Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Jornalistas e as versões nunca muito confiáveis

A jornalista Virginia Hebrero, da agência Efe, Genebra, relata que a última mulher morta em uma fogueira na Suíça após ter sido acusada de ‘bruxaria’ foi reabilitada moralmente no sábado, 09/05/2009, pelo Grande Conselho (Parlamento cantonal) de Freiburg, que limpou a memória da condenada por meio de uma declaração solene. A ‘devolução’ da honra a Catillon foi promovida por dois deputados cantonais, Jean-Pierre Dorand, historiador, e Daniel de la Roche. Catherine Repond, conhecida como Catillon, foi executada em 1731 após ser condenada à morte por bruxaria.

Por 69 votos a favor, 21 contra e 8 abstenções, os deputados cantonais adotaram a resolução, não vinculativa do ponto de vista legal, com a oposição dos partidos políticos de direita UDC e PLR, os quais consideraram que – ‘é melhor se ocupar dos problemas de nosso tempo‘. O que realmente é relevante depois de terem cometido injustiça no passado que jamais alcançará a vítima.

Esta reabilitação moral abrange não só a última suposta ‘bruxa’ e outras acusadas pelo mesmo crime, mas também todas as vítimas do Antigo Regime, como homossexuais, minorias religiosas, presos políticos e todos aqueles que confessaram crimes sob tortura. Muda a moda, muda o entendimento do que seja justo.

Acusada de todo tipo de mal

A historiadora Josiane Ferrari-Clément, autora de um livro sobre Catillon, defende a tese que de que as personalidades locais queriam se desfazer de uma pessoa incômoda, que sabia tudo sobre o tráfico de moedas falsas. Segundo vários historiadores, a vítima confessou o ‘crime’ sob tortura. O assassinato teria sido tramado pelo poder oligárquico da época para calar uma mulher que sabia demais sobre as personalidades, como o fato de que ‘alguns deles promoviam falsificação de moedas‘ (?).

A historiadora alega que os arquivos narram que, durante os interrogatórios, Catillon sempre expôs fatos que não eram levados em consideração. Ela inclusive chegou a acusar um padre de tê-la estuprado. Durante o processo, acusou um homem chamado Jacques Bouquet, um ‘curandeiro’ que era o pai de dois filhos de sua irmã, de ter construído uma instalação para fundir o metal com o qual fazia moedas falsas. A historiadora defende a versão de que os juízes faziam de conta que não ouviam tudo isso porque tinham medo. Juizes do príncipe com medo de quem?

Nascida em 1663, Catillon morava no povoado de Villarvolard, onde levava uma vida boêmia e vivia principalmente de esmolas. Relacionada com ambientes de má reputação – nos quais aparentemente entrou em contato com o grupo que falsificava moedas, conclui a historiadora sem base –, nada na vida de Catillon podia justificar, segundo a historiadora, que as testemunhas em seu julgamento por ‘bruxaria’ a acusassem de todo tipo de mal, como azedar o leite, estragar queijos e fazer o gado adoecer. Hoje este tipo de conjectura não mais está no senso comum ou no imaginário popular. Mas não era isto que ocorria na época.

Estrangulada e queimada

O beato Nicolas de Montenach, juiz de Corbieres, a trancou em um calabouço em maio de 1731 e a acusou de ter se transformado em raposa. Seu argumento é de que tinha saído para caçar alguns meses antes e havia ferido uma raposa na pata e Catillon tinha um de seus pés em péssimo estado. Apesar de a mulher explicar que tinha sido vítima de um tiro disparado por uma família à qual pedira abrigo em uma noite, o juiz não mudou de idéia: o ferimento se devia ao disparo contra a raposa. Hoje em dia não acreditamos nisto. Mas não era nesta época. Mesmo hoje em dia possuímos pessoas que juram que foram abduzidos por ETs, foram levados para espaçonaves e mantido relações sexuais, que foram visitados por chupa-cabras e que existem lobisomem. Fora as histórias de pé grande e de yeti no Himalaia. Para a época, sem direito a advogado de defesa, sem a existência de perícia forense, era possível ser condenado com sinceridade por uma alegação absurda qualquer. Ainda se tinha a idéia de pedra filosofal e a geração espontânea como fato.

Em 21/03/2009, notícia da France Presse, em Luanda, informava que o papa pede conversão dos adeptos da bruxaria em Angola. ‘Há quem objete que os deixemos em paz, que eles têm a verdade deles e nós a nossa. Que tentemos conviver pacificamente, deixando tudo como está. Estamos convencidos de que não cometemos injustiça alguma se apresentamos Cristo a eles […] É para nós uma obrigação oferecer a possibilidade de alcançar a vida eterna‘, destacou o Sumo Pontífice. Na época era muito pior do que falsificar moedas.

Submetida a torturas, Catherine Repond confessou tudo o que seus carrascos queriam ouvir: que assistia a ritos de magia negra, que dançava com demônios, que tinha se entregado ao diabo em várias ocasiões, até que foi estrangulada e depois queimada em setembro de 1731, com 68 anos de idade (não me parece que fosse uma idade e uma pessoa que pudesse um padre desejar estuprar).

Ignorância mata

A historiadora defende que os juízes faziam de conta que não ouviam tudo isso porque tinham medo. Ela alega que eles sabiam que Catillon tinha relações na alta sociedade de Freiburg. O que é pura suposição da historiadora, sem provas. Alguns crêem, inclusive, relata, que havia personalidades envolvidas nessa rede de falsificadores, que chegaria até a França, motivo pelo qual tudo era comprometedor. O que é interessante que as autoridades se decidissem se indispor com o príncipe para salvar criminosos para o qual eram encarregados de perseguir e punir.

Kathrin Utz Tremp, colaboradora científica dos Arquivos do Estado suíço, estudou as atas do processo de Catherine Repond, e afirma que durante seu processo, ela foi interrogada pelo menos 13 vezes, sendo torturada desde a terceira. Catillon chegou a ser pendurada por uma corda e depois teve os pés amarrados a pesos de entre 25 e 50 quilos, o que era um método de tortura habitual na época. ‘Nessas condições, eu também confessaria que sou uma bruxa, embora nem sequer acredite em bruxaria’, afirma a especialista.

Parece-me que se trata de uma versão jornalística modernizada dando uma versão mais ao sentimento atual do que alguma aproximação da verdade. Que Catillon, maltrapilha e velha, pudesse ter ‘relações’ com gente importante que não poderia simplesmente, e mais prudentemente, tê-la mandado eliminar sem correr algum risco das denuncias caírem na aceitação pelas autoridades. Não creio que no passado se fizesse queima de arquivo diferente do que os criminosos poderosos fazem hoje. Complicar algo que é simples de resolver.

A história foi apenas modernizada para dar uma roupa nova imitando as tendências jornalísticas atuais de estimular as teorias de conspiração. Tão ao gosto popular e que vendem bem a matéria. Como toda a teoria da conspiração, poderia ser, apenas faltam todos os elementos substituídos por levantamento de suspeitas apenas. O livro e a reportagem não nos fazem chegar mais perto da verdade do que já tínhamos. Que a ignorância mata. O resto é mais desinformação do que realidade. O mesmo ocorre com o caso de Filipe IV o Belo, da França, movido pela cobiça do poder e dos bens dos templários; ou os Cátaros, destruídos pelo Catolicismo. Nem mesmo o holocausto está livre de mistérios cristãos.

Médico, Porto Alegre RS