedido do ministro Nilmário Miranda. Mas no governo há quem duvide de que ela volte a circular depois da reação do presidente Lula. A cartilha foi editada por convênio da secretaria com a Fundação Universitária de Brasília (Fubra). A impressão dos 5 mil exemplares da primeira – e já histórica – edição custou cerca de R$ 30 mil. O texto final foi do jornalista Antonio Carlos Queiroz, vice-presidente do Sindicato dos Jornalistas.’



Carlos Heitor Cony


A correção política e verbal ‘, copyright Folha de S. Paulo, 6/05/05


‘Semana passada, numa palestra em Fortaleza, perguntaram-me sobre a necessidade de um melhor diálogo da igreja com a sociedade. É evidente que não sou autoridade nem tenho especial interesse no assunto, mas questionei as duas palavras-chaves da pergunta: ‘sociedade’ e ‘diálogo’. No caso específico da igreja, ela se preocupa não com a sociedade, mas com a humanidade, que é a mesma desde que o mundo foi criado e habitado por mais de um homem. Houve um papa, não sei se João 23 ou Paulo 6º, que lembrou ser a igreja uma ‘expert’ em homem. É isso aí.


Quanto à sociedade, o próprio fundador do cristianismo a ignorou, pregando não para ela, mas para a humanidade, da qual seus crentes até hoje o consideram salvador. Ele próprio afirmou que a sua pessoa, o seu reino, a sua fundação não eram deste mundo, embora estivessem no mundo e, no caso da igreja, fosse ela constituída por mundanos, ou seja, por homens, sujeitos aos mil acidentes da história e da carne.


A outra palavra, ‘diálogo’, vem sendo usada, abusada e até mesmo profanada em determinadas situações. Já foi dito por gente mais ilustre, como Schopenhauer e Nietzsche, que ninguém muda a opinião de ninguém. Por questão de educação, conveniência ou fadiga, aceita-se a argumentação do contraditório, mas nenhum argumento é suficientemente forte para modificar a soma de conceitos, preconceitos e intuições que cada um formou ao longo da vida. E usamos hoje a palavra diálogo como um eufemismo de ‘convencer’. Quatro prisioneiros de uma tribo de antropófagos estão ao lado do caldeirão que os assará. Os selvagens começam a festa, abrindo o apetite com cantorias e danças. Um dos prisioneiros recebe dos demais a missão de ir ‘dialogar’ com os esfomeados.


No caso da igreja, ela tem um púlpito para pregar o que julga necessário. Ainda que só tenha um fiel ou que não tenha nem isso, o púlpito lá está e, dentro dele, a mensagem que ela guarda há 2.000 anos. Quem não quiser ouvi-la tem a porta do templo aberta. Lutero foi embora por essa porta quando visitou Roma e, em outra porta, na catedral de Wittenberg, afixou sua bula, rompendo com a igreja e com o papa, criando outro púlpito, mais liberal, mais moderno, que deu lugar a outros e numerosos púlpitos, que acabaram até no púlpito eletrônico do bispo Macedo. (De forma bem mais modesta, eu também saí pela mesma porta.)


Volto à palestra de Fortaleza. Os dois termos da pergunta, igreja e sociedade, mereciam ser explicitados. Que tipo de igreja sobrevive no século 21? Ela é perfeita, irretocável? É evidente que não. Mas isso é problema exclusivo dela, de seus papas, bispos, concílios, sínodos, de sua tradição baseada numa respeitável literatura patrística. Se está ou não adequada à sociedade, o problema é saber que tipo de sociedade é esse, ou seja, a sociedade atual, pois houve centenas de sociedades que também se consideraram o estágio mais avançado da civilização, da ciência, da técnica e da moral.


E fica a pergunta: a sociedade atual é flor que se cheire? Basta abrirmos um jornal, ligarmos o rádio ou a TV, basta abrirmos a janela que dá para a rua ou olharmos para dentro de nossa própria casa, para dentro de nós mesmos, para ficarmos sabendo (se antes não o sabíamos) que estamos longe daquilo que poderíamos chamar de sociedade ideal ou de algo próximo disso.


Só para ficar em fatos e coisas recentes: a invasão do Iraque, o atentado ao World Trade Center, a chacina na Baixada Fluminense, a suposta pedofilia do Michael Jackson, a eleição do Severino -a lista seria infinita se houvesse a necessidade de provar que a sociedade na qual vivemos não merece ser levada a sério.


Sim, temos avanços notáveis -a roda inventada pelo sumérios, as caravelas dos descobridores do século 16, o celular, a internet, o barbeador de três lâminas, o peru congelado que já vem com um termômetro no peito para apitar na hora em que estiver pronto. Grande e admirável mundo novo!


Mais sintomático do que o barbeador de três lâminas e do que o peru com termômetro no peito, os entendidos descobriram que as ações e palavras devem ser politicamente corretas, adequadas à sociedade correta em que vivemos. O poema de Jorge de Lima ‘Essa Nêga Fulô’ deverá ser recitado como ‘Essa Afrodescendente Fulô’. E a obra prima do folclore gaúcho ‘O Negrinho do Pastoreio’ será corrigido para ‘O Afrodescendente do Pastoreio’. De hora em hora, a sociedade melhora?


No caso específico da igreja, ela terá de se modificar tanto e tamanhamente que uma de suas mais belas antífonas, que ela herdou do Velho Testamento, seria atualizada para dialogar com a sociedade correta. No ‘Cântico dos Cânticos’, onde o ritual cristão foi buscar dezenas de citações, está o maravilhoso verso atribuído a Salomão: ‘Sou negra e formosa, por isso o rei me amou e me introduziu em sua alcova’. Além de substituir o ‘negra’ por ‘afrodescendente’, terão de trocar o rei pelo presidente da República. A sociedade politicamente correta não é monárquica. Só serão tolerados os quatro reis do baralho.’



SEVERINO NA MÍDIA


Luís Nassif


‘Da técnica e dos valores ‘, copyright Folha de S. Paulo, 6/05/05


‘A respeito da coluna ‘Severino, o político’, do dia 3, recebo o seguinte e-mail de Valdelis Okamoto:


‘Meu nome é Valdelis. Tenho 34 anos, sou médica intensivista em São Paulo. O que me precipitou a escrever para você foi a sua coluna ‘Severino, o político’. Ela me ‘pegou de jeito’, em um momento bastante especial da minha vida, embora não ache que o presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti seja alguma espécie de estadista’.


‘Sou daquelas pessoas da classe média, com aquele característico orgulho de ter estudado no Colégio Bandeirantes, na Cultura Inglesa e na Universidade de São Paulo. No final de 2003, terminei o meu doutorado na mesma Universidade de São Paulo -sou uma verdadeira ‘prata da casa’ -e, após isso… achei-me desorientada, órfã de ‘objetivos temporários’ a perseguir.’


‘Tive a sorte de ter sido convidada para visitar a Universidade de Washington, em Seattle, e sua coluna me pegou no terço final dessa visita de três meses. Suas observações sobre a elite do nosso país, da qual eu julgo fazer parte, coincidiram com as conclusões a que dolorosamente venho chegando, ao acompanhar o dia-a-dia dos meus colegas americanos, enquanto tento aprender com eles como fazer pesquisa clínica.’


‘Acredito que muitas pessoas que se julgam ‘da elite’, como eu, podem passar um tempão no exterior bem preocupadas em aprender uma técnica, um procedimento, em obter um Ph.D., em publicar ‘papers’, em usar um daqueles aventais com um embleminha americano (no caso dos médicos) e, no entanto, sem nada absorver dos princípios e valores que regem a organização dessas sociedades mais avançadas do que a nossa, como você bem apontou na sua coluna.’


‘Somente conversando com meus colegas e amigos americanos pude perceber o tamanho da minha ignorância a respeito dos problemas de saúde no Brasil. Somente vendo como funcionam as unidades de terapia intensiva americanas é que pude avaliar a minha falta de noção de conjunto das UTIs brasileiras -e o assunto terapia intensiva é complexo e delicado, pois, por um lado, oferece a chance de recuperação de situações muito graves, e, por outro, pode levar ao prolongamento sem sentido do processo de morte, como um substituto capenga para a falta de preparo na oferta de cuidados paliativos eficazes -mas isso é assunto para outra carta!’


Valdelis abriu os olhos e enxergou. Certamente, voltará dos Estados Unidos agregando não apenas técnicas mas maneiras diferentes de olhar a saúde do país. Não será nem cabeça de planilha nem cabeça de tomógrafo, mas uma brasileira efetivamente internacionalizada -na melhor acepção do termo, e não como tantos Ph.D.s que voltam de lá, sem referência nem de Brasil nem do mundo que freqüentaram como penetras no baile.’



Barbara Gancia


‘Acidente, uma ova! ‘, copyright Folha de S. Paulo, 6/05/05


‘Quer dizer que o cabra-sarado do Severino considera o estupro um ‘acidente horrendo’? Sei. Pois, na minha modestíssima opinião, por tudo o que Severino Cavalcanti fez e disse desde que assumiu o terceiro cargo mais importante da República, só podemos concluir que ‘acidente horrendo’, de fato, foi a eleição que o colocou onde está.


O machismo paleontológico do presidente da Câmara só não é maior do que a retumbante desinformação que ele faz questão de alardear.


Com 40 anos de experiência como legislador, ele já deveria saber que, de acordo com a lei, a questão do estupro não se presta a interpretações vãs. Trata-se de uma forma de violência proposital, covarde e brutal.


Severino poderia ter aproveitado para se informar melhor sobre o assunto quando seu colega de partido, o ex-prefeito Paulo Maluf, causou indignação ao pronunciar a famigerada frase: ‘Estupra, mas não mata’.


E é bom que soubesse que chamar qualquer forma de violência de ‘acidente’ é um recurso muito utilizado por canalhas.


Ainda devem estar frescas na memória do leitor as imagens gravadas em 27 de fevereiro, nas câmeras do circuito interno de segurança de um supermercado de Sobral (CE), em que um juiz, aparentemente embriagado, dispara um tiro à queima-roupa contra um vigia indefeso.


Pois esse cidadão também se valeu do manjado eufemismo para justificar a violência cometida.


Em depoimento à Justiça, o juiz Pedro Percy Barbosa Araújo disse o seguinte: ‘O vigia me destratou (…) tentei chamar a polícia e o adverti de que poderia prendê-lo. Em seguida, houve um bate-boca e a arma acabou disparando acidentalmente’.


Pelo visto, algumas mulheres não precisam da ajuda de severinos para desaboná-las. Na vida pública, em quantidade de escândalos, o sexo frágil não deve nada aos homens.


A saber: a vereadora Maeli Vergniano teve o mandato cassado na gestão Pitta, a ministra Benedita da Silva usou dinheiro público em viagem e Roseana Sarney foi envolvida em denúncias durante a última campanha presidencial.


Em Sampa, a vereadora Claudete Alves responde a inquérito por manter caixa-dois e sua colega, Myryam Athiê, pode ser cassada por favorecer empresas de ônibus. Enquanto isso, Marta Suplicy é acusada de desrespeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal e a prefeita Luizianne enfrenta denúncias de nepotismo.’



ARQUIVOS DA DITADURA


Mauro Marcelo de Lima e Silva


‘Meias mentiras, meias verdades’, copyright O Globo, 6/05/05


‘A abertura dos arquivos do período de exceção demonstra maturidade democrática de uma nação. Precisamos passar a limpo essa história do país. Existem, é claro, limitações materiais, pois os arquivos estão microfilmados e a sua digitalização e análise não será possível antes de pelo menos um ano.


Nesses arquivos constam verdades e mentiras, além das piores informações, que são as mentiras mescladas com fatos verdadeiros, para dar maior credibilidade à informação.


Trata-se também de um universo de documentos polvilhados de jargões como ‘consta que’, ‘dizem que’ e ‘sabe-se que’ , a rechear os informes e relatórios com pseudo-credibilidade, no intuito de transformar falácias em verdades cristalinas, cabais.


Tais relatos indicam que o prazer orgástico daquele período seria buscar, dentro da intimidade das pessoas, fatos que, se tornados públicos, seriam constrangedores, tais como homossexualismo, relações extra-conjugais, uso de drogas etc. Esses dispositivos descritivos eram vastamente repletos de vilanias, cuja finalidade era calar os perseguidos. E se isso deu ‘resultados’, somente os próprios é que podem avaliar.


O grande dilema do governo, hoje, é definir como, quando e para quem essas informações serão liberadas. Mesmo sabendo que as informações são carregadas de verdades, mentiras e meias-mentiras, elas podem, muito tempo depois, criar embaraços, constrangimentos e gerar crises.


As leis de acesso à informação pública começaram em 1766 na Suécia, e constaram da Constituição daquele país em 1949. Nos EUA, surge em 1966 o Freedom of Information Act, ou Foia, cuja rota foi aperfeiçoada em 1974, pela Lei da Privacidade, que não somente balizava o que poderia ser tornado público, como também facultava aos cidadãos americanos que pleiteassem correções de informações errôneas e equivocadas que sobre eles constassem dos arquivos do Estado. Esse conjunto de vindicações de dados, em todo mundo, mostra que é correto o ethos pelo qual a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) ora se pauta: a liberação deve ser facultada pela ética, prudência e legalidade, princípios básicos que faltaram àqueles que produziram esse amontoado de bobagens.


Muito dinheiro e tempo foram gastos, inutilmente, para erigir extratos de supostas circunstâncias, redigidos com a pena da inverdade e as tintas da má-fé. E nisso tudo repousa a prudência que ora deve ser adotada.


Seria ingenuidade, portanto, acreditar que aqueles que produziram tanta bobagem deixariam pistas de autoria dessas infâmias. Não deixaram. Temos apenas registros de um período que passou e que não queremos de volta.


Diante dessa mistura de mentiras, meias-verdades e meias-mentiras com fatos reais fica muito difícil saber o que é falso e o que é verdadeiro. No período de exceção, a defesa da mentira como verdade tentava nos confundir. Utilizava para isso a desinformação – que é um mix , um melánge de fatos verdadeiros com e falsos, objetivando um resultado predeterminado, artifício conhecido na filosofia como telenomia.


Concretamente, a divulgação do conteúdo de documentos sigilosos está sendo reavaliada no âmbito do Executivo e do Legislativo. De forma mais efetiva, o governo tomou a iniciativa de modificar marcos legais existentes, editando a Medida Provisória n 228/2004 e o decreto n 5.301/2004. Tudo isso justamente com o objetivo de atender aos legítimos anseios democráticos, fazendo-o sem comprometer ou pôr em risco os interesses do Estado.


Certamente, a Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas terá todas as condições para decidir sobre as ressalvas, ou seja, as informações que devem ser preservadas sob regras de sigilo. Isso para que não se coloque, inadvertida e obliquamente, o Estado brasileiro numa situação de fragilidade, seja no contexto da estabilidade interna ou da cena internacional.


A bússola a guiar a abertura dos arquivos deve indicar com precisão as latitudes éticas dos direitos particulares e, com pertinácia, os limites geopolíticos do Estado. E é esse rumo que guia toda a preocupação da Abin.


MAURO MARCELO DE LIMA E SILVA é diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).’