Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Luiz Weis

"Para não perder tempo, admita-se desde logo que tenham razão todos quantos acusam de liberticida o projeto do governo que prevê a criação de um conselho federal e de conselhos regionais de jornalismo. Mas dizer que o projeto não presta, porque pretenderia submeter a imprensa ao controle do governo, e deixar de dizer que ela precisa autocontrolar-se é agir como se o problema não existisse porque não se gosta da solução.


A rigor, a proposta dá aos jornalistas a oportunidade de pagar uma dívida:


finalmente discutir em público e com o público os seus padrões éticos e as suas transgressões, para fortalecer uma coisa e combater a outra.


A importância dessa discussão não pode ser exagerada. As sociedades abertas tornaram-se sociedades de mídia. A imprensa hoje faz mais do que observar, registrar, interpretar e julgar. Por menos que pareça, ela está no cerne das realidades de que se ocupa.


Já as empresas de mídia se transformaram em conglomerados que, por sua vez, se associam a outros, de outros setores. A trama dos seus interesses é cada vez mais intrincada e cada vez menos acessível aos consumidores de informações.


A crise do negócio da comunicação no Brasil acirrou como nunca antes a concorrência entre as redações e dentro delas. Parece não haver limites para as exigências de desempenho dos jornalistas, agravando os efeitos do despreparo de muitos deles.


O resultado é que aumentou o espaço para o erro jornalístico, por dolo ou culpa, e aumentou o espaço de propagação do erro. Só não aumentou visivelmente a preocupação com as responsabilidades da profissão, nas atuais condições de seu exercício.


Isso não é fortuito. Empresários e empregados do ramo relutam em submeter a própria atividade ao mesmo escrutínio implacável a que submetem, em nome do interesse coletivo, outras instituições e pessoas.


Corporação alguma quer se ver no pelourinho. Mas talvez em nenhuma outra tenha deitado raízes tão fundas a regra dos dois pesos e duas medidas. O que decerto nasceu como tentativa legítima de se proteger de pressões ilegítimas ou da censura se perverteu numa carapaça de complacência.


A mídia, já se disse, atira primeiro, pergunta depois, acusa aos berros e se retrata aos sussurros. Por isso mesmo, foi um assombro quando, há um par de anos, o Correio Braziliense deu em manchete que tinha cometido um grave erro.


A resposta automática da imprensa é que as suas vítimas dispõem de leis e de tribunais para se ressarcir – e que a mão invisível do mercado castigará o joio e premiará o trigo. Como se fosse impossível no Brasil adiar sentenças até o Dia de São Nunca e como se a concentração do setor não restringisse as escolhas do consumidor.


Nos EUA, o exemplo sempre invocado, existe a Bar Association (a OAB americana), mas não o equivalente na imprensa, um colegiado corporativo com o poder de punir, até com o banimento profissional, quem infringir o código de ética do ofício.


O que se omite, além da agilidade do Judiciário e das indenizações milionárias que as empresas jornalísticas correm o risco de pagar nos EUA, é que a mídia americana vive no visor da mídia americana. Todos os grandes jornais cobrem regularmente não apenas o business da comunicação, mas os eventuais vexames éticos seus e de terceiros.


Esse sistema de freios e contrapesos, aqui, não existe. Enquanto a polícia e a mídia crucificavam os donos da Escola Base de São Paulo, onde alunos teriam sido molestados sexualmente, nenhuma publicação ou emissora dissecou criticamente a cobertura dada à denúncia, o que poderia ter detido o processo de linchamento moral em curso.


Em matéria de salvaguardas ao alcance da sociedade contra os desmandos da imprensa – por incompetência, espírito de manada ou interesse oculto -, vale a observação de um governador em 1970 sobre a luta contra a ditadura:


‘Estamos muito no começo de tudo.’


Que o diga Eduardo Jorge Caldas Pereira, secretário da Presidência da República no governo Fernando Henrique. Por mais que demonstrasse que as denúncias contra ele eram ocas, o massacre prosseguiu. Os jornais publicavam as suas cartas de protesto e continuavam a publicar as acusações sem lastro.


Custa a crer que não seria desejável que ele pudesse recorrer a uma instância da própria corporação, constituída, administrada e sustentada com total autonomia, autorizada a julgar se, no caso, a mídia foi cúmplice de uma campanha difamatória e a punir os responsáveis, respeitado o devido processo legal.


Foi um tribunal de ética e disciplina, como o previsto no condenado projeto dos conselhos, que baniu da medicina o legista que atestou falsamente que o jornalista Vladimir Herzog se suicidara, e os psiquiatras que participaram de torturas a presos políticos no Rio.


Ah, mas a medicina é uma profissão liberal e o jornalismo é uma profissão de assalariados. A contestação é pobre. Afora o fato de o profissional liberal ser uma espécie em extinção, a responsabilidade ética do jornalista não muda de figura se ele é autônomo ou tem carteira assinada ou assina carteira alheia.


Aliás, um tribunal de jornalistas ajudaria a defender os assalariados éticos de patrões inescrupulosos e vice-versa. O meio melhorou muito, mas há motivos para temer retrocessos. Se o cidadão não sabe como são feitas ‘as leis e as salsichas’, dizia Bismarck, tampouco sabe o que poderá estar embutido numa notícia.


No projeto – passível das mudanças que o debate público dos seus temas indicar -, um jornalista poderia ser excluído da profissão por ‘divulgar fatos inverídicos, deixando de apurar com precisão os acontecimentos’. O oposto não é, efetivamente, a essência do ofício?


É forte o argumento do ministro Carlos Velloso, do Supremo Tribunal Federal, de que a idéia do conselho ‘é o primeiro passo para um aperfeiçoamento da atividade jornalística, tendo a ética como preocupação central. E hoje a sociedade tem fome de ética’.


Acertou no alvo também a colunista Tereza Cruvinel, no Globo. ‘Sustentar que as práticas da imprensa não podem ser discutidas é acreditar que tudo lhe é permitido. É presumir que os demais cidadãos devem ser consumidores passivos de informação’, escreveu ela. ‘Todos devem discutir a necessidade ou o perigo deste conselho. Devem se perguntar se os profissionais da imprensa, tal como os médicos, os engenheiros e outros, devem sujeitar-se a um órgão regulador.’


A discussão se enriqueceria, por sinal, se levasse em conta o modo como jornais e revistas abordaram o caso. Mais de um jornalista insuspeito de petismo observou que a mídia, desobedecendo ao manual, entrou no assunto valorizando antes os críticos que os defensores da iniciativa. Onde o fair play?


Se a ensurdecedora fuzilaria da mídia contra o projeto suprimir a discussão que já tarda, tanto pior para o jornalismo, que precisa servir à sociedade, e para a sociedade, que precisa de informação de boa qualidade, como de ar, para ser verdadeiramente livre. Luiz Weis é jornalista"




Mariângela Gallucci


"Jobim defende tribunal de ética para jornalistas", copyright O Estado de S. Paulo, 17/08/04


"O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Nelson Jobim, disse ontem que seria bom se os jornalistas formassem um ‘tribunal de ética’. ‘Poderia até ser uma autarquia, desde que tivesse autonomia’, afirmou, ao ser questionado se é a favor da criação do Conselho Federal de Jornalismo.


O presidente do STF disse que não conhece o projeto enviado pelo governo, mas afirmou que ‘não pode haver cerceamento da liberdade de imprensa’. De acordo com Jobim, os instrumentos atuais de punição para jornalistas, como ações de indenização e criminais, não têm resolvido o problema.


O ministro do Supremo Joaquim Barbosa disse ontem que considera dispensável a criação do conselho e garantiu que já existem no Brasil mecanismos suficientes para punir os excessos, como as ações penais e de indenização.


‘Já há no nosso direito diversas possibilidades de coibir os excessos no exercício da liberdade de expressão, como as ações de indenização’, afirmou.


‘Para que restrição mais rigorosa do que condenar criminalmente alguém por excessos?’, indagou o ministro do STF, ressaltando que também não conhece o projeto do conselho.


Joaquim Barbosa falou sobre os limites da liberdade de expressão depois de participar de um debate sobre o assunto no STF. Para mostrar que no Brasil essa liberdade não é absoluta e que os excessos são punidos, ele citou o exemplo do gaúcho Siegfried Ellwanger, condenado por editar livros com conteúdo supostamente discriminatório contra judeus. O plenário do STF julgou no ano passado um recurso do editor, mas resolveu manter a condenação.


‘O STF negou o habeas-corpus e validou a condenação criminal, transmitindo a mensagem de que a liberdade de expressão não é irrestrita e que há limites que podem redundar em condenação criminal’, afirmou Barbosa.


EUA – Durante debate com o professor americano de direito David Rabban, Barbosa fez questão de frisar que a interpretação brasileira sobre o direito de expressão segue a orientação dos países europeus e não dos EUA, que, em sua Constituição, estabelece claramente que o Congresso não aprovará lei limitando a liberdade de expressão.


Para demonstrar a diferença, o ministro citou recente episódio envolvendo o site Yahoo. A Justiça francesa proibiu a divulgação de conteúdos anti-semitas. No entanto, a Justiça americana concluiu que essa proibição não se aplicava aos EUA.


Rabban disse que os cidadãos e os jornais devem ter liberdade para criticar o governo. Segundo ele, os jornais são vitais para a manutenção da democracia. Ressaltou ainda que, assim como o magistério, o jornalismo é uma profissão que não pode ser exercida sem liberdade de expressão. ‘Como se costuma dizer na Suprema Corte (dos Estados Unidos), a liberdade de expressão precisa de espaço para respirar.’




Tânia Monteiro


"Lula provoca jornalistas sobre conselho", copyright O Estado de S. Paulo, 17/08/04


"O presidente Luiz Inácio Lula da Silva aproveitou ontem uma folga nos compromissos oficiais na República Dominicana para novamente provocar os repórteres brasileiros sobre o projeto do governo que cria o Conselho Nacional de Jornalismo. ‘Vocês são um bando de covardes mesmo, hein? Vocês não tiveram coragem de defender o conselho’, disse. Na semana passada, Lula já havia brincado com os jornalistas, dizendo que não daria entrevista para quem não apóia o conselho.


O presidente questionou os repórteres sobre o projeto e os motivos pelos quais eles não concordavam com a proposta do governo. Indagou, ainda, se essa não era uma ‘reivindicação histórica’ da categoria. Diante da negativa, emendou: ‘Para mim, para o governo, o que importa é fazer as coisas que a categoria entenda que sejam boas.’


O presidente não quis dizer, no entanto, se o governo vai recuar, devido à repercussão negativa, e retirar o projeto da pauta de votações do Congresso.


As declarações foram dadas quando o presidente saía do hotel, para comparecer à cerimônia de cumprimentos do novo presidente da República Dominicana, Leonel Fernandez.


Lula estava bem-humorado e já chegou brincando com os jornalistas. Indagou a um deles: ‘Cadê a posição classista sua?’ Ao ouvir que a categoria não havia sido consultada para elaborar o projeto, o presidente completou: ‘Mas não é uma coisa boa para vocês?’ E finalizou, depois das negativas: ‘Vocês não eram nem nascidos e já reivindicavam isso.’"




Miguel Reale Júnior


"Liberdade e disciplina", copyright Folha de S. Paulo, 17/08/04


"Aquece a discussão sobre o projeto de lei instituidor do Conselho Federal de Jornalismo, recentemente enviado ao Congresso Nacional. Entendo que a existência de uma ordenação da profissão de jornalista por meio de um estatuto, com a criação do conselho federal e de conselhos regionais, por si só, não afronta de forma nenhuma a liberdade de imprensa.


O Estatuto da OAB diz, em seu artigo 44, II, que a Ordem tem por finalidade a representação, a defesa, a seleção e a disciplina dos advogados. No parágrafo primeiro desse artigo, edita que a OAB não mantém com os órgãos da administração pública nenhum vínculo funcional ou hierárquico.


Nós, advogados, muitas vezes litigamos com o Estado, enfrentamos diariamente as autoridades na defesa do direito dos cidadãos frente ao arbítrio estatal. Por pugnar pelo retorno do Estado democrático, pretendeu a ditadura submeter em 1.972 a Ordem ao Ministério do Trabalho. O então presidente de nossa entidade, José Ribeiro de Castro, liderou um movimento de resistência e a pretensão autoritária não vingou, para o benefício do país.


A independência da Ordem dos Advogados é essencial por uma especial razão. Nós, advogados, que temos, por destino histórico e por determinação do estatuto, a missão de lutar pela preservação e aprimoramento da ordem democrática, podemos estar submetidos a uma ordem legal disciplinadora de nossa profissão quanto à seleção e inscrição, bem como a um controle ético por via da previsão de infrações disciplinares com suas respectivas sanções, mas não devemos estar sujeitos a controle por parte de nenhum órgão da administração pública, razão pela qual a OAB não pode ser um órgão em linha do Ministério do Trabalho.


O mesmo deve ocorrer com o órgão de classe dos jornalistas. Tal se justifica dado que o jornalista deve, como o advogado, estar revestido de toda a liberdade, pois em sua missão de informar não apenas revela fatos, mas vai mais longe ao interpretá-los e criticá-los, buscando as razões aparentes e as verdadeiras dos atos da administração pública. É função do jornalista denunciar os acontecimentos nocivos, ilícitos ou imorais, ou elogiá-los, se positivos no atendimento a necessidades políticas ou econômico-sociais da população. Não pode, portanto, haver submissão hierárquica do conselho profissional dos jornalistas ao Ministério do Trabalho.


Por outro lado, a Ordem dos Advogados não se imiscui na fiscalização ou orientação do exercício profissional, limitando-se a atuar na repressão às infrações éticas constantes do próprio estatuto e do código de ética. Igualmente, não deve o jornalista estar sujeito à orientação e à fiscalização (fiscalizar, conforme o dicionário ‘Aurélio’, é vigiar, sindicar, examinar) por parte do órgão de classe, no exercício de sua profissão. Disciplina, sim; orientação e fiscalização, não, como propõe o projeto de lei.


Há um código de ética dos jornalistas ainda sem eficácia exatamente por falta de uma ordem legal da profissão. O código de ética deve integrar a lei, estatuindo-se claramente as sanções aplicáveis a cada infração. É importante haver uma disciplina da profissão em defesa do interesse público e da revelação correta dos fatos, punindo-se, por exemplo, as deturpações e manipulações dolosas da verdade, como preceitua o art. 7º do Código de Ética. Nada ofende a liberdade de imprensa um estatuto do jornalista que dê eficácia ao Código de Ética, do qual constem regras objetivas de comportamento, cujo desrespeito venha a ser objeto de apreciação por seus pares, legitimamente eleitos. Mas a liberdade de informar e criticar exige que não se vá além de disciplinar, sem pretensões de orientar ou fiscalizar.


Outra falha do projeto está em não fixar as regras de composição e eleição dos membros do Conselho Federal e dos conselhos regionais. O projeto peca por ser largamente omisso, deixando para o Conselho Federal Provisório o preenchimento normativo nas hipóteses de lacuna, que são muitas.


Uma questão que causa estranheza está na referência, acrescentada, na Casa Civil, ao texto oriundo do Ministério do Trabalho, estabelecendo como objeto do conselho o controle da atividade de jornalismo ao lado da disciplina da profissão de jornalista. O que se pretende dizer com a atividade de jornalismo? Em passo nenhum do projeto se define o que seja. Se a pretensão é fiscalizar e controlar as empresas jornalísticas, por meio de um conselho de jornalistas, estão-se misturando alhos com bugalhos, pois uma atividade econômica regida por legislação própria, as leis de imprensa e de concessões de telecomunicações, não pode ser objeto de orientação, disciplina e fiscalização de órgão profissional que não a integra e não a representa.


E como a lei é omissa, caberá ao conselho suprir a lacuna, para dizer o que é atividade de jornalismo, bem como quais as regras que essa atividade deve seguir. Faz falta um Estatuto do Jornalista, mas a proposta ora em exame exige modificações importantes, que se espera venham a ser produzidas pelo Congresso Nacional. Miguel Reale Júnior, 60, advogado, sócio da Reale Advogados Associados, é professor titular da Faculdade de Direito da USP. Foi secretário da Segurança Pública (governo Montoro) e da Administração (governo Covas) do Estado de São Paulo e ministro da Justiça (governo Fernando Henrique Cardoso)."




Silvana De Freitas


"Abusos da mídia não são inibidos, diz Jobim", copyright Folha de S. Paulo, 17/08/04


"O presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Nelson Jobim, disse ontem que os instrumentos atuais para punir abusos da imprensa ‘não têm resolvido o problema’. Ele evitou comentar diretamente a proposta de criação do Conselho Federal de Jornalismo, mas defendeu a liberdade de expressão. ‘Se o conselho é bom ou não, não opino. O que não pode é ter qualquer tipo de cerceamento da liberdade de imprensa’, afirmou. ‘O bom seria se a categoria formasse uma espécie de tribunal de ética, que teria autonomia.’


Os mecanismos existentes para coibir excessos são indenização por danos morais, movida contra a empresa de comunicação e o jornalista, e condenação criminal.


Em uma linha divergente, o ministro do STF Joaquim Barbosa disse que esses dois tipos de ação são suficientes para controlar os abusos e por isso considerou dispensável a criação do conselho neste momento.


Tanto Jobim quanto Barbosa destacaram que desconhecem o teor do projeto defendido pela Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) e enviado ao Congresso pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva."




Deonísio da Silva


"Pavana para um ovo de minhoca", copyright O Estado de S. Paulo, 17/08/04


"É difícil evitar pleonasmos e redundâncias para abominar e repelir o projeto que propõe a criação do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ). Não interessam eventuais boas intenções, que delas o Inferno está cheio, como escreveu São Bernardo.


Quem errou, que seja punido nos tribunais. Vivemos num Estado de Direito. E o projeto é, antes de mais nada, desnecessário até para as boas intenções que porventura tenham tido seus redatores.


Para não chatear os leitores, vou fixar um outro contexto, escrevendo sobre tema de domínio conexo e recordando uma figura exemplar.


No Renascimento, uma dança realizada durante procissão católica, surgida no então condado de Pádua, próximo à Espanha, inspirou a palavra ‘pavana’ como sinônimo de reprimenda, descompostura. Provavelmente a palavra, feminino de pavano, redução de padovano, nasceu da expressão danza padovana.


Tristão de Atayde, pseudônimo de Alceu de Amoro Lima, a utilizou em artigo publicado no Jornal do Brasil, no dia 2 de junho de 1978: Pavana para um direito traído. O famoso pensador e crítico brasileiro comentava o livro O Direito, um Mito (Editora Rio), de João Uchôa Cavalcanti Netto, lançado no ano anterior.


Dizia Tristão de Atayde, membro da ABL, tratar-se de ‘um ensaio dos mais originais e temerários que se têm escrito entre nós’. Não é difícil identificar no livro, agora relançado, alguns dos temas que desconcertaram o célebre intelectual, marcado por um catolicismo exemplar. Eis pequena amostra: ‘Lúcifer abarrotou de crucifixos os tribunais do mundo inteiro. Nisso, porém, antes desvendou o irremediável paganismo do Direito: porque o símbolo só entra onde não se consegue introduzir o simbolizado, a cópia existe para se prescindir do original e o retrato se por um lado recorda por outro grita que o retratado está ausente’ (páginas 122-123).


Foi na capital da República, em 1977, que conheci o ‘doutor Alceu’, como era também chamado com irreverência por Nelson Rodrigues, que sempre implicava com ele. Estávamos ali para a entrega dos Prêmios Brasília de Literatura, atribuídos pelo MEC e pela Fundação Cultural de Brasília. O conto-título de meu livro de estréia, Exposição de Motivos, já transposto para televisão por Antunes Filho, tratava da censura, praticada por diretora neonazista num colégio do Brasil meridional. Estava eu condenado pela Lei de Imprensa e pela Lei de Segurança Nacional, por conto publicado em jornal, e premiado pelo MEC, por conto publicado em livro!


Jamais esquecerei aquele encontro com Dr. Alceu, de quem guardei boas lembranças. Ele me disse que, quando menino, encontrava Machado de Assis passeando pelas ruas do Rio. Na hora, com a arrogância comum aos jovens, achei que ele estava caducando, afinal tinha 84 anos. Mas, não. Ele realmente fora contemporâneo de nosso maior escritor, pois tinha 15 anos quando o Bruxo do Cosme Velho faleceu.


Todas as referências literárias que fazia não escondiam preocupação com a transcendência. Foi, porém, uma terceira coisa que me encantou. Lá pelas tantas, mancando, porque se recuperava de um desastre, subiu à tribuna para fazer duro discurso contra a censura.


Lembrei dele quando, semana passada, alguns jornalistas, hoje em instâncias decisivas, deixaram a procissão ou pavana de outrora e, ‘sem querer, querendo’, como dizem as crianças, propuseram que entreguemos a liberdade duramente reconquistada para que eles possam ‘orientar, disciplinar e fiscalizar’ a atividade jornalística no país!


Vai começar tudo de novo? Não. O ovo não é de serpente. É de minhoca. E de minhocas estão cheias as cabeças que conceberam o monstrinho."