Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Leandro Konder

‘Decorar nomes de ossos não era o ofício dos sonhos do mineiro Wilson Figueiredo. Para o bem da imprensa brasileira, ele trocou as salas de anatomia pelas redações. Tinha 20 anos. Desde então, foram seis décadas de devoção à palavra escrita, numa carreira que se confunde com a história do país. Impressões dessa trajetória foram registradas na tarde de quinta-feira, quando o filósofo Leandro Konder abriu as portas de seu apartamento, no Leblon, para uma longa conversa com Wilson, que deixa a vice-presidência do Jornal do Brasil, onde continuará escrevendo artigos e reportagens. Na redação da Av. Rio Branco, repousa intacta a máquina de escrever que sempre o acompanhou, com a máxima escrita num adesivo amarelado: ‘Um mineiro nunca é o que parece, sobretudo quando parece o que é’.

– Quando, exatamente, você começou no jornalismo?

– Comecei porque ia ser médico e não quis. Desanimei. Eram seis anos. Tinha anatomia, cinco volumes. Tinha de decorar o nome do osso da ponta do dedo, um negócio horrível. Desisti e fui para a faculdade de filosofia fazer letras neolatinas. Com 20 anos, o Castelinho me ofereceu um emprego de tradutor de telegrama. Você pegava vários telegramas e fundia em um só, o que vinha a ser um reescrevedor. Fazia telegrama o dia inteiro, era o último ano da guerra, 1944. Fui ficando, ficando e acabei viciado, incapaz para qualquer outra coisa. Sou jornalista por exclusão. Aí veio a política. No começo do ano, teve a entrevista do José Américo ao Carlos Lacerda no Correio da Manhã – no fim do Estado Novo – foi um estrondo.

– Não se envolveu a ponto de mobilizar sua competência de jornalista?

– Não. Isso era impraticável. Quando o Estado Novo caiu, em 1945, aí sim, todo mundo se expôs. Acreditei que a democracia ia durar, mas não teve esse sentido de massa que viria a ter depois na oposição à ditadura. Os liberais do meu tempo eram mais progressistas do que os de hoje.

– E a imprensa de esquerda?

– Naquele tempo era possível fazer jornais de duração efêmera. Você podia fazer jornais que não precisavam ser empresas. Fazia semanários que debatiam idéias. O Jornal dos debates era fantástico. Aberto, debatia com franqueza. Os jornais comunistas foram muito importantes embora muitas vezes sectários. Mas havia até jornal trotskista. Hoje não há mais nada.

– Conte algo da história política que você testemunhou.

– Em 1964, dezembro, acreditava que os militares iam resolver o problema com uma eleição. Até aquela altura não se falava em AI-5. E o Lacerda fazia uma oposição predatória. Aí escrevi qualquer coisa, não me lembro de que maneira foi, e ele pediu para ter um encontro comigo. Marcou numa sexta-feira, dia de fechar o jornal de fim de semana, uma tragédia. Fazia uma coluna política que tinha relativa importância. No Palácio, ele estava conversando com o arcebispo do Rio, porque havia um problema numa favela. Ele me mandou um recado pelo Marcelo Garcia: ‘Você vai com o Marcelo no carro dele, eu vou com o Cardeal e na volta conversamos’. Fomos para uma favela em Brás de Pina, havia uma confusão, metade da favela queria mudar, metade não. Aí o Lacerda me disse: ‘Olha, não vou poder falar com você, porque estou com problemas, mas vou lhe dizer: Quero que você se convença de que não vão fazer eleição direta no Brasil’. Perguntei por que dizia isso. Respondeu que era porque não queriam sua candidatura. Era quase uma megalomania dele. ‘E o que o senhor vai fazer? – Vou lançar a minha candidatura. – Mas o senhor não acha que era melhor lançar uma campanha com outras forças interessadas em preservar a eleição direta? – Não, isso é abstrato, tem de ser uma coisa concreta, minha candidatura’. Aí acelerou o processo, em 65 começou como candidato, e em outubro veio o AI-2, que acabou com a eleição direta. Ele tinha razão. Tinha um faro político muito grande, mas não sabia administrar seu feeling.

– Mas depois ele parte para a Frente Ampla.

– Depois ele fez a conversão dele, mas foi um ato de penitência arrogante, ele era capaz de fazer essas coisas. Se juntou com Juscelino e com Jango, o Brizola recusou. O AI-2 foi o fim da intenção, se é que havia, do governo militar. Foi um fato muito forte. Outro, quase pitoresco, é anterior a tudo isso. Consegui hoje na Biblioteca Nacional fotografar o artigo que escrevi, que não era assinado porque era de outro jornal (o Mundo Ilustrado era do Diário de Notícias). Então o Joel Silveira me deu essa condição: escrever sem assinar. Fiz um artigo no dia 12 de agosto de 1961, 12 dias antes da renúncia do Jânio, que foi publicado com um título em destaque: ‘Renúncia é a arma secreta de Jânio’. Claro que era! Quanto a isso, não há novidade. O importante é que tudo que aconteceu estava ali escrito. O Jânio viajou para uma solenidade no Maranhão e todos ficaram na casa do José Aparecido. O Castelinho, no almoço, contou que Jânio teria dito a Jango: ‘O senhor pensa que a burguesia vai me tirar desse Estado para colocar o senhor no meu lugar? Está enganado. Se a minha cabeça for para o poste, a sua vai para o poste ao lado’. Uma conversa dessas é irresistível. Como tinha que entregar meu texto naquele dia, saí do almoço correndo. Um deputado em Pernambuco queria saber como a revista sabia o que estava publicado no artigo não assinado.

– Você viveu intensamente parte da história da imprensa do país. Que mudanças testemunhou nestes 60 anos de jornalismo?

– O JB fez parte do processo de modernização e foi o jornal que mais se recuperou. Depois houve um certo declínio, mas o processo coincide com a passagem do amadorismo à profissionalização. Os jornais passaram de uma coisa meio anacrônica em matéria de parte gráfica a métodos modernos, a grandes empresas. E foi aí que começou o problema. O grande erro foi exatamente o fato de jornal ter de ser uma grande empresa. A experiência me ensinou que o jornal não pode ser uma mera empresa. A estrutura da burocracia hoje é maior do que a da redação. Tem gestão de custos, economista. Isso levou a uma redução drástica do número de jornais que circulavam na metade do século e que circulam hoje. São sobreviventes, mas estão amarrados a um conceito de empresa, que obriga a prestar atenção em custos, a dar prioridade a isso sobre os benefícios criados.

– Existe uma ligação entre essa transformação dos jornais em empresas e um certo entusiasmo neoliberal?

– Os jornais até que tinham uma índole mais conservadora. O Brasil tinha uma índole conservadora – e ainda tem – bastante forte. Os jornais não tinham um mercado publicitário como têm hoje. Não havia consumo. A publicidade foi expandida. Antes se pegavam anúncios, depois eles passaram a ser programados para o ano todo. E isto deixou de ser uma coisa do dono do jornal e passou a ser da empresa. A empresa se sobrepôs ao dono do jornal, que era o homem que decidia. Aliás, o dono do jornal não lê mais o jornal. Desconfio de que nem os jornalistas o lêem. Você pode reparar numa coisa: Nos últimos anos, os jornais não têm mais candidatos a presidente da República. A essência empresarial levou a uma espécie de identidade com o espírito americano, que acabou se entendendo como neoliberal. O mercado é sagrado. O neoliberalismo deu nome a esse estado de espírito.

– O que é uma mudança geral, não só no Brasil…

– Assim como o Brasil perdeu suas características regionais, o mundo está perdendo várias características nacionais. Se a Europa se unir, o que é quase inevitável, como uma federação, não vai mudar nunca, né? As danças húngaras serão apenas um capítulo dessas coisas todas que há por aí.

– E nós aqui?

– Vamos dançar o tango argentino, e os argentinos vão dançar o samba. Aliás isso já existe, mas é um pouco pitoresco. É como o rádio. Hoje não se sabe que tipo de música se toca. Toca-se de tudo. Outra coisa curiosa é que os jornais não se deram conta: O rádio veio e deslocou um pouco a posição dos jornais, o privilégio de darem notícia. A televisão, quando chegou, arrebentou. Os jornais até hoje não acertaram o que fazer. Tenho impressão de que isso vem pela prática. Sinto muito na Folha de S.Paulo uma preocupação com um tipo de informação já elaborada, refinada, sistematizada. Então não é mais um desastre, mais um episódio da polícia do Rio. O jornal ouve um especialista, um sociólogo. Elabora um pouco. Os jornais não entenderam que deveriam ter perseverado. O jornal é mais para opinião. A própria opinião dos jornais, a base editorial dos jornais, que é uma opinião também dos negócios, do mundo dos negócios, do mundo financeiro. Isto tudo caiu numa espécie de pasteurização. Todos os jornais são iguais. Antigamente o Correio da Manhã tinha um tom atrevido. O Diário de Notícias, mais sereno, mas com uma preocupação ética. Nos Associados, o Chateaubriand tinha um atrevimento muito grande, mas interesseiro, uma certa franqueza de ter interesses. Isso tudo tinha de ser mudado e não foi adequadamente. Você deve se lembrar de Recordações do escrivão Isaías Caminha. Aquilo está de pé até hoje. Os vícios humanos do jornalista e dos donos do jornal estão todos aí. São os mesmos, não mudaram. Lima Barreto está vivo.’



ELEIÇÕES 2004
Esther Hamburger

‘Maluf é mestre midiático perante câmeras’, copyright Folha de S. Paulo, 2/06/04

‘Ao participar no último domingo do ‘Canal Livre’, na Bandeirantes, Paulo Maluf mais uma vez demonstrou que é um animal midiático. Dono de um eleitorado em geral minoritário, mas fiel, Maluf possui o dom de se inflamar perante as câmeras.

A capacidade maior ou menor de performance televisiva depende de talento individual. Há evidências de que câmeras estimulam algumas pessoas a confessar segredos íntimos.

Em outros casos, como parece ser o do tradicional líder do PP paulista, câmeras ensejam verdadeiras atuações dramáticas, mesmo que a situação seja a de ‘talk show’.

O ex-prefeito e ex-governador Paulo Maluf é mestre na performance televisiva. Sua participação em um programa piloto do genial ‘Fora do Ar’ -quadro do final dos anos 90, de Marcelo Tas para o ‘Fantástico’, que infeliz e ironicamente não chegou a ser aprovado para ir ao ar- é sugestiva.

Naquela ocasião, muito à vontade no estúdio, Maluf não se furtou, por exemplo, a revelar que lê seus discursos no teleprompter. Topou a brincadeira e se deixou flagrar em posição de leitura. Foi ele também que contratou Duda Mendonça para fazer a campanha que elegeu Celso Pitta.

Maluf busca agora manipular o recurso que lhe é familiar para se defender de acusações de corrupção e envio ilegal de dinheiro para o exterior.

A tarefa não é fácil. O político insistentemente confirma a sua candidatura, procurando evitar a situação acuada.

O embate no ‘Canal Livre’ foi quente. O programa foi ao vivo, como que para garantir a ausência de manipulação, e teve a participação do primeiro time da Band. A segurança de Fernando Mitre e Carlos Nascimento não abalou a confiança do acusado.

Surdo aos sinais dos tempos, ele se apresenta como imigrante libanês, empresário bem-sucedido, pai de família exemplar, governante pleno de realizações e projetos de futuro, além de réu inúmeras vezes absolvido.

Na estratégia de Maluf, defesa judicial e campanha eleitoral se tornaram parte de um mesmo pacote. Resta saber quais serão as proporções de um eventual naufrágio. Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP’



Carlos Alberto Di Franco

‘Jornalismo em ano eleitoral’, copyright O Estado de S. Paulo, 7/06/04

‘As eleições estão aí. E os Jumbos da mídia já estão taxiando na cabeceira da pista. A viagem promete turbulência. Da competência dos comandantes (dos diretores de redação e dos editores de política) depende a tranqüilidade do vôo. E a credibilidade da imprensa. O eleitor fará a sua escolha. E o leitor também.

Diz um velho ditado que os advogados enforcam seus erros, os médicos os enterram e os jornalistas os divulgam. Estamos na berlinda. Diariamente.

Nossas virtudes e mazelas não são recatadas. Registram-nas fielmente os sensíveis radares da opinião pública. E a relação que se estabelece entre o consumidor e o produto jornalístico não tem a marca da indissolubilidade. A conquista do leitor é um exercício que se renova a cada edição. Impõe-se, por isso, a implosão de inúmeros mitos que iludem o leitorado menos perspicaz.

‘Os fatos são sagrados, as opiniões são livres.’ O lema objetivista, inscrito em alguns códigos empoeirados, é de um vazio surpreendente.

Transmite, num tom de verdade dogmática, a certeza da informação imparcial.

Só que essa separação esquizofrênica entre fatos e juízos de valor simplesmente não existe. Repórteres não são clones. Não se faz bom jornalismo sem emoção. A frieza é anti-humana e, portanto, antijornalística.

Não se pode ouvir um corrupto com a mesma fleuma com que um inglês toma o chá das 5. A imprensa honesta e desengajada tem um compromisso com a sociedade. A neutralidade é uma falácia. Mas a isenção é uma meta a ser perseguida. Todos os dias.

A batalha da imparcialidade enfrenta a sabotagem da manipulação deliberada, da preguiça profissional e da incompetência arrogante. Todos os manuais de redação consagram o dever ético de ouvir os dois lados de um mesmo assunto.

Perfeito. No entanto, alguns procedimentos, próprios de operações de contrabando opinativo, transformam um princípio irretocável numa grande mentira.

A apuração de faz-de-conta representa uma das maiores agressões à imprensa de qualidade. Matérias previamente decididas em guetos engajados buscam a cumplicidade da imparcialidade aparente. Analisemos a metodologia do antijornalismo. Tudo começa pela incapacidade de ouvir. Para certos repórteres dominados pelo vírus opinativo, o que menos importa é a declaração do entrevistado. A decisão de ouvir o outro lado não se apóia na busca da verdade. É um artifício que transmite uma aparência de isenção, uma ficção de neutralidade. O assalto à verdade culmina com uma estratégia exemplar: a repercussão seletiva. Personalidades entrevistadas em ritmo de Samba de uma Nota Só avalizam a ‘seriedade’ da reportagem. Mas o leitor, cada vez mais crítico e exigente, sente a mordida do engodo. Comprou lebre e recebeu gato.

Mas nem tudo é manipulação. A preguiça profissional é outro veneno da qualidade. Repórteres carentes de informação especializada e de documentação apropriada acabam derrapando no escorregadio terreno do jornalismo declaratório. Sobram aspas, mas falta apuração. A incompetência arrogante foge dos bancos de dados. A dúvida, lógica e natural, morre na garganta. Na ausência da pergunta consistente, a fonte deita e rola. Instaura-se o reinado da versão. O jornalismo de registro, insosso e burocrático, precisa reencontrar o sabor e a ousadia da boa reportagem.

Uma imprensa ética sabe reconhecer os seus erros. Todas as empresas jornalísticas, pressionadas pela ditadura do deadline, cometem equívocos. As palavras podem informar corretamente, denunciar situações injustas, cobrar soluções. Mas podem também esquartejar reputações, destruir patrimônios, desinformar. A humildade, virtude que medra nas personalidades fortes, é o melhor antídoto contra o veneno do jornalismo irresponsável. Jornais justos, sublinha Paul Johnson, ‘chamam a atenção a quilômetros de distância’.

Confessar um erro de português ou uma troca de legendas é relativamente fácil. Mas admitir a prática de atitudes de prejulgamento, de manipulação informativa ou de leviandade editorial exige profissionalismo e coragem moral. Reconhecer o erro, limpa e abertamente, é o pré-requisito da qualidade. E não há investimento que supere o marketing da verdade.

Uma imprensa investigativa, não partidária, independente, sem editorialismo no noticiário, fiel à verdade dos fatos e preocupada com o cidadão: esses são os fascinantes desafios da cobertura eleitoral e, ao mesmo tempo, os parâmetros que definirão o teste da imprensa de qualidade.

A todos, uma boa viagem. (Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo para Editores e professor de Ética Jornalística, é diretor para o Brasil de Mediacción-Consultores em Direção Estratégica de Mídia (Universidade de Navarra) E-mail: difranco@ceu.org.br)’