Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Michel Guerrin

‘Em entrevistas inéditas, Henri Cartier-Bresson, morto na última terça, aos 95 anos, fala de seu trabalho, de seus amigos, de suas relações com a imprensa, de sua agência e de seu gosto pela arte.

Tivemos vários encontros com Henri Cartier-Bresson, a partir de 1990, em seu apartamento iluminado na Rue de Rivoli. Às vezes para uma entrevista ao ‘Monde’, várias vezes pelo simples prazer de conversar com ele. Algumas das entrevistas foram gravadas. De vez em quando Cartier-Bresson recusava o gravador. ‘Faz bem trabalhar a memória’, dizia.

Os jornais e a época

Dizem que os jornais dos anos 50 eram melhores do que os de hoje. Era a saúde do mundo que estava melhor. Hoje nos pedem que vivamos em segunda mão. Alguns dias atrás eu estava no TGV (o trem de alta velocidade). À minha frente, uma mulher lia uma revista de psicologia. Eu disse a ela que, no meu tempo, as pessoas se falavam nos trens e aprendiam psicologia dessa maneira. Ela riu. Concordou comigo. Ter tempo, tomar tempo para fazer as coisas, foi o único luxo de minha vida. As pessoas apressadas são infelizes. Cioran já disse que a morte nunca exigiu que se marcasse uma hora para ela. O que me alimenta é a imprensa escrita, o ponto de vista dos redatores, os comentários. Leio os jornais diários para ficar em contato com a vida do dia-a-dia. Não leio o tipo de revista em que as mulheres são inatingíveis.

Um ganha-pão

Para mim, a imprensa foi apenas um ponto de apoio. Ela me permitiu viver, foi um ganha-pão. Convivi muito bem com a imprensa. Durante minhas reportagens, antes e depois da guerra, eu fotografava todos os dias, mas não tinha nem tempo nem vontade de me interessar pela publicação das fotos. A agência Alliance Photo, antes da guerra, e a Magnum, no pós-guerra, se encarregavam de vender as imagens. Eu passava três quartos do tempo viajando, não via as fotos publicadas. Meu tesouro de guerra não é a imprensa, é a exposição e o livro, o lado visual.

O ‘Ce Soir’, de Aragon

Nos anos 30 trabalhei durante alguns meses para o diário comunista ‘Ce Soir’, de [Louis] Aragon. Foi lá que conheci Robert Capa e Chim Seymour, com os quais fundei a agência Magnum, depois da guerra. Éramos os fotógrafos credenciados do jornal. Aragon nos deixava totalmente à vontade. Vivíamos à margem da sociedade; o dinheiro de um era o dinheiro do outro. Ao nosso lado havia outros fotógrafos, colegas sindicalizados. O ‘Ce Soir’ me enviou a Londres, juntamente com Paul Nizan, para cobrir a coroação do rei Edward 8º. Foi quando fiz aquela foto de pessoas dormindo num parque.

Em 1934, um amigo organizou em sua casa uma reunião contra o coronel de La Roque. Havia muitos intelectuais, Guehenno, talvez Malraux, todos os surrealistas, menos Aragon e Sadoul, que tinham viajado a Kharkov, na União Soviética, para um congresso. Sabemos o que foi feito deles -o movimento surrealista foi denunciado nesse congresso, que marcou a ruptura entre os comunistas, que seguiram Aragon, e os surrealistas, que seguiram Breton. Eu, de minha parte, me sentia próximo de um ideal comunista, um pouco como os primeiros cristãos. Depois mudei um pouco de idéia com a leitura do livro de Gide sobre a URSS.

Mas não sou um homem de partido, sou um revoltado. Assim, não cheguei a conhecer verdadeiramente Aragon, que se desentendeu com os surrealistas. Quanto a Breton, a última vez em que nos vimos não foi bem. Jantamos juntos, e ele me disse: ‘Você que gosta de Cézanne’, esboçando um movimento como se fosse me dar um soco no queixo. Respondi: ‘Sim, e daí?’. Breton respondeu: ‘Esse sr. nunca teve a coragem de dizer à sua mulher que, para pintar banhistas, era preciso contar com corpos femininos de verdade’. Breton tinha um ponto de vista tão moral… Depois disso ele falou mal de Alberto Giacometti. Foi o fim. Alberto era meu mestre em termos de pensamento.

Manipulação das revistas

Para mim, as imagens devem ser mudas. Elas precisam falar ao coração e aos olhos, não devem ser ligadas ao texto. Podemos fazer uma imagem na imprensa dizer qualquer coisa. Mostrei minha foto do papa à minha mãe, que era uma mulher religiosa que lia os pré-socráticos, Demócrito, Heráclito, Espinoza. Ela disse que era minha foto mais religiosa. Um amigo me declarou, pelo contrário, que era a mais anti-religiosa possível. Então… A imprensa ilustrada aproveita essa ambiguidade das imagens para manipular. Com freqüência, ela faz mais comunicação do que jornalismo.

A agência Magnum

Quando criamos a Magnum, eu e Chim Seymour nos perguntávamos como faríamos para que Capa pudesse sobreviver, ele que vivia em grande estilo, oferecendo refeições suntuosas. Éramos ingênuos. Na verdade, foi ele quem nos fez sobreviver. Chim imaginou os estatutos e a organização da Magnum, mas era Capa quem negociava os contratos com os jornais. Ele o fazia muito bem -e como! Eu ficava espantado com seu dom da palavra. Capa não era comerciante, mas jogador de pôquer. Se Chim e eu tivéssemos ido aos jornais para falar de dinheiro, teríamos sido lamentáveis.

É preciso lembrar que o mundo era outro, não havia televisão. Como imaginar, quando me vi na China no momento da revolução, que não havia outros fotógrafos comigo? Quando parti para a URSS, em 1954, não foi para a ‘Paris Match’, mas para a Magnum. Foi apenas mais tarde que a reportagem saiu na revista.

Devo muitíssimo à Magnum. Especialmente pelos arquivos, que constituem a riqueza da agência. Sabíamos que nossos arquivos eram nossa ‘segurança’. O problema são os vínculos entre a imprensa e o dinheiro, especialmente com a publicidade. Espero que o lado aventureiro da Magnum continue presente sempre. Numa empresa pequena, é preciso permanecer aventureiro.

Um trabalho político

As exposições permitem que se dê forma ao conjunto de imagens. É a força do documentário, poder conferir forma a um tema. Mas saber o que esse conjunto prova, não sei nada. Dou meu testemunho de que estive lá e que vi aquilo. Sou herdeiro de uma tradição, a de Walker Evans. Tomemos o caso da globalização, que me apavora. O problema é que a Leica não pode dar conta dela. Acho que não se pode fazer um trabalho diretamente político com a máquina fotográfica. Não posso provar com minha máquina, posso apenas testemunhar a partir da vida de todos os dias. Aliás, existe um buraco na Magnum, que é a guerra da Argélia.

Nunca pus meu trabalho a serviço de uma idéia. Tenho horror às imagens que defendem uma tese. É o subconsciente que joga, e é preciso respeitá-lo. Querer ‘pensar’ alguma coisa -não, não e não! As pessoas estão fartas de idéias. Como se houvesse um prêmio por ser inteligente.

Não tenho nada a provar -eu vi isso, eu vi aquilo. Confio no homem, mas acho a sociedade lamentável. Por outro lado, não há dúvida de que vejo aquilo que outros não enxergam. Corremos, suamos e fazemos fotos. Existem os fotógrafos como eu, que sofreram duas doenças profissionais, nos joelhos e na coluna vertebral. E existem os fotógrafos conceituais, que pensam. Essa noção de artista é definida pela burguesia do século 19 -Haydn tinha que mostrar que tinha as mãos limpas como as das pessoas da casa.

Dizem que sou surrealista. Sem dúvida, mas poucas pessoas compreendem que sou o surrealista da realidade. As pessoas acham que, para ser surrealista, é preciso obrigatoriamente colocar uma lata de lixo na cabeça. Meu sogro me disse um dia: ‘Henri, você não tem bom senso!’. O bom senso não foi uma qualidade primordial para os surrealistas. O surrealismo não é o chapéu engraçado, é mais do que isso.

Música, arte, cinema

Ouço música o tempo todo enquanto trabalho -jazz, música clássica. Na escola, eu tocava flauta para não precisar jogar futebol. Um dia meu professor, que era do Conservatório, me disse que eu não tinha ouvido. Foi ele quem me incentivou a fazer outra coisa: desenho, pintura. Durante toda a minha vida, sempre que eu ia fotografar em um país, minha recompensa era ir aos museus. Foi ali que compreendi que fazer um retrato significa representar a si mesmo. Nos retratos feitos por Avedon, é Avedon quem eu vejo.

Mas, você sabe, a fama… Me irritava com alguém que me perguntava se tal pintor era conhecido. Respondi que ele provavelmente era conhecido por seu zelador e pelo serviço de informações. No cinema, que aprendi em 1935, com Paul Strand, há um discurso a conduzir, pois você nunca vê a imagem: é preciso ordenar as frases, conhecer a gramática. É um discurso com imagem. Enquanto isso, na fotografia, há o lado aventureiro e existe sempre a preocupação da geometria.

‘Jesuíta protestante’

Falar de mim não interessa a ninguém. O que vale é a atitude, aliada a uma certa cultura. Eu leio muito, é uma maneira de viver. Mas sou reservado. Quando se fala de mulheres, eu enrubesço. Jean Lacouture me dedicou seu livro sobre os jesuítas: ‘A um jesuíta protestante’.

Medo da morte? Da morte, não, mas do sofrimento, sim, penso nisso a toda hora. É normal. Nos EUA me sinto pouco à vontade, porque não se fala da morte. Prefiro o México ou a Espanha, onde existe uma continuidade natural entre a vida e a morte. Durante uma exposição da Magnum em Londres, respondi a uma pessoa que não me reconheceu e que me fez uma pergunta sobre HCB. Eu disse: ‘Ele morreu faz tempo e era um safado. Pergunte aos fotógrafos -eles lhe dirão por que’.

Tenho horror da segregação entre jovens e velhos. Perguntei à loja da prefeitura até quando era válido um cano que eu tinha acabado de comprar. ‘Até 1995.’ Respondi que tenho 82 anos e que o cano ainda vai durar muito tempo. Um negro alto me olhou fixamente: ‘82 anos!’. Eu o olhei e lhe disse que, quando tinha 21 anos, quase morri em seu país por causa de uma febre. Como ele ficou surpreso, acrescentei: ‘Você deve ser da Costa do Marfim’. Ele respondeu: ‘Sim. Venha me contar a história num café. Para nós, os velhos são a memória’. Eu lhe falei da África que conheci, falei de Céline, palavra por palavra. Espero comunicar uma alegria e uma esperança de viver. Pois, se sou ladrão -e eu teria gostado de ser Arsène Lupin, mas não sou tão talentoso assim-, sou um ladrão que doa. Tradução de Clara Allain’



Patrick Roegiers

‘Morre na França Henri Cartier-Bresson’, copyright Folha de S. Paulo / Le Monde, 5/08/04

‘Henri Cartier-Bresson, um dos grandes mestres da fotografia do século 20, morreu na segunda-feira, aos 95 anos de idade, em Céreste (Alpes-de-Haute-Provence). A informação foi dada por pessoas próximas ao fotógrafo, que também informaram que seu corpo foi sepultado na quarta-feira. A causa da morte não foi revelada. Autor de uma obra grandiosa e pai do fotojornalismo moderno, um dos maiores fotógrafos contemporâneos, Henri Cartier-Bresson morreu em l’Isle-sur-la Sorgue (Vaucluse). Acaba de chegar ao fim uma vida inteira passada percorrendo o mundo.

Dotado de curiosidade insaciável e mais paradoxal do que sua obra parece indicar, Cartier-Bresson definiu sua relação com a fotografia nos seguintes termos: ‘Para mim, a máquina fotográfica é uma verdadeira amante. Ela nos dá vontade de encerrar o mundo inteiro nessa caixinha, com todos os detalhes significativos que fazem o encanto da existência’. Cartier-Bresson, que só se tornou repórter profissional em 1946, dá a impressão de ter estado presente sempre. A maior parte dos fatos marcantes do século foi registrada por seu olhar.

Nascido em 1908, em Chanteloup, perto de Paris, ele cresceu num ambiente em que não faltava dinheiro e estudou pintura com André Lhote. Marcado pelos conceitos de André Breton sobre o acaso, a revolta e a intuição, ele foi primeiramente influenciado pelo surrealismo. Foi por meio do fotojornalismo, que ele comparava à instantaneidade do desenho, que chegou à fotografia, nos anos 1930. Cartier-Bresson carregava a máquina fotográfica como um caderno de anotações e afirmava ter encontrado seu senso de composição apenas três dias depois de ter começado a usar sua Leica.

Em Nova York, ele se iniciou na montagem fotográfica com Paul Strand. Em 1937 casou-se com Ratna Mohini, uma dançarina javanesa. Tornou-se assistente de Jean Renoir em três de seus filmes. Feito prisioneiro de guerra nos Vosges, em 1940, conseguiu escapar. Aos 38 anos, entrou para o mundo dos mitos com a homenagem póstuma que lhe foi feita após a guerra pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, acreditando que tivesse morrido.

Por mais que rejeitasse o rótulo de jornalista, Cartier-Bresson foi uma das principais testemunhas de todos os grandes acontecimentos mundiais, quer se tratasse da libertação de Paris, ou, em 1949, dos últimos dias do Kuomintang em Pequim. Passou pela China, por Cuba e pela Índia, onde esteve com freqüência. Era talvez nesse país que se sentisse melhor. Quer mostrasse o último jejum de Gandhi, seu corpo no dia seguinte a seu assassinato ou simples cenas de pesca ou oração, o desprendimento, o fervor e a abstração que marcam seu olhar são levados ao auge nessas imagens indianas.

O que fascina, de fato, é que esse olhar em nenhum momento perturba a ordem das coisas. Henri Cartier-Bresson fotografa ‘como um gato, sem incomodar’. Suas imagens impecáveis, tão clássicas em sua forma, permanecem instantâneas porque são intrinsecamente ligadas ao prazer da tomada. Cartier-Bresson sabia que, em todas as circunstâncias, ‘a vida só se exprime de uma vez por todas’. Nada se deve ao acaso nessas visões enquadradas com maestria, nas quais se combinam ao mesmo tempo a tensão, a graça e a emoção. ‘O segredo é a concentração’, disse. Tudo depende da elasticidade do dedo. A tomada fotográfica ou o prazer tátil e sensual da tomada, como ele explicou claramente em sua teoria do ‘instante decisivo’.

Cartier-Bresson contribuiu para dar nobreza à fotografia em um momento em que ela era pouco reconhecida. Como Kertész, que ele sempre teve como mestre, ele originou toda uma geração de fotógrafos que, no pós-guerra, se sentiram em casa na rua.

Nos últimos anos, o culto a Cartier-Bresson vinha diminuindo. O pai da fotografia era contestado de vez em quando. A partir de 1973, passou a dedicar-se ao desenho, a lápis e a carvão. Apesar do cuidado extremo que dedicou a eles, esses desenhos jamais chegaram a ter o caráter de esboço instantâneo de suas fotos.

Em mais de meio século, igualando-se aos maiores, Cartier-Bresson criou uma obra imensa, cujo alcance ele resumiu assim: ‘Para compreender a história, é preciso conservar uma certa forma de inocência. Meu único segredo foi tomar meu tempo e, sobretudo, tomar o tempo necessário para viver com as pessoas … e, depois, saber esquecer’. Tradução de Clara Allain’



Eder Chiodetto

‘Fotógrafo descobria delicadeza de gestos’, copyright Folha de S. Paulo, 5/08/04

‘‘Tirar fotos é prender a respiração quando todas as faculdades convergem para a realidade fugaz. É organizar rigorosamente as formas visuais percebidas para expressar o seu significado. É pôr numa mesma linha cabeça, olho e coração.’ Esta imbatível definição do ato fotográfico, feita pelo próprio Henri Cartier-Bresson, serve de ponto de partida para entender a magnitude e a repercussão de sua obra em todo o mundo.

De posse de uma Leica, a câmera que dotou os fotógrafos do poder da invisibilidade ao ter tamanho e peso diminuídos em relação aos equipamentos que existiam até então, Cartier-Bresson encarnou um autêntico ‘flâneur’, personagem criado por Charles Baudelaire, que tinha por gosto se deixar seduzir pelos erráticos caminhos das ruas parisienses em busca de histórias e imagens. De imagens, não, como ele dizia: ‘A foto em si não me interessa, mas, sim, a reportagem, a comunicação entre o mundo e o homem comum. E há este instrumento maravilhoso, a câmera, que passa despercebido. É uma dança!’.

Cartier-Bresson fotografava com o instinto de um caçador que persegue obstinadamente sua presa. Ele até se enveredou pelo universo dos retratos e os fez bem, mas seu grande diferencial era um faro particular para capturar flagrantes. Sua busca incansável era por aquilo que ele conceituou como o instante decisivo, o momento em que o universo em harmonia conspira a favor do artista.

Uma fração mínima de tempo em que forma e conteúdo atingem o limite da expressão e se enquadram perfeitamente entre as quatro linhas do retângulo da sua câmera. Nas palavras dele:

‘Para mim, o aparelho fotográfico é um caderno de notas, um instrumento da intuição e da espontaneidade, senhor do instante que em termos visuais pergunta e responde a um só tempo. Para expressarmos o mundo temos de nos sentir envolvidos com aquilo que descobrimos no visor. Esta atitude exige concentração, disciplina mental, sensibilidade e senso de equilíbrio geométrico. É pela grande economia de meios que se chega à simplicidade de expressão’.

Mais do que uma técnica apurada, o instante decisivo de Cartier-Bresson preconizava a paixão pelo prosaico e pela fugacidade da vida. Sua investigação não buscava a obtenção de fotografias grandiosas, mas, sim, a descoberta da beleza e da delicadeza dos pequenos gestos, como em ‘Rue Mouffetard, 1954’, em que um garoto dobra a esquina carregando duas garrafas. Dessa forma ele abriu o caminho para uma linhagem de fotógrafos dito humanistas que depois se reuniriam em torno da mítica agência Magnum, fundada por ele e Robert Capa, entre outros, em 1947.

Numa de suas raras entrevistas, concedida para a também fotógrafa Sarah Moon, em 1947, Bresson disse que começou a fotografar em 1931, influenciado pelos surrealistas (‘Não pela pintura deles, mas pela percepção do subconsciente’) e parou no início dos anos 70, após uma conversa com o amigo e crítico de arte Teriade. ‘Ele me dizia: ‘Volta, volta. Você já disse tudo o que podia. Não deve se repetir. Você precisa se questionar. É uma atitude libertária’.’

Com a câmera aposentada Bresson se abrigou no desenho e na pintura. ‘Não tenho saudades. O desenho é uma meditação, enquanto a foto é um tiro.’ A preferência pela meditação e pela reclusão era também uma forma de fugir ao assédio: ‘A fama é horrível, horrível. Ficamos acorrentados’, queixava-se.

Bresson morre no momento em que a fotografia passa por uma profunda transformação no mundo todo. Com a disseminação das câmeras digitais portáteis, celulares e palm tops que fotografam e a facilidade de circulação das imagens via internet, uma nova linguagem está sendo elaborada sem que saibamos onde tudo isso vai dar.

A visão de mundo de Bresson e de seus pares, calcada na sensibilidade, na argúcia e no rigor estético parece não ser mais suficiente para traduzir esses novos tempos. A era da velocidade e da informação carrega a crença de que o instante decisivo ocorre o tempo todo e está on-line. Mera ilusão. Cartier-Bresson será sempre o fio da meada para se reencontrar uma sensibilidade em extinção.’



Folha de S. Paulo

‘REPERCUSSÃO’, copyright Folha de S. Paulo, 5/08/04

‘CRISTIANO MASCARO, fotógrafo e arquiteto:

‘Vendo uma foto dele em um livro, percebi pela primeira vez que a fotografia poderia registrar não só as tragédias e aquilo que a gente vê nos jornais, mas também a emoção cotidiana. Ali decidi que queria ser fotógrafo.’

BORIS KOSSOY, professor titular de jornalismo da ECA-USP:

‘Trabalhando com um equipamento simples, provou décadas atrás que é possível alinhar a mente, o coração e o olho num objetivo. Fez um fotojornalismo inteligente e humanista, que conseguia substituir as palavras com sua tomada fotográfica, chamava de ‘o momento decisivo’. Ele é um fenômeno na fotografia, um divisor de águas. Sua obra segue.’

FERNANDO LEMOS, fotógrafo, pintor e artista gráfico português:

‘Para minha geração, foi um dos grandes professores, um dos homens da primeira vanguarda da fotografia. Trouxe um lado mais humanista para a arte.’

JACQUES CHIRAC, presidente da França:

‘Com sua morte, a França perde um fotógrafo genial, um verdadeiro mestre, um dos artistas mais dotados de sua geração e um dos mais respeitados no mundo.’

MÁRIO CRAVO NETO, fotógrafo:

‘Para um artista ou para qualquer homem que dedicou sua vida ao bem da humanidade, através de sua arte e de sua ação comunitária, morrer é também renascer. Felicitações pelo nascimento de Cartier-Bresson no dia de hoje (ontem).’

MAUREEN BISILLIAT, fotógrafa:

‘Cartier-Bresson abriu nossa época para o circunstancial da vida. Fotógrafo ambulante, influenciou o jornalismo pelo discernimento preciso de seu olhar. Seu legado é sua vida, espelhada nas vidas que ele fotografou.’

MIGUEL RIO BRANCO, fotógrafo, conheceu Bresson na França, na década de 80:

‘O trabalho dele dos anos 30 é absolutamente incrível, uma revolução na fotografia, graças ao contato com os surrealistas. Era uma figura absolutamente autêntica, não tinha meias-palavras.’

RUBENS FERNANDES JÚNIOR, pesquisador e crítico de fotografia:

‘Ele é o pai das últimas cinco gerações de fotógrafos do mundo inteiro. Foi um dos último profissionais que apostaram numa fotografia pura, transparente e sem interferências. Era o fotógrafo mais importante do século 20, o mais completo, o mais silencioso, o mais puro.’’



IstoÉ

‘Artista dos instantes’, copyright IstoÉ, 9/08/04

‘Traído pelos malefícios da velhice, desde a última década o francês Henri Cartier-Bresson vinha se apoiando numa bengala que, apropriadamente, em situações específicas se transformava num banquinho. Nele, o mais importante fotógrafo do século XX se sentava para observar ou desenhar as obras de arte do parisiense Museu do Louvre, local que conhecia nos mesmos detalhes que a inseparável câmera Leica, marca que o acompanhou desde quando começou a fotografar em 1931. Há muito, Cartier-Bresson havia aposentado suas lentes, ou melhor, a lente 50mm, a única com a qual fotografava. Como uma Greta Garbo da fotografia, abandonou o ofício em 1973, aos 65 anos, ainda no auge de uma carreira coroada de sucesso e reconhecimento. Optou pelo desenho e pela pintura, atividade que desde a adolescência o laçou apaixonadamente. Foi desenhando a lápis, crayon e caneta que Henri Cartier-Bresson viveu até seus últimos dias. Ele morreu na segunda-feira 2, de causa não divulgada, aos 95 anos – faria 96 em 22 de agosto – em Isle-sur-la-Sorgue, Sudeste da França, conforme informou uma pessoa de seu círculo na quarta-feira 4.

Filho de uma rica família de industriais do ramo têxtil, Cartier-Bresson, que nasceu em Chanteloup, arredores de Paris, nunca se interessou pelos teares. Preferia a companhia dos livros de escritores do porte de Marcel Proust – seu preferido – e James Joyce ou do poeta Arthur Rimbaud. Assim que se interessou pela câmera, em 1932 levou à fama internacional um de seus primeiros cliques, o de um homem e sua sombra na poça d’água formada à frente da estação Saint-Lazare, em Paris. Durante a década de 1930, viajou à Espanha, onde documentou a Guerra Civil, e ao México, país que voltaria outras vezes para perpetrar excelentes registros dos contrastes da realidade local. Na mesma época, quando nenhum turista se arriscava na África, por aventura se embrenhou nas savanas, contraiu malária e só foi salvo da morte pelas ervas de um nativo. Durante a Segunda Grande Guerra caiu três vezes prisioneiro dos alemães. Fugiu em todas elas. Com o término do conflito, em 1947 fundou com os colegas Robert Capa, David Seymour e George Rodger a Magnum, agência que fez história ao estabelecer o padrão de qualidade do fotojornalismo.

Seu currículo ainda aponta outras ousadias. Em 1954, se engaja como o primeiro fotógrafo ocidental a ser admitido na União Soviética após a morte de Stalin.

Depois, percorre o Oriente Médio, muda de continente e, fascinado pelos mitos do socialismo nascediço, seus olhos azuis focam os líderes Fidel Castro e Che Guevara. Ao longo da carreira, fotografou as maiores celebridades do século XX: Pablo Picasso, Henri Matisse, Samuel Becket, Jean-Paul Sartre, Marilyn Monroe e muitas outras. Ironicamente, detestava a fama. ‘Sou grato pelo reconhecimento, mas isso é muito pesado. Gostaria de ser anônimo’, dizia o fotógrafo, um inimigo dos flashes e das conversas com jornalistas. Não lhe interessava ‘o lado anedótico das entrevistas’. Também era dono de frases incisivas sobre sua arte. ‘A técnica em si não existe. Fotografia não se aprende. O aprendizado, o contato excessivo com a máquina é a preguiça do olho, ele fica atrofiado.’ Numa de suas raras entrevistas, em 1996 revelou à crítica Sheila Leirner, de O Estado de S.Paulo, que apenas duas coisas o interessavam: o instante e a eternidade. Henri Cartier-Bresson eternizou centenas de instantes.’