Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

João Gabriel de Lima

‘No conto A Biblioteca de Babel, o escritor argentino Jorge Luis Borges descreve um edifício imaginário que guardaria todos os livros do mundo e, conseqüentemente, abrigaria as respostas a todas as perguntas e as soluções de todos os enigmas. Na semana passada, o Google se aproximou da fantasia do autor de O Aleph. O mais famoso programa de busca da internet acaba de fechar um acordo com algumas das maiores bibliotecas do mundo – a pública de Nova York, a das universidades americanas de Stanford, Harvard e de Michigan e a da universidade britânica de Oxford. Pelo projeto, batizado de Google Print, a empresa irá digitalizar o conteúdo de mais de 16 milhões de livros, com o intuito de permitir que grande parte deles possa ser consultada via internet. Segundo estimativas, a operação custaria em torno de 160 milhões de dólares. Recentemente, a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, a maior do mundo, anunciou um programa parecido, mas bem mais modesto – ela digitalizará 1 milhão de livros. Já existem na internet sites em que é possível acessar o conteúdo de obras clássicas. O mais famoso deles é o Bartleby, da universidade nova-iorquina de Columbia. No amazon.com, podem-se ler trechos de livros à venda no site. A inovação que o Google traz é a combinação da biblioteca com o programa de busca. Num futuro próximo, quando o usuário digitar a palavra ‘geografia’ na página do Google, não terá acesso apenas aos links sobre o assunto. Além deles, aparecerá na tela uma bibliografia básica a respeito do tema. Clicando sobre um dos livros, o usuário terá duas alternativas. Se a obra for de domínio público, poderá imprimi-la na hora. Se estiver protegida por direito autoral, será encaminhado a uma loja (real ou virtual) na qual possa adquiri-la.

A biblioteca virtual do Google é uma revolução na medida em que redefine o papel do invento de Tim Berners-Lee – a leitura remota instantânea de documentos via internet. Até pouco tempo atrás, achava-se que a rede mundial de computadores tinha principalmente quatro utilidades. A comunicação – através do e-mail -, o entretenimento, com brincadeiras como os diversos blogs e o Orkut, a informação instantânea e a venda de produtos. Os programas de busca mostraram que a internet possuía uma função mais nobre: tornar o conhecimento acessível. Numa entrevista dada há quatro anos, o escritor italiano Umberto Eco, um estudioso do assunto, antevia que a verdadeira revolução da rede era disponibilizar, pela primeira vez na história da humanidade, uma quantidade enorme de informação a baixo custo. O problema, segundo ele, seria localizar os bons sites em meio a uma floresta de irrelevâncias. O tempo trouxe as respostas para os dilemas de Eco. Atualmente, a área da internet em que mais se investe é a dos buscadores, justamente as ferramentas destinadas a guiar o usuário pelo caos da rede. Essa tecnologia se aprimora cada vez mais, e hoje é possível rastrear com facilidade a impressionante quantidade de jóias do conhecimento humano que estão disponíveis na internet, das peças de Shakespeare ao acervo do Museu do Louvre (veja quadros). Em meio a tantas informações, o usuário quer filtrar o que tem qualidade, e os buscadores vêm-se direcionando nesse sentido. Há um mês, o Google colocou no ar um serviço dedicado a teses e artigos acadêmicos. O projeto Google Print chega para coroar essa revolução, disponibilizando para seus usuários os 16 milhões de livros de sua megabiblioteca. É como se o conhecimento humano estivesse ao alcance de um ‘enter’ de computador.

O advento do Google Print traz uma controvérsia e várias especulações. A polêmica seria por causa do direito autoral. Quando o projeto foi anunciado, muita gente temeu que ele tivesse sobre o mercado editorial o mesmo efeito devastador que o MP3 teve sobre a indústria fonográfica. Os executivos da empresa tranqüilizam os editores. ‘O efeito sobre o mercado de livros será positivo, na medida em que respeitaremos o direito autoral e ainda ajudaremos a divulgar as obras, recomendando-as aos usuários que pesquisam’, disse a VEJA Debbie Frost, gerente internacional de relações públicas do Google. As especulações são sobre o futuro dos programas de busca na internet. O sucesso do Google – que deve faturar 3 bilhões de dólares neste ano, e cujas ações atingiram o valor de 54 bilhões de dólares na bolsa Nasdaq – fez com que as gigantes do segmento concentrassem seus esforços no desenvolvimento de tecnologias na área. Numa entrevista recente, o americano Bill Gates, dono da Microsoft, admitiu que sua empresa havia investido pouco no nicho – o qual, agora, considera prioritário.

‘Pode-se dizer que a tecnologia dos buscadores ainda vive sua infância, e as empresas iniciaram uma corrida para oferecer novos produtos aos clientes’, diz Osvaldo Barbosa de Oliveira, diretor para a América do Sul do MSN, a divisão de internet da Microsoft. ‘Essa corrida, no entanto, não é de 100 metros, mas uma maratona. Muitas novidades ainda estão por vir.’ A idéia é que essas tecnologias atendam cada vez mais aos interesses específicos dos usuários. Já existem buscadores focados em notícias, produção científica e obras de psicologia, entre outros assuntos. Em caráter experimental, a Microsoft já colocou no ar um programa de busca capaz de responder a perguntas objetivas – qual a capital do Brasil, qual a maior montanha do mundo – e resolver equações matemáticas simples. Outra experiência em curso é a de um buscador interativo, que selecione as respostas de acordo com o interesse do usuário, expresso em consultas anteriores. Tudo isso, no entanto, ainda é pouco diante das infinitas possibilidades abertas pela megabiblioteca do Google. É de supor, por exemplo, que dentro de alguns anos seja possível rastrear informações sobre algum assunto específico dentro de todos os livros da biblioteca. Borges dizia que o saber tem zonas mortas, que são os conhecimentos perdidos em obras que ninguém lê. No Google Print, até essas informações estariam acessíveis. O autor argentino, morto em 1986, ficaria feliz se soubesse que no futuro seria inventada uma ferramenta – a internet, com seus buscadores acoplados a uma biblioteca – capaz de organizar, ainda que parcialmente, o caos do conhecimento.’



Sérgio Augusto

‘A biblioteca tem futuro’, copyright O Estado de S. Paulo, 19/12/04

‘O grande assunto da semana foi a memória. No Brasil, deu Alzheimer e Torquemada. Nos EUA, deu Google.

Enquanto deplorávamos a queima de documentos da ditadura militar na Base Aérea de Salvador e a descoberta do papelório secreto de Tarso Dutra, ministro da Educação do general Costa e Silva, transformado em lixão biodesagradável nos arredores de Porto Alegre, o Google lançava o embrião da primeira biblioteca global virtual. Terça-feira passada os criadores da ferramenta de busca e pesquisa mais popular da internet assinaram um acordo com a Biblioteca Pública de Nova York e as bibliotecas das Universidades de Harvard, Michigan e Oxford para converter seus acervos em arquivos digitais e torná-los disponíveis na grande infovia.

Calcula-se que daqui a duas décadas 15 milhões de livros, manuscritos e outros documentos serão postos ao alcance do dedo de qualquer internauta. De graça. Custo estimado para scanear e digitar tudo: US$ 150 milhões. Os patrocinadores do Google vão arcar com as despesas e várias empresas já se prontificaram a custear a transferência de cada acervo digitalizado para os sites das bibliotecas envolvidas no projeto.

Também na última semana, a Biblioteca do Congresso, em Washington, fechou contrato com um grupo internacional de bibliotecas americanas, canadenses, egípcias, chinesas e holandesas visando a disponibilizar em rede 1 milhão de livros, 70 mil dos quais já poderão ser lidos e consultados por computador daqui a quatro meses. Para evitar problemas de cópias ilegais, as bibliotecas virtuais só darão acesso irrestrito a obras cujos direitos autorais caíram em domínio público. Das demais, apenas trechos poderão circular pela internet. Mas rigorosamente tudo será scaneado, digitalizado e arquivado, pois, além do limite de espaço, as bibliotecas já não conseguem guardar com segurança os seus tesouros impressos. Papel envelhece, pega fogo com facilidade e não tem backup.

Bibliotecas e acervos correlatos sempre viveram em sobressalto, à mercê de vândalos e desgraças naturais. Causas diversas deram sumiço a 83 peças de Ésquilo, a vários escritos do historiador Tito Lívio, a tudo que havia na legendária biblioteca de Alexandria e aos 300 mil volumes da preciosa biblioteca de Louvain, na Bélgica. A Real de Lisboa só se salvou de outro terremoto e da pilhagem napoleônica porque D. João VI a trouxe consigo para o Rio de Janeiro. Continuamos expostos aos mesmos percalços e, de uns tempos para cá, sujeitos a novas calamidades, como a venda e doação de livros, ‘para abrir espaço’, praticadas por algumas instituições aparentemente sérias, como a Biblioteca Pública de São Francisco, na Califórnia, que levou uma fubecada de Nicholson Baker no livro Double Fold, e a British Library, que recentemente acertou a comercialização online de 2,5 milhões de livros ‘dispensáveis’ de seu acervo com a Amazon.com.

Na contramão desse vandalismo light, surgiu há dois anos, no Egito, uma nova Biblioteca de Alexandria. Notícia mais auspiciosa, do ponto de vista simbólico, impossível. Marketing prematuro (e obviamente involuntário) da atual voga alexandrina, seu objetivo inicial era oferecer o mesmo serviço que a biblioteca original prestou a Arquimedes, Euclides e outros clientes menos célebres e sábios. Suas ambições incharam depois que o Google – e também a Microsoft, a Amazon e a Yahoo – prometeram levar a inclusão digital às últimas conseqüências.

Não foi Alexandre Magno quem mandou construir a primeira Biblioteca de Alexandria, mas seu sucessor, Ptolomeu II. De qualquer modo, a idéia de abrigar sob o mesmo teto todo o conhecimento humano até então produzido partiu de Alexandre, que não foi educado por Aristóteles à toa. Destruída há mais de mil anos, por ordem, dizem, de um califa, seu acervo, para usar a imagem de Borges, ultrapassava o número dos astros no céu e os grãos de areia do deserto. Sua versão moderna não chega a tanto, mas leva uma vantagem: já nasceu informatizada. Se pegar fogo ou explodir, seus 250 mil livros reaparecerão alhures, preservados em CDs. Milagres da informática.

A nova Biblioteca de Alexandria não apenas fez backup de seu patrimônio, como pretende enriquecê-lo virtualmente com milhares de outros volumes, de diferentes instituições estrangeiras, para dar início a um audacioso projeto de revolucionar o ensino pela internet, sobretudo em países mal servidos de bibliotecas públicas e privadas. Como a biblioteca virtual do Google, é comodidade para daqui a alguns anos. Converter toneladas de documentos impressos em arquivos digitais é um trabalho insano e dispendioso.

Agora, a má notícia. Se não má, preocupante. A preservação digital não é uma garantia de sobrevivência. Temporária, sim. Ao contrário dos diamantes, os arquivos digitais não são eternos. Backups freqüentes certamente darão conta dessa deficiência, mas, como os computadores e os softwares mudam de formato a três por dois, o grande desafio para o Google e demais instituições empenhadas na sobrevivência e difusão do saber na era da informática será encontrar um padrão de preservação refratário ao obsoletismo, para que os arquivos gravados hoje ainda possam ser lidos no futuro. Haja pesquisa. E, acima de tudo, grana. Quem viver verá. Ou não verá nada.’



Daniel Hessel Teich

‘Crescem os ataques a sites empresariais’, copyright O Estado de S. Paulo, 19/12/04

‘Os crescentes investimentos em segurança de sistemas não têm conseguido barrar os ataques feitos a empresas que se valem da internet para realizar seus negócios. Pesquisa realizada pela consultoria internacional KPMG com grandes corporações brasileiras demonstra que a ocorrência de ataques a sites empresariais na rede aumentou 22% nos últimos 2 anos. Em 2002, quando foi realizada a primeira pesquisa, 9% das empresas entrevistadas declaravam ter sofrido alguma violação de seus sistemas. Este ano, 11% das entrevistadas declararam ter sofrido alguma fraude eletrônica.

Para as empresas que responderam ao questionário, as falhas na aplicação de políticas de segurança e os ‘hackers’ são as maiores ameaças aos negócios eletrônicos. Para 58% delas, as falhas são o que mais assusta, enquanto os ‘hackers’ foram citados por 49%. ‘A internet criou uma situação em que uma pessoa com um computador, linha telefônica, conexão discada e um programa pirata consegue provocar prejuízos monumentais a uma grande empresa’, diz Frank Meylan, especialista em informática da KPMG e um dos coordenadores do estudo.

Segundo Meylan, um bom exemplo são as notícias recentes envolvendo golpes com um programa chamado Cavalo de Tróia. O programa se instala no computador por meio de um e-mail com aparência inocente e abre as portas para estragos gigantescos. No Brasil, esse tipo de fraude originou uma operação da Polícia Federal batizada de Cavalo de Tróia 2 há pouco mais de um mês. Na operação, 64 pessoas foram presas no Pará, Tocantins, Maranhão e Ceará. Os criminosos roubavam dados de clientes de bancos que faziam operações pela internet e depois esvaziavam as contas. Ao todo foram desviados R$ 240 milhões de contas em bancos públicos.

‘Da mesma forma que os mecanismos de segurança se sofisticam, esses invasores acompanham a evolução da tecnologia e conseguem vencer as barreiras com novos golpes’, afirma o coordenador do estudo, Werner Scharrer, sócio da KPMG no Brasil.

Mas Scharrer alerta também para a ameaça que está do lado de dentro das empresas. ‘É comum as corporações instalarem sistemas extremamente seguros e falharem em situações básicas como a parametrização do acesso às informações’, diz. ‘Muitas vezes, funcionários são transferidos de áreas sem que seu acesso aos dados da área anterior seja bloqueado, por puro descuido do administrador do sistema. Isso facilita fraudes. Outras empresas têm áreas que deveriam ser restritas, mas são acessadas indiscriminadamente.’

A situação é tão séria que parte dos entrevistados aponta funcionários atuais e ex-funcionários entre as principais ameaças aos negócios pela internet. Para 13% das empresas que responderam o questionário, os ex-funcionários são uma grande ameaça aos negócios eletrônicos, enquanto para 11% delas os funcionários atuais cumprem esse papel.

A preocupação com fraudes de origem interna é tamanha que hoje está em curso uma pequena revolução na forma como as redes de computadores são vistas em grandes empresas e bancos. ‘Quando a internet começou, todos buscavam a conectividade máxima, com o maior número de pessoas possível integradas aos sistemas’, explica Meylan. ‘Isso virou uma dor de cabeça, com pessoas acessando áreas que não deviam.’ Segundo ele, as empresas já começam a reverter esse processo e criar áreas isoladas, de acesso cada vez mais restrito. ‘Esse é um fenômeno que acontece muito nos bancos.’

Fraudes eletrônicas são uma espécie de tabu para os bancos. Nenhuma instituição fala com naturalidade sobre esse assunto, uma vez que pode comprometer segmentos de negócios que crescem cada vez mais. Os bancos brasileiros investiram, em 2003, R$ 4,2 bilhões em novas tecnologias de informação, boa parte delas relacionada à segurança das operações.’



HQ
Jotabê Medeiros

‘Marcatti e a podridão da comédia humana’, copyright O Estado de S. Paulo, 20/12/04

‘Da mesma estirpe maldita de Gregório de Mattos Guerra, Qorpo Santo, Jards Macalé e Itamar Assumpção, o cartunista Francisco Marcatti Jr. (ou simplesmente Marcatti) é há 27 anos uma das figuras mais execradas das HQs nacionais. Com razão: ele é escatológico, ele é sexista, ele é podre. Mas a rejeição pública esconde também uma grande dose de ignorância: o sujeito é um dos mais geniais artistas dos quadrinhos no País.

Após quase três décadas vendendo seus malamanhados gibis em portas de cinemas, teatros e bares, Marcatti acaba de ganhar um contrato profissional de responsa, com a Editora Conrad. É como se um peladeiro de praia fosse contratado pelo Santos F.C., de uma hora para outra.

O paulistano Marcatti desenha desde os 7 anos. Aos 18 anos, gastou tudo que tinha (e o que não tinha) para comprar uma impressora off-set. Publicou pela primeira vez em agosto de 1977, na edição n.º 1 da revista Papagaio. Desde então, notabilizou-se por álbuns pegajosos (e criativos), como Fráuzio, Mijo, Tralha (com Mutarelli) e Glaucomix – este em parceria com o escritor Glauco Mattoso. Também contribuiu com as já lendárias revistas Chiclete com Banana e Circo, além de criar a capa dos discos Brasil e Anarkophobia, da banda Ratos de Porão (assim como um dos seus ídolos, Robert Crumb, desenhou a capa de Cheap Trick, de Janis Joplin). Seus trabalhos renderam-lhe quatro prêmios HQ Mix e um prêmio Jayme Cortez.

Marcatti assinou contrato com a Conrad para fazer uma história de fôlego, batizada de Mariposa (R$ 19,00, 84 páginas). Eis a sinopse: numa boate de quinta categoria, as prostitutas Fercínia e Marlésia fazem shows decadentes e são exploradas pelo cafetão Herminiano. Fercínia, no entanto, alimenta esperanças de mudar de vida. Ela acha que um dos clientes mais assíduos da casa, Nevair, vai arrancá-la da rotina de exploração.

‘Que tipo de sujeito dá flores para uma prostituta?’, pergunta Marlésia à colega Fercínia. O que ela não sabia é que as flores de Nevair também a colocariam em um caminho diferente na vida.

Mariposa é organizada com flash-backs e um sentido punk para a narração da rampeira comédia humana, que começa numa cama de adolescente, passa pela cama saudosista dos anciãos e desemboca na cama oportunista da maturidade. E com um leve toque de realismo fantástico no final, coisa que o leitor não adivinharia mesmo se quisesse.

‘Mariposa é a mais longa HQ que já escrevi’, conta Marcatti. ‘Escrever uma história desse porte me deu espaço para elaborar e aprofundar a construção das personagens e dos elementos como não havia feito antes.’ Ele elogia a disposição de sua nova editora, a Conrad, em tratar os quadrinhos com a mesma atenção e o carinho que normalmente são dados à literatura. ‘Isso me forneceu a oportunidade de desenvolver uma história mais complexa, mais densa. O livro é um romance. Com todos os elementos, prazeres e dissabores de um insólito triângulo amoroso’, define.

Marcatti tem 42 anos e quatro filhos. Diz que sua temática e os personagens meio asquerosos que usa para tratar da condição humana sofrem rejeição até da própria família. ‘Minha mãe, Dora, mora em Santos, no litoral paulista, e tem muito orgulho do filho, apesar de sentir nojo em ler minhas HQs. Tenho um casal de irmãos e alguns amigos de infância que deixariam de ser se seus nomes fossem vinculados a alguém como eu’, diverte-se.

Suas histórias têm sempre um certo tom de pessimismo e desencanto, e os personagens chegam ao fundo do poço do patético. O certo é que, desde os anos 80, um gibi de Marcatti nunca passa despercebido. Este ano, ele emplacou de novo um trabalho no HQ Mix, a publicação independente Desventuras de Fráuzio.

Algumas vezes tentaram tirá-lo desse território misterioso de eterno alternativo. Em 2000, a editora Ópera Graphica lançou uma coletânea de suas ‘piores histórias’ no álbum Restolhada. Ele continuou lá, no limbo, mas com honesta fidelidade ao princípio de ser ele mesmo: um tanto tosco, sujo e asqueroso. Mas sempre com a consciência limpíssima.’

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‘‘Sou pós-graduado em teimosia’, diz o desenhista’, copyright O Estado de S. Paulo, 20/12/04

‘Menos filosófico que Laerte e menos publicável que Angeli. Irmão de fé das obsessões de Adão Iturrusgarai, neto degenerado de Carlos Zéfiro.

Marcatti, o sujeito em questão, faz a avaliação da própria obra em entrevista ao Estado.

Olho seu trabalho e penso em Crumb, vejo Crumb aqui e ali. Depois, olho melhor e digo: não é Crumb, é mais remoto, é Al Capp. Aí, não chego a conclusão nenhuma. Quais foram suas maiores influências?

Lá no princípio, 1976, 1977, o Crumb realmente me inspirou. Mas foi principalmente Gilbert Shelton (criador dos Freak Brothers) e, mais tarde, seu mestre Basil Wolverton que foram e ainda são minhas principais influências no traço. Minhas narrativas, podem não parecer, são influenciadas por René Goscinny (Asterix) e Hergé (Tintin). Nos textos e temas, divido minhas atenções entre os escritores Henry Miller, Jean Genet, Hermann Hesse, com o cinema clássico americano (John Huston, Otto Preminger) e o cinema alemão de Werner Herzog e Fritz Lang.

Os caras mais ‘malditos’ das artes brasileiras hoje são o Glauco Mattoso e você mesmo. Poucos sujeitos conseguem causar reações de rejeição tão fortes. Você se acha em boa companhia com o Glauco?

Não sei se o Glauco se sentiria à vontade em ser comparado à mim. Mas, da minha parte, é uma honra figurar ao seu lado. Glauco Mattoso é um monstro sagrado da literatura e quisera eu ter o brilhantismo e lucidez que ele possui.

Uma vez eu falava com um amigo jornalista sobre seu trabalho e ele disse: ‘Marcatti? Quem? Aquele cara é doente!’ Você é doente? O que o faz procurar uma temática tão polêmica e disforme?

Doente?… Às vezes sinto um pontada aqui, uma dorzinha ali… Mas nada que um bom laxante não resolva… Não vejo minhas histórias sendo tão polêmicas. A escatologia é um mero condimento no desenrolar das tramas simples de minhas personagens.

Mesmo nas HQs internacionais, hoje, poucos artistas mantêm uma coerência tão grande quanto você. Isso, muito provavelmente, manteve você fora das grandes editoras por muito tempo. Como sobrevive? Que tipo de atividade você exerce, além de cartunista?

Sou pós-graduado em teimosia e bacharel em murro em ponta de faca. Como nunca procurei por uma grande editora e não é costume dela, no Brasil, ir à caça de autores, ficar fora das editoras se deve muito mais à minha insistência quase obsessiva em ser independente. O quadrinho nunca foi fonte de renda, mas nada me realiza mais do que criar, desenhar e contar histórias de pessoas que quase existem.

Como você define esse trabalho, o Mariposa, que abre com um texto dizendo o seguinte: ‘Permito-lhe, caro leitor, que me ouça, mas não lhe dou o direito de me aconselhar em nada.’ Isso parece soar como um harakiri artístico, não?

A frase a qual você se refere é parte da introdução do Mariposa. Como o livro é narrado em primeira pessoa, o pensamento vem do protagonista que naquele momento degusta os sabores amargos de sua solidão.

Você nunca teve problemas com as feministas? Não te acusaram de sexista, porco chauvinista, etc. e tal?

Espero que isso nunca aconteça. Vejo a mulher quase como uma entidade superior da qual nós, homens, somos inteira e completamente dependentes e submissos. É ela que quase sempre tem papel decisivo nas minhas histórias a despeito dos protagonistas masculinos acreditarem-se heróis dos acontecimentos. Não é à toa que a palavra protagonista tem sua inflexão feminina. Se, como autor, alguma vez não me fiz entender, é porque sou um macho. Com todas as limitações, incoerências e pobreza de princípios que essa natureza me concerne.’