Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Luciana Nunes Leal

‘Até o fim deste ano, um extenso e rico acervo do Arquivo Nacional, no Rio, será aberto ao público e mostrará com mais detalhes a ação da censura prévia nas produções culturais durante o regime militar. As letras de músicas submetidas à análise dos censores do Rio nos anos 70 e 80 estão sendo catalogadas pelos técnicos do arquivo.

Os pedidos de autores, produtores e gravadoras à Divisão de Censura e Diversões Públicas da Polícia Federal e os pareceres que indicavam liberação, aprovação mediante modificações das letras ou veto às músicas poderão ser consultados por pesquisadores. São pelo menos 70 mil documentos.

A preparação do material para ser aberto ao público está sob o comando do chefe da Coordenação de Documentos Escritos do Arquivo Nacional, Mauro Lerner Markowski. Ele conta que a produção cultural submetida à avaliação da censura durante mais de 20 anos anos foi encontrada por acaso na sede da Polícia Federal, no centro do Rio, em 1993, quando técnicos do Arquivo buscavam documentos sobre estrangeiros no Brasil.

Surpreendidos com uma enorme quantidade de papéis num galpão, os funcionários descobriram o acervo da censura prévia do Rio e, com a concordância da PF, providenciaram a transferência. A primeira parte catalogada, já à disposição do público, foi a de peças teatrais. Agora, é a vez da música.

A LÁPIS

‘Letra de protesto, que vai de encontro com as normas adotadas atualmente. Salvo melhor juízo, interdito’, diz o parecer de um censor, não identificado, emitido em 5 de junho de 1970, depois de analisar a letra de A Luta contra as Latas, de Gilberto Gil, hoje ministro da Cultura. O mesmo papel tem a indicação ‘aprovada’, a lápis, mas não há data nem assinatura.

Embora o registro da censura seja de 1970, a música tinha sido gravada no disco Gilberto Gil, de 1968, com o título A Luta contra a Lata ou A Falência do Café. Diz a pouco conhecida canção do compositor baiano: ‘Chaminés plantadas nos quintais do mundo/ as latas tomam conta dos balcões/ navios de café calafetados/ já não passeiam portos por aí/ rasgados velhos sacos de aniagem/ a grã-finagem limpa seus brasões/ protege com seus sacos de aniagem / velha linhagem de quatrocentões/ os sacos de aniagem já não dão/ a queima das fazendas também não/ as latas tomam conta do balcão/ vivemos dias de rebelião.’

Em um papel amarelado e rasgado nas pontas, está outra composição de Gil, Cálice, primeira parceria com Chico Buarque. Recebeu cinco avisos de ‘vetado’, quatro em carimbos e um escrito à mão. Não há nenhuma explicação formal para o veto, como acontecia em outras composições proibidas. É evidente, no entanto, que o censor captou a intenção de confundir o substantivo cálice com o verbo calar-se, que denunciava os rigores da ditadura. Ao lado de ‘cálice’, o funcionário anotou três vezes ‘cale-se’. Vetou, rubricou e datou: 10 de maio de 1973.

Também composta por Gil, a música João Sabino foi vetada em setembro de 1974, mas liberada dois meses depois. A censura implicou com o primeiro verso – ‘tava comendo banana pro santo’ – e, no parecer de reprovação, a censora Odette Martins Lanziotti justificou o fato de fazer ‘menção irreverente à suprema figura religiosa’. Em novembro, dois censores, Augusto da Costa e Lycurgo Leite Neto, disseram ter verificado que a letra não era ‘ofensiva a qualquer figura religiosa’, mas recomendavam a retirada da frase: ‘A fim de que não haja interpretação malévola.’

‘Tava comendo banana pro santo/ pra quem?/ pro santo/ pro santo espírito senhor/ pai do filho e do Espírito Santo/ filho do Espírito Santo/ de uma localidade de lá/ numa localidade de lá/ uma abertura em si/ uma embocadura de dó/ sustenindo uma passagem pra ré’, dizia o início da música. Ainda em 1974, Gil gravou-a em um disco ao vivo, incluindo o primeiro verso.

SEM JUSTIFICATIVA

‘Muitas vezes, a letra da música traz apenas palavras sublinhadas e o carimbo de veto, sem justificativa’, afirma Mauro Lerner. Foi o que aconteceu com Partido Alto, de Chico Buarque. Um asterisco na palavra ‘brasileiro’ e uma interrogação no termo ‘titica’ indicam o que deveria ser alterado.

Chico mudou. Ficou assim: ‘Deus é um cara gozador, adora brincadeira/ pois pra me jogar no mundo tinha o mundo inteiro/ mas achou muito engraçado me botar cabreiro/ na barriga da miséria eu nasci batuqueiro (substituindo brasileiro).’ E na outra estrofe: ‘Jesus Cristo inda me paga/ um dia inda me explica/ como é que pus no mundo esta pobre coisica (no lugar de pouca titica)/ vou correr o mundo afora, dar uma canjica/ que é pra ver se alguém me embala, ao ronco da cuíca.’

As alterações agradaram. A letra foi aprovada pela Polícia Federal, em Brasília, em 10 de abril de 1972.’

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‘‘Era como se a gente estivesse se prostituindo’, diz ex-censora’, copyright O Estado de S. Paulo, 30/01/05

‘Odette Martins Lanziotti foi técnica de censura durante quase toda a década de 70. Lia dezenas de letras de músicas todos os dias e decidia pela aprovação ou não das composições. Criações de Milton Nascimento e Gilberto Gil, entre muitos outros, passaram por sua avaliação. Na sexta-feira, ela ouviu, por telefone, trechos de pareceres que assinou, mas não se lembrou de nenhum.

‘Não tem aí uma música chamada Dois homens? Sou louca para encontrar essa música. Era uma letra muito inteligente, bem elaborada, mas eu sentia algo que não podia aprovar. Li de cima para baixo, de baixo para cima e demorei muito a descobrir o que era. Não me lembro dos versos, mas fazia apologia a dois homens juntos. Nunca mais vi esta música’, conta Odette, de 85 anos, aposentada da Polícia Federal desde 1980.

‘Muitas vezes, a gente reprovava a música, mas se sentia como se estivesse se prostituindo, porque não concordava com aquilo. Mas os censores tinham de ter o máximo de cuidado. Recebíamos muitas orientações que deviam ser seguidas. Quem aprovasse uma música que depois fosse reprovada em Brasília tinha de responder a processo interno.’

Certa vez, aprovou uma letra que falava em ‘tempo de murici’. Lembrou-se do dito popular ‘em tempo de murici, cada um cuida de si’ e não viu problema na composição. ‘Fui criada ouvindo o ditado, nem sabia que tinha um general Muricy (Antônio Carlos Muricy, um dos líderes do golpe militar de 1964). Mas respondi a processo e me defendi. Tive colegas que foram transferidos de cidade porque aprovaram letras que não deveriam ser liberadas.’

SACO DE PANCADA

Os técnicos de censura eram a primeira instância do Serviço de Censura e Diversões Públicas. A PF em Brasília confirmava ou não as recomendações e analisava recursos encaminhados pelos autores.

‘Os censores eram saco de pancada. Recebiam ordens e tinham de executá-las. Recebíamos orientações dos chefes. Algumas vezes, a recomendação era prestar mais atenção na política, no duplo sentido. Outras, chamavam atenção para a apologia das drogas, para a preservação dos bons costumes. As autoridades tinham supremo cuidado, às vezes até em excesso’, ressalta a ex-censora.

Odette afirma que nunca se envolveu com a política, embora às vezes considerasse a censura rigorosa demais. ‘Sempre fui muito apolítica, cumpria minhas obrigações sem entrar em detalhes’, diz ela, que entrou por concurso na Polícia Federal em 1956. Fez vários trabalhos burocráticos até ser chamada para o departamento de censura, no início dos anos 70.

‘A censura primeiro ficou concentrada em Brasília, mas depois eles sentiram necessidade de criar uma turma no Rio. O trabalho era árduo, mas tudo tem um lado positivo. Eu não me envolvia na política e não me envolvo até hoje. Mas o trabalho abriu meus horizontes, porque eu tinha que pesquisar, estudar. Às vezes, nós fazíamos coisas contra nossa vontade, mas tínhamos que obedecer ordens.’’

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‘Nem ‘retratação’ de Vandré escapou da tesoura’, copyright O Estado de S. Paulo, 30/01/05

‘Entre as letras proibidas que o Arquivo Nacional está catalogando há composições de Gonzaguinha, Geraldo Vandré, Aldir Blanc, Paulo Sérgio e Marcos Valle e forrós com letras de duplo sentido. Pátria Amada, Idolatrada, Salve, Salve, de Geraldo Vandré e Manoel Thiago de Mello, foi considerada ‘uma retratação’ pela então censora Odette Martins Lanziotti. Mas nem assim a letra foi aprovada. Odette vetou por ‘trazer como título um dos versos do Hino Nacional numa canção não-cívica’.

Vandré gravou a música, com o título Pátria Amada, na Venezuela. Longe de uma retratação, o tema central é o exílio: ‘se é pra dizer adeus / pra não te ver jamais/ eu que dos filhos teus/ fui te querer demais/ no verso que hoje chora/ pra me fazer capaz/ da dor que me devora/ quero dizer-te mais/ que além de adeus agora/ eu te prometo em paz/ levar comigo afora/ o amor demais’.

Nem a dupla Roberto e Erasmo Carlos escapou. Eles tiveram vetada a música Editora Maio, Bom Dia, em 27 de abril de 1971, ‘pelo entendimento dúbio e tendencioso da letra’, que diz: ‘honestidade, vá embora daqui/ nós não falamos com você, nem a pau/ criamos fatos da imaginação/ onde a verdade não existe em geral’.

Também de autoria de Roberto e Erasmo, a censura não gostou de Vida Blue. Em 25 de junho de 1974, a técnica de censura Marina Brum Duarte citou termos ‘chulos’ e gírias, mas não gostou mesmo da referência ao Esquadrão da Morte, nos versos ‘arrependido não foi salvação/ foi executado pelo esquadrão’. Para a censora, tratava-se de ‘história de marginal e crítica social depreciativa à autoridade policial’. Em 2002, Erasmo resgatou a composição até então inédita e gravou Vida Blue no CD duplo Erasmo Carlos ao Vivo.

TEATRO

Quando as letras de músicas estiverem todas catalogadas, o público poderá escolher o material que quiser pesquisar consultando um índice de todas as composições disponíveis. Hoje, dois livros já resumem o material sobre as peças teatrais. A pasta referente à peça Opinião, de Oduvaldo Vianna Filho, por exemplo, mostra páginas quase inteiras cortadas.

No caso de Gota d’Água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, um dos trechos marcados pela censura traz o aviso: ‘Não falar, incluindo presidente da nação’. O texto dizia: ‘Sentado está Deus Pai, o presidente da nação, o dono do mundo e o chefe da repartição’. Hair foi liberada com vários cortes mas em junho de 1970 o censor Hyldon Rocha diz que os vetos não foram cumpridos na estréia. E observa: ‘O que não poderá acontecer se não forem tomadas as providências regulamentares’?’

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‘Erasmo tenta resgatar música vetada’, copyright O Estado de S. Paulo, 30/01/05

‘Entusiasmado com o resgate de uma letra da qual nem lembrava mais, Editora Maio, Bom Dia, vetada em abril de 1971, o cantor e compositor Erasmo Carlos está agora em busca de alguma gravação da época. A composição, em parceria com Roberto Carlos, deveria fazer parte da trilha sonora da novela de mesmo nome, da TV Record. ‘Não tinha essa letra e não me lembro como era a música. Eu não me lembrava que tinha sido feita para a novela, mas, lendo a letra, vejo que não ia tirar isso do nada’, disse Erasmo na tarde de sexta-feira.

Como o pedido de autorização encaminhado ao Serviço de Censura e Diversões Públicas foi feito pela Discos Copacabana, Erasmo acredita que possa haver alguma gravação no acervo da gravadora. ‘A manchete da capa vai ser pra valer/ se alguém vai sofrer, não queremos saber/ interessa é a mentira que o povo vai ler/ esse é o nosso mundo cão/ festival de opinião/ e a tiragem aumentando’, diz um trecho da música censurada.

Enquanto não recupera a música de mais de 30 anos, Erasmo relembra os embates com a censura prévia. ‘Patu foi censurada, mas como eram vários censores, eu troquei só o título, para Baby, e mandei de novo. Foi aprovada. A gente também tinha que contar com o humor do censor, se ele tinha dormido bem com a mulher, tudo isso’, conta, bem-humorado, o Tremendão.

Erasmo diz que, há três anos, decidiu gravar Vida Blue, escrita para a novela Roque Santeiro, de Dias Gomes, também censurada, como ‘curiosidade’. ‘A música falava em esquadrão da morte, que já até mudou de nome, virou grupo de extermínio. Os jovens de hoje não entendem’, comenta.

FERNANDO BRANT

No fim de 1971, a censora Odette Martins Lanziotti, depois de ler a letra da música Ao Que Vai Nascer, parceria dos mineiros Milton Nascimento e Fernando Brant, recomendou o veto a um trecho, por considerar que deixava ‘clara a descrença no futuro do Brasil’. O objetivo era preservar um slogan do governo do general Emílio Médici, Brasil, país do futuro.

Instância superior, a Polícia Federal em Brasília determinou a mudança em alguns versos. ‘Brasil é o país do futuro, meus filhos, meus netos/ o futuro está aqui/ pintaram os fatos de todas as cores/ nesta eu não …/ acaba a festa, guardo a voz e o violão/ e saio por aí/ encerro o canto só se o corpo adormecer’, dizia a letra original. A emenda do letrista Fernando Brant era muito mais dura que o soneto. ‘Queria falar de uma terra/ com praias no norte e vinhos no sul/ a terra era suja e o vinho vermelho secou/ acaba a festa, guardo a voz e o vilão/ saio por aí raspando as cores para o mofo aparecer’, falava a nova versão. ‘Acho até que piorei, a segunda versão era muito mais direta. Mas eles deixaram passar. Está no disco Clube da Esquina, de 1972’, lembrou Brant, na última quinta-feira.

O compositor conta que fez a música pensando nos filhos que gostaria de ter. ‘Alguns anos depois fui contemplado com duas maravilhosas filhas’, agradece. ‘O Médici não me passou pela cabeça. Mas algumas pessoas, ouvindo a canção, notaram a coincidência do verso que fala que o ‘Brasil é o país do futuro’ com a campanha ufanista dos milicos.’ Uma vez vetada parte da letra original, Brant decidiu, então, arriscar a versão mais ousada.

Dos anos da repressão e da censura prévia, a lembrança mais amarga de Brant é a do parceiro Sirlan (Antônio de Jesus), lançado no festival da canção de 1972, com a música Viva Zapátria, um trocadilho com o filme Viva Zapata, a história do líder guerrilheiro mexicano Emiliano Zapata. Sirlan tentou gravar um disco, mas teve todas as músicas censuradas. ‘O Sirlan era o caso mais absurdo de censura. Inviabilizaram, acabaram com a carreira dele. Era impossível um compositor levar cinco anos para conseguir aprovar dez músicas e gravar um disco’, lembra Fernando Brant. Sirlan desistiu de enfrentar a censura e passou a compor jingles.

SHOW

Para os censurados, alguns episódios são inesquecíveis. Como o show de 11 de maio de 1973, uma sexta-feira, no Palácio de Convenções do Anhembi, em São Paulo. A gravadora Phonogram reuniu seus principais contratados para se apresentarem em quatro shows, entre os dias 10 e 13 de maio. O projeto era gravar uma série de discos que seriam lançados aos poucos. Elis Regina, Gal Costa, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Chico Buarque, Nara Leão eram todos da mesma gravadora. Chegou a vez de Gil e Chico se apresentarem juntos. Os primeiros acordes de Cálice, censurada na véspera, não chegaram nem a ser ouvidos.

Os microfones foram desligados. Não precisou sequer da ordem da censura: a própria gravadora optou pelo silêncio no palco.’