Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

José Genoino

"Alguns dos críticos mais ásperos do PT insistem em não compreender um fato básico da vida política e partidária: a circunstância de o PT ser um partido de governo não anula a sua natureza especificamente partidária. Uma das dimensões dessa natureza partidária implica que o PT se defina e aja como parte interessada no jogo político do País, buscando realizar seus interesses e otimizar suas ações em conquistas e vitórias políticas e ou eleitorais.


O resguardo dessa natureza partidária é uma decorrência do fato de que o PT não se confunde com o governo e, por isso, não age como governo e não está implicado em obrigações de ações e apelos de unidade que constrangem a vida dos governos. Com tarefas e responsabilidades diferentes, por ser também um partido de governo, o PT joga na mesma arena dos demais partidos, que é a da disputa interpartidária, no contexto da pluralidade partidária da democracia. Disso decorre que as ações de disputa do PT, de proposição e de busca de realização de seus interesses e objetivos são plenamente legítimas.


Um partido de governo que amortecer sua ação por se pressupor representado e substituído pela ação do governo estará fadado a perder espaço na luta interpartidária e definhar politicamente, capitulando ao direito de disputar a hegemonia.


É por isso que o PT, em sendo um partido de governo, não quer substituir o governo nem subsumir a ele. Participa do governo, preservando o espaço de sua autonomia, participando da disputa política do País. Esta ação, além de ser legítima, é democrática, até porque, a democracia concebida também como democracia de partidos, pressupõe o dissenso. Propor, divergir, discordar, criticar são ações inerentes ao dissenso democrático. Não se pode impingir ao PT a pecha de autoritário ou de antidemocrático ou, ainda, de ‘dirigismo’, pelo simples fato de o partido interagir no âmbito do dissenso e do pluralismo partidário.


A Constituição de 1988 consolidou as instituições democráticas do País.


Assim, o jogo político entre partidos e entre governo e oposição deve partir do pressuposto de que as instituições democráticas estão consolidadas, embora precisem ser aperfeiçoadas. Essas instituições são produto do método e da conduta democrática da maior parte dos partidos que ocupam a atual cena política brasileira. Por estarem consolidadas, essas instituições, condicionam e constrangem governos e partidos a uma conduta democrática.


Em face dessa consolidação da democracia, supor que a afirmação desse ou daquele dirigente do PT presume uma ameaça autoritária soa até ridículo e é coisa de quem não percebe corretamente a realidade política instituída no País. As análises dos vigilantes noturnos da ‘democracia’ chegam a ser tão desfocadas do real que nem sequer são capazes de dar um crédito à história e à experiência.


Referimo-nos à história e à experiência da construção da democracia brasileira, que tiveram no PT um de seus principais atores. Referimo-nos também à história e à experiência do PT em governos municipais e estaduais, sempre pautadas pela conduta democrática e pelo objetivo de radicalizar a própria democracia por meio da ampliação dos espaços de participação da sociedade no exercício e no controle do poder. Ora, se não se quiser dar crédito ao que afirmam dirigentes do PT, a boa análise política recomenda que se dê crédito à história e às circunstâncias concretas em que se processam os acontecimentos, os atos e os discursos.


Certamente, alguns dos críticos do PT não dão um crédito à sua história e à sua experiência porque, no momento em que se convocava a sociedade para empreender a tarefa da redemocratização, esses críticos estavam em outro lugar. Alguns vieram ao mundo do debate público depois, quando a democracia já era uma realidade. Então se viram no direito de se arvorar na condição de juízes, distribuindo sentenças para definir quem é democrático e quem é autoritário. Da mesma forma que se deve exigir, criticar e cobrar do governo e do PT pelas suas responsabilidades específicas, dever-se-ia respeitar também a opinião pública, poupando-a de fantasias acusatórias, de duvidosa relevância para o debate público e para uma prática adequada da democracia.


O PT nasceu democrático e com vocação democrática. É um partido que procura praticar o máximo possível de democracia interna, não a usando apenas como retórica externa. Por isso, procuramos aprimorar os mecanismos de participação da militância e instituímos eleições diretas para todos os dirigentes partidários. A nossa vocação democrática fundamenta o nosso compromisso de lutar pelo aperfeiçoamento da democracia. Além de entendê-la como dissenso e conflito regulados por mecanismos que podem proporcionar consensos possíveis, concebemo-la como um contínuo processo de democratização. Julgamos que os dois vetores principais desse movimento de democratização se definem, nas atuais circunstâncias da vida política do País, pelas seguintes exigências: por um lado, é preciso aperfeiçoar a democracia representativa com espaços crescentes de democracia participativa; por outro, é preciso acrescentar à democracia formal um conteúdo substantivo, definido por uma sociedade mais eqüitativa em termos de renda e riqueza. José Genoino é presidente do PT"

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"Colunismo político e julgamento moral", copyright Folha de S. Paulo, 13/09/04


"Ao ler determinadas colunas políticas da imprensa escrita, torna-se difícil divisar se, de fato, trata-se de uma coluna política fundada na especificidade analítica, ou se se trata de um texto de julgamento moral. Antes de ser acusado indevidamente de autoritário, como vêm sendo acusados o PT e o governo, quero declarar que não só sou favorável à liberdade de opinião, de expressão, de informação e de imprensa, mas dediquei parte da minha vida a conquistar essa liberdade. Em situação normal, essa declaração seria inócua, desnecessária e até soaria pretensiosa. Em tempos de acusações fáceis e abundantes, no entanto, é conveniente a caução com ressalvas declaratórias.


O que quero dizer é que me parece legítimo colocar em discussão pública a natureza e a especificidade das colunas políticas. Acredito que, entre outras funções, sua função específica consista em produzir análises políticas capazes de oferecer um entendimento adequado dos acontecimentos políticos ao leitor. Evidentemente, ao se circunstanciar a análise, pode e deve haver formulações críticas. Mas, quando as colunas políticas assumem o conteúdo de um julgamento eminentemente moral, perdem a sua especificidade e tornam-se espaços de mera manifestação do que pensa o colunista, mas na condição de um emitente de crenças privadas.


Um exemplo claro de julgamento moral é a coluna de Fernando de Barros e Silva ‘Foi o PT que fez’, publicada na Folha em 31/8 (Pág. A2). Primeiro, julga moralmente a prefeita Marta Suplicy. Cita as qualidades que o eleitor atribui a Marta (experiente, realizadora, corajosa, moderna, inovadora), que antes eram atribuídas a Maluf, para condenar a prefeita por ser depositária de uma ‘herança maldita’, qualificando-a de ‘monstro mutante Martuf’. Ora, a manipulação moral maniqueísta de tal tipo de juízo é evidente.


Nas eleições de 2002, muitos desses atributos conferidos a Marta eram atribuídos ao governador Geraldo Alckmin. O governador não só foi depositário desses atributos, como herdou, no segundo turno, a maior parte dos votos malufistas. Ninguém, corretamente, sentiu-se autorizado a supor que Alckmin seria depositário de nenhuma ‘herança maldita’ de Maluf. Qualquer prefeito que tenha se destacado em sua administração, seja ele de que partido for, pode ter esse tipo de qualidade atribuído à sua pessoa.


Em segundo lugar, o colunista afirma que ‘o presidente do PT converteu-se numa mistura caricata de ‘businessman’ com o Roberto Jefferson da era Collor’. A frase é fácil e o chiste é tentador, mas a informação é vaga e imprecisa. Por isso, presta-se a uma interpretação acusatória e condenatória. O colunista deveria esclarecer quais sãos os ‘negócios’ que me atribui e de que natureza são eles. Na verdade, a acusação e a condenação moral, vagas e gratuitas, têm como objetivo desqualificar-me pessoalmente, anulando-me como interlocutor com quem quer que seja.


A liberdade de imprensa garante, claro, que o colunista político possa se manifestar em seu espaço sobre qualquer assunto. Garante, inclusive, que emita juízos morais condenatórios, mesmo que infundados. Mas, nesse caso, ele corre o risco de ver questionada a relevância de sua coluna e é legítimo que se promova um debate público sobre o seu conteúdo. Afinal de contas, nenhum colunista e nenhum jornalista pode se considerar na posição de Deus, no Dia do Juízo Final, a emitir sentenças definitivas para todos os lados. Debater o conteúdo das colunas e os posicionamentos dos colunistas é um direito de liberdade e é tão democrático quanto criticar o governo ou o PT.


Ao se transformar num juiz moral e emitir acusações, o colunista detém um espaço privilegiado, fixo e contínuo. Para os condenados pelas sentenças, restam os espaços esporádicos das páginas de opinião e de debate dos jornais ou das cartas dos leitores. A luta é desigual. Os adversários políticos do PT e do governo fazem uso sistemático da produção acusatória de alguns colunistas. É de perguntar se não seria mais correto e transparente se esses colunistas se declarassem juízes morais, investidos de poder de dizer o que é a verdade. Claro que não são obrigados a fazê-lo. Mas o julgamento moral é autoritário e intolerante. Criminaliza a disputa. Veda o debate e a polêmica e não garante o contraditório.


Convém lembrar que Max Weber insistiu na tese de que não é possível estabelecer nenhuma ética quando se acusa os outros com o intuito de ter sempre razão. Tal conduta esconde os interesses efetivos que se emboscam por detrás das acusações. Transita-se com grande facilidade do mero ressentimento para uma postura que especula com o moralismo alheio e despolitizado do senso comum. É nesse trânsito que o colunismo moralista se dá o direito de destruir reputações e os valores morais dos outros, sem medir as conseqüências.


Quero terminar dizendo que as pessoas, as instituições e as empresas têm histórias específicas que precisam ser respeitadas. A Folha escreveu uma página admirável na história brasileira ao lutar, por exemplo, pelas Diretas e pela anistia. Teve colunistas do porte de Cláudio Abramo, que dignificaram a profissão e o próprio jornal.


Sou convicto de que não há democracia sem imprensa livre. Mas estou convencido também de que não haverá consolidação dos valores democráticos sem um debate público plural e sério e sem um jornalismo responsável."



Nelson Breve


"O que há de errado no ufanismo?", copyright Agência Carta Maior, 9/09/04


"Não consegui entender o uso do substantivo ufanismo para qualificar com ênfase negativa o espetáculo do Dia da Independência, em Brasília, que desde o ano passado perdeu a característica de simples parada militar para se transformar em uma festa cívica.


‘Em matéria de amor à Pátria, como em carinho filial, que se peque por excesso, nunca por deficiência’


Conde Afonso Celso


Não fui à Esplanada dos Ministérios assistir ao desfile de 7 de Setembro. Preferi ver pela televisão. Não é a mesma coisa. Tenho certeza de que grande parte das 50 mil pessoas que enfrentaram o sol e a seca para ver a parada cívica sentiu a emoção arrepiar a pele ao ver o maratonista Vanderlei Cordeiro de Lima ser saudado como um campeão olímpico, um guerreiro que tão bem representou o país na principal prova dos Jogos Olímpicos de Atenas.


Deve ter sido emocionante, também, assistir de perto a alunos com deficiência auditiva e vocal representando o Hino Nacional com a linguagem dos sinais. Para alguns, talvez tenha sido mais emocionante ver pela primeira vez um grupo de bailarinos mostrando a arte da dança no asfalto. Ou a passagem dos 98 integrantes da delegação brasileira das Paraolimpíadas. A Banda dos Fuzileiros Navais, as exibições de combate ou a apresentação da esquadrilha da fumaça.


O que não consegui entender foi o uso do substantivo ‘ufanismo’ para qualificar com ênfase negativa o espetáculo, que desde o ano passado – quando estive presente – perdeu a característica de simples parada militar para se transformar em uma festa cívica, com o nítido objetivo de despertar no povo o sentimento patriótico, adormecido nas últimas décadas. Não se transforma em Nação um povo que não ama sua cultura, sua história e seus símbolos. E a Independência é o símbolo do nascimento da Nação brasileira.


Inconformado, fui ao dicionário Houaiss procurar o significado da palavra ‘ufanismo’. Encontrei o seguinte:


Acepções


substantivo masculino


Regionalismo: Brasil.


1 atitude de quem se orgulha de alguma coisa com exagero


1.1 Derivação: freqüentemente.


orgulho exacerbado pelo país em que nasceu; patriotismo excessivo


Etimologia


ufano + -ismo, voc. alusivo ao espírito de Por Que Me Ufano do Meu País (1900), livro do conde Afonso Celso.


Que mal há em ter orgulho pelo país em que nasceu, ainda que exagerado? Pesquisando no Google, descobri algumas coisas sobre esse conde que ‘inventou’ a raiz da expressão. Era um patriota extremado, que escreveu o seguinte no prefácio de um de seus livros: ‘Em matéria de amor à Pátria, como em carinho filial, que se peque por excesso, nunca por deficiência’.


Não satisfeito, continuei pesquisando, meio sem saber direito o que buscava. Encontrei em um artigo do professor Antonio Cândido sobre a instabilidade da palavra ‘nacionalismo’ ao longo da história brasileira a seguinte referência: ‘O famoso livro do conde Afonso Celso, ‘Por Que Me Ufano do Meu País’ (1900), exprimia no grau de máxima exaltação e máxima ingenuidade essa visão tola e perigosa, que só mais tarde seria ironizada com o nome de ufanismo’.


O hiperlink na palavra Ufanismo remetia a um glossário apócrifo. A explicação exaustiva, que satisfez minha inquietude, compartilho neste espaço, na expectativa de que ilumine algumas consciências.


Ufanismo


O vocábulo ‘ufanismo’ deriva do verbo ufanar-se, que significa ter ufania, jactar-se, vangloriar-se. Ufania é o estado ou qualidade de ufano, vaidade exacerbada, jactância, orgulho que representa uma atitude ou sentimento adotado por aqueles que se vangloriam exageradamente das riquezas ou belezas naturais do Brasil, bem como de suas realizações em vários campos (economia, artes etc). Tendo como base o panorama literário que corresponde o final do século XIX, alguns autores como Oliveira Viana, Nina Rodrigues, já lastimavam o atraso brasileiro resultante da inferioridade étnica, enaltecendo a raça superior branca que constituíra a Europa. É no início do século XX, após a consolidação da República, que começam a surgir as correntes nacionalistas que se remetem às riquezas do país. Como representação sólida desse movimento temos a obra: Por que me Ufano do Meu País.


Por ocasião do quarto centenário da chegada dos portugueses ao Brasil, o Conde Afonso Celso publicou o livro P’or que me Ufano do Meu País’ – foi o primeiro best seller da história editorial brasileira; é, sem dúvida, um clássico da literatura ensaística nacional. Escrito por Afonso de Assis Figueiredo Júnior, natural de Ouro Preto – Minas Gerais, nascido em 31 de março de 1860, vindo a falecer no Rio de Janeiro a 11 de julho de 1938. Filho do Visconde de Ouro Preto, último presidente do Conselho de Ministros do Império, e de D. Francisca de Paula Martins de Toledo, é um dos membros fundadores da Academia Brasileira de Letras. Republicano na Monarquia e monarquista após a Proclamação da República, católico atuante, foi membro e presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, criado em 1838-39. O Brasil tinha aproximadamente 10% da população atual quando a ABL foi fundada com 40 vagas. Todos estavam lendo a obra de Afonso Celso, que vendera cerca de 300 mil exemplares na época.


O livro, dedicado aos filhos, visava despertar em toda a juventude brasileira um ilimitado amor à pátria, afirmando que não se deve amá-la somente por ser pátria, mas também pelos motivos reais que ela nos dá para que dela nos orgulhemos. O objetivo central era de mostrar aos brasileiros, habitantes dessa terra, a grandeza dessa nação – o Brasil – em 1900. O autor estava certo de que a palavra ufanismo passaria a denotar o patriotismo acrítico, ingênuo e incondicional. Durante muitos anos o livro foi de leitura obrigatória nas escolas. Hoje, é pouco recomendado. Ao decorrer da narrativa, Afonso Celso, por apresentar características monárquicas, traz em sua obra um capítulo dedicado a D. Pedro II, em que lhe faz intensos elogios, desmistificando totalmente a idéia de que o Brasil foi colonizado por ladrões, prostitutas e degredados, titulando o capítulo como: ‘Não foi de degredados que se povoou o Brasil’. Porém, é sabido que Portugal costumava mandar degredados para o Brasil, despertando, assim, inúmeros protestos por parte das famílias que aqui habitavam e que jamais se misturavam com esses condenados.


Como fator final dessa discussão, o autor, em sua narrativa, coloca a vinda da família real para o Brasil, pois mesmo com a emigração de diversos fidalgos, Afonso Celso afirma que a origem humilde desses indivíduos seria insuficiente para evitar a grandeza que o Brasil apresenta. Movido pelo patriotismo o autor descreve alguns motivos para que nos ufanemos de nosso país. Motivos esses distribuídos entre a natureza, o povo e a história que citarei nas laudas a seguir:


No primeiro motivo, a grandeza territorial se destaca afirmando que o Brasil se sobreleva em tamanho quase todos os países do globo. Além disso, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro estabeleceu que o princípio da nacionalidade é defendido pela extensão territorial. Sendo assim, o país preenche o requisito da nacionalidade e somos, de fato e de direito, uma nação.


Destacam-se também as maravilhas que o país possui como: a Cachoeira de Paulo Afonso, a fauna, a flora, o Amazonas, a Baía de Guanabara, as florestas virgens, as riquezas naturais, a variedade e amenidade do clima, a ausência de calamidades – isto é, o Brasil não registra catástrofes como ciclones, terremotos, vulcões, furacões.


O Brasil resulta da fusão de três elementos que entraram na formação do tipo: a beleza, a força e a coragem dos índios; afetividade, estoicismo, coragem e labor do negro; bravura, brio, tenacidade, união, filantropia, amor ao trabalho, patriotismo do português.


– Por caracterizar-se em um país sem preconceitos, e sim ordeiro, pacífico, bom, caridoso, sensível.


– Por ser um país que nunca sofreu humilhações, pois nunca foi derrotado em guerras.


– A homogeneidade material e moral, o progresso constante.


O brasileiro, segundo o conde, devia ufanar-se por morar em um país privilegiado, dom da providência, superior a todos os outros. O que ainda não tínhamos, poderíamos conquistar, transformando-nos eventualmente em primeira potência. Ainda destaca-se por sua natureza, por seu tipo humano e por sua história que são oferecidos aos estudos dos naturalistas, antropólogos e historiadores, além de ser considerados como um material inesgotável para suas artes e literatura. No Brasil, com trabalho e honestidade, conquistam-se quaisquer posições. Além desses motivos, pode-se destacar também o fator mestiçagem que ocorre devido aos nobres predicados do caráter nacional que se descrevem em: sentimento de independência; hospitalidade; afeição à ordem, à paz e ao melhoramento; paciência e resignação; doçura e desinteresse; escrúpulo no cumprimento das obrigações contraídas; espírito extremo de caridade; acessibilidade; cor, religião, posição e honradez no desempenho das funções públicas ou particulares.


Após resumir os motivos de orgulho para o Brasil do início do século XX, Afonso Celso alerta para os dois perigos que lhe espreitam: ‘maus governos e instituições incompatíveis com sua índole’. O autor encerra com um intenso otimismo e o um retrato belíssimo do Brasil do início do século XX, caracterizando-o como a segunda potência do novo mundo, a primeira da América do sul, primeira em extensão e a terceira em população, afirmando que deveríamos ser considerados uma supernação; por suas belezas e riquezas; por seu povo e por sua notável história. Contudo, a bondade, a caridade e a doçura de nosso caráter não impediram que construíssemos a imagem de um país mais desigual e injusto, no qual nos torna campeões de violência urbana e desigualdade social.


Hoje, é preciso admitir que nossos melhores sonhos têm sido sistematicamente frustrados por nossa incapacidade de torná-los realidade. A retórica do ufanismo só serve para encobrir nossa frustração como povo e como nação. De certo, o que nos leva a refletir que pelo menos, de quatro em quatro anos, nós, brasileiros, nos deixamos tomar pela emoção, pelo ufanismo. Voltamos a ter orgulho do nosso país, da nossa pátria, através de um simples esporte, mas que consegue unir a multidão em um só desejo, em um só pensamento. Sabemos que nosso país é rico, ‘gigante’, em todos os sentidos, na fauna, na flora, na riqueza mineral. Porém, os que aqui habitam lamentam pelo tratamento que recebem, se sentem filhos adotivos dessa terra simplesmente pelas dificuldades que passam, pela política interna…


Todavia, nos tornamos o centro das atenções do mundo, de quatro em quatro anos. Não nos tornamos notícia pela violência, pela impunidade, seqüestros, mas sim por um esporte que une todos os povos, todas as raças, religiões. Diante de uma telinha, olhos fixos, parados, cria-se uma sintonia intensa, uma corrente que se contrapõe a todas as adversidades. As tristezas, todos os problemas são esquecidos, e fazemos prevalecer o nacionalismo, essa característica antiga que se apodera de nós e nos faz cada vez mais sermos brasileiros."



Paulo Maciel, Mariângela Gallucci, Elder Ogliari


"Dirceu compara ação do MP a Gestapo", copyright O Estado de S. Paulo, 10/09/04


"O ministro da Casa Civil, José Dirceu, voltou a defender ontem limites para o poder de investigação do Ministério Público. ‘É preciso recolocar o MP nas suas atribuições constitucionais. Estão ocorrendo abusos inadmissíveis’, disse em entrevista ao programa Espaço Aberto, da Globonews.


‘Em alguns casos, estão se constituindo pequenas células que passam a investigar acima da lei. Não são métodos heterodoxos, são métodos ilegais’, acusou, comparando a ação dos procuradores à Gestapo, a polícia política de Hitler. ‘(Os procuradores) tem de sofrer as conseqüências da lei, porque senão nós vamos ter pequenas Gestapos funcionando no Brasil, o que é muito perigoso.’ Na sua avaliação, se não houver limites para a ação dos procuradores, o ‘próprio Ministério Público vai ficar desprestigiado’.


Mais tarde, em Brasília, o presidente da Associação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (Amperj), Marfan Martins Vieira, condenou as declarações de Dirceu. ‘Antes de aventurar-se na emissão de novas opiniões vazias e na declinação de retórica leviana e pueril, seria de bom alvitre que Sua Excelência procurasse inteirar-se, mais densamente, dos relevantes trabalhos desenvolvidos pelo Ministério Público, sempre revestidos de absoluta legalidade e lídimo compromisso com a verdade, cujos resultados, aliás, não raras vezes, serviram de plataforma política quando seu grupo ainda almejava chegar ao poder e agora parece não mais lhe ser interessante.’


Vieira disse que a atitude ‘hostil e difamatória’ de Dirceu em relação ao Ministério Público não causa surpresa. ‘Contudo, não podemos aceitar passivamente suas comparações desarrazoadas, especialmente quando equipara nossa instituição à polícia política de Adolf Hitler’, disse. ‘Certamente o patrulhamento de idéias e a ilegalidade não são práticas reinantes dentro da nossa instituição.’


Em Porto Alegre, os procuradores-gerais de Justiça de 18 Estados, reunidos para discutir temas como combate à pirataria e ao crime organizado, reagiram com surpresa às críticas de Dirceu. ‘Foi uma frase infeliz do ministro’, avaliou Rodrigo César Rebello Pinho, de São Paulo.


‘Gestapo é uma declaração um pouco forte. Talvez se bem pensada fosse até retirada’, afirmou Aquiles de Jesus Siquara Filho, da Bahia. Ele avaliou, porém, que a manifestação do ministro não é uma interferência no trabalho do Ministério Público. ‘Somos uma instituição madura e temos de conviver com as críticas’, afirmou. ‘Os excessos não são preocupações só do ministro (Dirceu), mas do próprio Ministério Público, que quer coibi-los.’


Roberto Bandeira Pereira, do Rio Grande do Sul, foi pela mesma linha de Siquara, a quem substitui a partir de hoje como presidente do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça. ‘Não concordo com os termos, mas todos somos favoráveis ao controle dos excessos’, ressaltou. ‘É um direito do cidadão submeter o agente público ao controle social.’"