Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Jornais e TVs são o novo front no Egito


O Estado de S.Paulo, 10/2


Lourival Sant’Anna


Jornais e TVs são o novo front no Egito


Cerca de 20 tanques e dezenas de soldados do Exército protegem a frente do edifício redondo da rádio e TV estatal, na beira do Rio Nilo, a menos de um quilômetro da Praça Tahrir. Ao lado, o prédio do Ministério das Relações Exteriores parece bem menos vital para o regime: ‘apenas’ seis tanques. No começo dos protestos, dia 25, os manifestantes tentaram tomar a TV – um alvo clássico nas insurreições. E falam em tentar de novo.


A guerra no Egito luta-se com slogans, pedras, jatos d’água, gás lacrimogêneo e munição real, mas é também uma guerra de informação.


O Estado possui nove canais de TV – um para cada província, mas todos captados nacionalmente – e um número equivalente de emissoras de rádio. Não existe canal privado de TV aberta. Mas elas estão nas frequências captadas com antena parabólica – que custa cerca de 500 libras egípcias (US$ 83) e muitos egípcios têm. Não é preciso pagar assinatura.


A entrevista dada na segunda-feira a um deles, a Dream TV, pelo diretor de Marketing do Google para o Oriente Médio, Wael Ghonim, preso durante 12 dias, serve de combustível novo para as manifestações na praça.


Dos seis principais jornais do país, três pertencem ao governo – Al-Ahram (A Pirâmide) e Al-Akhbar (A Notícia) e Al-Gomhouria (A República) – e três são independentes – Al-Masry al-Youm (O Egito Hoje), Al-Dustour (A Constituição) e Al-Shorouk (O Amanhecer).


Suas manchetes de ontem dizem tudo sobre suas tendências. Al-Ahram e Al-Akhbar saíram com títulos praticamente iguais, citando uma declaração do vice-presidente Omar Suleiman: ‘Negociações ou insurreição’. E acrescentavam nos subtítulos: ‘A primeira nos tira da crise; a segunda é imprevisível, e queremos evitar.’


Já o Al-Masry al-Youm destacou: ‘Praça Tahrir lotada; manifestantes cercam o Parlamento.’ O subtítulo diz: ‘Formado comitê para supervisionar mudanças na Constituição.’ A manchete do Al-Dustour foi: ‘Impedido de entrar no prédio do Conselho de Ministros, primeiro-ministro Ahmed Shafik sai do Parlamento disfarçado.’


E há as emissoras de TV internacionais e os sites de notícias na internet. A escolha da fonte de informação define a posição de cada egípcio no conflito.


Fontes alternativas. ‘Eu me informo pelos sites da BBC, da CNN e das agências internacionais de notícias, e pela TV Al-Jazira’, conta o estudante de engenharia Mohamed el-Zaieri, de 20 anos, que apoia as manifestações na Praça Tahrir. ‘Não dou atenção à TV estatal.’


Ele diz que o custo mensal da conexão de internet não é um problema: 30 libras egípcias (US$ 5), e um computador top de linha sai por US$ 500 no Egito, onde o imposto de importação é baixo.


Já Nadia Abdel Moty, de 55 anos, afirma que assiste à TV estatal ‘o tempo todo’, e acredita ‘em tudo o que ela diz’. Dona de uma loja de roupas populares num mercado no centro do Cairo, ela que prefere destinar o dinheiro que custa um jornal – 1,25 libra egípcia (US$ 0,21) – a ‘coisas mais importantes, como pão’.


Além do noticiário, Nadia gosta de assistir às novelas na TV, mas ficou chocada com a última, ‘Zohra’, sobre uma mulher que se casou cinco vezes e ‘não se vestia de forma apropriada’. A comerciante acha que o governo já fez muitas concessões e os manifestantes da Praça Tahrir devem voltar para casa.


Magdi el-Prince, de 57 anos, dono de uma butique de roupas femininas, pensa o contrário: ‘Não podemos desistir agora. Mudanças só ocorrem uma vez na vida. Estou muito feliz porque os jovens fizeram o que minha geração nunca conseguiu fazer.’ Ele lia o Al-Akhbar durante a manhã de ontem, mas disse que o jornal do governo ‘só traz mentiras’.


Prince declarou que se informa principalmente pelo canal de TV saudita Al-Arabiya, preferido por muitos que consideram que a Al-Jazira se tornou tendenciosa demais em favor da oposição.


CINCO RAZÕES PARA…


Explicar a revolta do mundo árabe


1. Há um conflito de gerações entre os velhos governantes e a maioria jovem. Atualmente, cerca de 65% dos egípcios têm menos de 30 anos.


2. A riqueza adquirida de recursos naturais não poderá continuar a ter o mesmo efeito legitimador para regimes árabes no futuro.


3. A carta ‘teológica/teocrática’ usada para difamar islâmicos vem se desgastando porque muitos se mostraram menos radicais que o governo.


4. Todo o questionamento de agora não teria sido possível sem o impacto da tecnologia que conectouos muçulmanos ao mundo.


5. Os egípcios vivem um tempo de crescente enfraquecimento do ímpeto das ideologias não democráticas dos anos 1950 e 1960.


 


 



Computerworld EUA, 8/2


Mike Elgan


Por que o Egito falhou na tentativa de derrubar a Internet


Quais foram os ensinamentos que a crise no Egito nos deixa? Será mesmo possível bloquear a comunicação entre seres humanos?


Ontem à noite, já passava das dez quando recebo um telefonema em meu iPhone. Para minha grata surpresa, era meu filho que ligava – do outro lado do mundo – para ter a mais trivial das conversas comigo. Era algo sobre o iTunes; ele perguntava como adicionar músicas a partir de outro PC.


A chamada fora efetuada usando o Skype e a qualidade da ligação era próxima a da perfeição.


‘É paradoxal’, pensei alto. Conversar com alguém a milhares de quilômetros está tão fácil quanto se comunicar com quem está no quarto ao lado. O preço, pelo menos, é o mesmo.


Ele usou a Internet para me ligar, eu usei a Internet para receber a chamada.


Apesar de corriqueira, toda a sessão me pôs a pensar sobre os limites da Internet. Estariam as redes de telefona celular ‘dentro’ da Internet? E as linhas de telefonia fixa, essas também? Se esse for o caso, pergunto: existe algo que não esteja na Internet?


Teria a Internet assimilado a raça humana? Se for considerar os eventos ocorridos no Egito na semana passada, temo que a resposta seja sim.


Resistir é inútil


A internet foi concebida como via de comunicação entre redes sem ter sido implementado um botão de liga/desliga. Sua arquitetura decentralizada e flexível é à prova de bombas nucleares. A matéria-prima de que a Internet consiste é um conjunto de protocolos que nós, humanos, conhecemos por TCP/IP.


Na verdade, ela não passa de um conjunto de regras e o funcionamento da rede consiste na adoção dessas regras.


As regras determinam a flexibilidade e tal flexibilidade é fundamental para a robustez de todo o sistema.


O que aconteceria se, de uma hora para a outra, desligássemos os servidores que supervisionam o cumprimento dessas instruções da Internet? A situação do Egito deixa claro que podemos desligar a rede, mas não é possível parar o tráfego de informações sobre os acontecimentos.


Por que não foi possível cortar a Internet no Egito?


Hosni Mubarak, presidente do país árabe do Norte do continente africano fez o que nenhum líder jamais fez em toda a história da internet: ele derrubou a rede do país por cinco dias consecutivos.


O levante egípcio começou em 25 de janeiro e fora combinado usando meios de comunicação virtual, como o Twitter e o Facebook. Dois dias depois, o governo daquele país ordenava que a Internet fosse deligada pelos provedores; menos de 24 horas mais tarde, era a vez de os celulares ficarem indisponíveis.


Na perspectiva do governo, tais medidas seriam suficientes para dar um basta nas comunicações contrárias ao governo.


A tática era elementar e surtiria pouco ou quase nenhum efeito. Ela se mostrou tão eficaz quanto atrasar um relógio na tentativa de evitar que determinada hora do dia chegasse.


Quebrando as regras


Então, um estudante de nome John Scott-Railton, fluente no idioma árabe e com amigos no país decidiu criar uma conta no Twitter para apoiar o manifesto contra os mais de 30 anos de governo do mesmo presidente. O perfil, batizado de jan25voices (hoje com mais de 7 mil seguidores) foi usado para transmitir recados da população do Egito para o resto do mundo.


Logo no começo, John ligava para os celulares de seus conhecidos; assim que as linhas de telefonia móvel foram cortadas, ele passou a ligar para números fixos. Assim, mesmo durante o bloqueio, John foi capaz de tuitar as mensagens de seus amigos durante esses dias bastante difíceis.


O gigante ajudou


Quem também aderiu às manifestações foi o Google. Este usou a estrutura de uma empresa de nome SayNow para possibilitar que as pessoas postassem recados em suas contas do Twitter usando linhas fixas. Bastava discar para um número publicado para ter acesso às contas e enviar os tuites.


As linhas de telefonia fixa foram imprescindíveis para as mídias conseguirem acesso às informações sobre os manifestos na capital egípcia Cairo. Até mesmo os esquecidos aparelhos de fax saíram dos porões e voltara à vida nesse breve período.


Nesses dias de turbulência e incerteza, uma empresa francesa de nome French Data Network possibilitou aos egípcios que se conectassem à Internet usando o arcaico método da conexão discada.


É impossível parar a Internet


Eventos como o do Egito provaram que a raça humana desenvolveu protocolos de comunicação próprios – muito parecidos com os em andamento na Internet.


Os protocolos da rede contornam situações complicadas e, sem a internet, a comunicação entre as pessoas migra para plataforma de comunicação diferentes, como é ocaso das linhas de telefonia fixas. Bastou o acesso à web ser interrompido, para as pessoas desenvolverem outras maneiras de catapultar suas mensagens para a rede mundial de computadores.


Agora considere que todas essa alternativas surgiram em menos de cinco dias – cada hora a mais de bloqueio dava origem a outras tentativas de reestabelecer a comunicação, nem que fosse por meios caseiros. Isso deixava claro que a rede, apesar de derrubada, estaria longe ser inacessível.


Os ensinamentos


É possível que as técnicas aprendidas no Egito sirvam para entidades e defensores de direitos civis – incluindo aí o da livre comunicação – deem continuidade ao seu trabalho em outras localidades e realizem tarefas de prevenção contra eventuais cortes semelhantes.


Já o governo do Egito aprendeu da maneira mais difícil quais são as consequências de cortar o aceso à Internet. Pressões de outros países para o reestabelecimento da Internet no milenar país começaram chegar às instâncias mais elevadas do país e as medidas de Mubarak também surtiram efeito na economia, quando várias empresas deixaram de fazer negócio usando a web.


Além do mais, o corte da Internet no Egito foi o argumento mais robusto usado por oposicionistas e serviu de motivação para continuar os protestos.


Ou seja, o caso do Egito serviu para mostrar ao mundo que a internet, apesar de tecnológica, tem por trás atores humanos – capazes de garantir o funcionamento da comunicação e mais fortes que qualquer botão de liga/desliga da Internet.


 


 


O Estado de S.Paulo, 10/2


Eugênio Bucci


Quando a imprensa é uma chance para a paz


Antes de olharmos o que se passa na Praça Tahir, no Cairo, onde o povo se aglomera para derrubar o ditador Hosni Mubarak e jornalistas de todos os países sofrem abusos e agressões, façamos uma breve escala no passado recente. Recapitulemos, em poucos parágrafos, a Guerra do Iraque, suas mentiras e a lição sutil – ainda não assimilada – que elas nos deixou.


No dia 21 de janeiro, o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair prestou seu segundo depoimento à Comissão Chilcot, que investiga a participação do Reino Unido na invasão do Iraque. Houve protestos na audiência. ‘Suas mentiras mataram meu filho!’, acusou Rose Gentle, mãe de um dos 179 soldados ingleses mortos no conflito. Nomeada pelo sucessor de Blair, Gordon Brown, a comissão tem a incumbência de esclarecer as verdades e as mentiras que levaram o Reino Unido à guerra e de preparar um relatório final para o Parlamento. Há muito a ser elucidado.


Hoje se sabe que pelo menos uma mentira, uma gigantesca mentira, foi decisiva para que, nos Estados Unidos, o então presidente George W. Bush obtivesse o apoio do Congresso para atacar o Iraque: a acusação de que o ditador Saddam Hussein fabricava secretamente armas químicas de destruição em massa. Como ficaria claro, a acusação era falsa. As tropas de Bush e Blair viraram o Iraque de pernas para o ar, localizaram Saddam Hussein escondido num porão, barbudo e alquebrado, mas não acharam arma química nenhuma. Mas ainda há mistérios no episódio. Por exemplo: quando bancou essa informação, Bush sabia que mentia? A pergunta está em aberto. Segundo seu ex-assessor político Karl Rove, em seu livro Courage and Consequence, lançado no ano passado, o ex-presidente foi sincero. E quanto a Blair? No depoimento à Comissão Chilcot, ele diz lamentar as baixas, como a do filho de Rose Gentle, mas considera que a guerra teve razões justas. Na opinião dele, o planeta estaria pior do que está se Saddam Hussein não tivesse sido arrancado do poder.


A discussão será longa. E, pelo menos até agora, um dos fatos mais relevantes da escalada da guerra vai ficando na sombra: a mentira que ajudou Bush a costurar sua base entre os parlamentares americanos, e que pesou de algum modo na decisão de Blair, foi disseminada e sustentada não apenas nos gabinetes dos políticos, mas na opinião pública. Ela foi endossada por alguns dos jornais mais influentes do mundo – que, depois, reconheceriam sua falha. Se Bush e Blair erraram, grandes e respeitáveis veículos de imprensa erraram junto.


Chegamos, então, ao que deveria ser a maior lição desse episódio: a verdade deixou de ser a primeira vítima da guerra; hoje, a guerra não é mais a causa, mas a consequência da verdade vitimada. Até meados do século 20 prevaleceu como verdadeira uma frase atribuída, entre outros possíveis autores, ao senador americano Hiram Johnson (1866-1945): ‘Quando uma guerra começa, a primeira vítima é a verdade’. Segundo a velha máxima, um país, ao entrar em conflito armado com outro, deveria aceitar de bom grado mentir sobre o inimigo e sobre si mesmo. Ganhar a guerra seria mais importante do que dizer a verdade sobre os fatos. Hoje, quando os interesses nacionais se veem obrigatoriamente mediados por algo que, em termos apressados, poderíamos chamar de um interesse público supranacional, cujo ponto mais alto é a paz, a informação jornalística já não pode ser vista ou tratada como arma de guerra. Ela é parte da base comum para o diálogo. O valor da informação jornalística situa-se acima dos cálculos dos governos, uma vez que é pré-requisito para a convivência entre as nações. Isso aumenta, é claro, a responsabilidade do jornalismo. Hoje, quando a verdade é violentada, a primeira vítima pode ser a paz. Uma grande mentira nas páginas de um grande jornal pode render, entre outras tragédias, as 179 mortes pelas quais Tony Blair diz chorar até hoje.


A conclusão é simples: se souber e puder acompanhar os fatos e documentá-los com um mínimo de honestidade e integridade, a imprensa pode ajudar a evitar abusos.


Agora voltemos à Praça Tahir, no Cairo. Nela, e no seu entorno, os apoiadores do ditador Mubarak investem contra qualquer pessoa que represente a possibilidade de diálogo entre os cidadãos. Até o representante do Google no país passou semanas encarcerado. Celulares emudeceram e depois voltaram a falar. Os jornalistas Corban Costa, da Rádio Nacional, e Gilvan Rocha, da TV Brasil, ficaram presos por 18 horas. Na segunda-feira, a Embaixada do Egito no Brasil divulgou um pedido de desculpas, lacônico. Para a tirania que tenta sobreviver no Cairo, a imprensa, qualquer imprensa, da Al-Jazira ao Estadão (cujo correspondente, Jamil Chade, também foi agredido), é inimiga mortal. A ditadura não quer testemunhas. Sabe que todas as suas chances dependem da escuridão.


No caso do Iraque, a investigação jornalística sobre as armas químicas chegou tarde demais. A paz saiu perdendo. Agora, é diferente. Correspondentes do mundo todo estão a postos na praça. Querem fazer seu trabalho. Aos governos de todos os países, à ONU e às entidades da sociedade civil cumpre exigir da ditadura egípcia, com muito mais veemência, o devido respeito os jornalistas, que representam os olhos de todos nós. Por isso, uma agressão a um jornalista no Cairo deve ser repelida como uma agressão ao seu país de origem.


A esta altura, ninguém sabe direito para onde vai o Egito. Mas, desde já, sabemos que sem repórteres por perto o caminho será muito mais sangrento. Garantir a presença da imprensa internacional na Praça Tahir é dar uma chance à paz. Omitir-se na defesa dos jornalistas equivale a patrocinar, indiretamente, a brutalidade que só prospera onde não há direito à informação.


JORNALISTA, PROFESSOR DA ECA-USP E DA ESPM