Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Milton Coelho da Graça

‘O presidente Dwight Eisenhower (1956-1960) lia nove jornais todas as manhãs, além de uma página de resumo da imprensa, preparado por seus assessores. Dos diários que ‘Ike’ lia – Washington Post, Washington News, Washington Star, Washington Times-Herald, New York Times, New York Herald Tribune, Daily News (New York), Baltimore Sun e Chicago Tribune – quatro não existem mais e os sobreviventes recebem muito pouca atenção do presidente Bush, conforme ele mesmo revelou em uma entrevista ao programa Fox News em setembro do ano passado:

‘Dou uma olhada nas manchetes só para sentir o sabor daquilo que está causando movimento. Raramente leio as reportagens e sou informado por pessoas que provavelmente lêem as notícias. Mas, para falarmos de Condoleeza, neste caso a Conselheira de Segurança Nacional está obtendo suas informações diretamente dos participantes no palco mundial.’

O entrevistador, Brit Hume, perguntou-lhe então: ‘O sr. vem fazendo isso desde o primeiro dia de mandato ou é uma prática que o sr. …’

‘Faço isso desde o primeiro dia’ – interrompeu o presidente.

Hume ainda insistiu: ‘Realmente?’

E Bush explicou com maior clareza: ‘Sim. Você sabe, veja, tenho grande respeito pelos meios de comunicação. Nossa sociedade é uma boa, sólida democracia por causa de bons, sólidos meios de comunicação. Mas também compreendo que, numa porção de vezes, há opiniões misturadas com as notícias. Eu (depois de um irrelevante assentimento de Hume) aprecio as opiniões das pessoas, mas estou mais interessado em notícias. A melhor maneira de obter as notícias é obtê-las de fontes objetivas. E as fontes mais objetivas que tenho são as pessoas que trabalham comigo e me dizem o que está acontecendo no mundo.’

Vocês acham que o presidente Bush vai pedir que mostrem na Casa Branca o DVD de ‘Farenheit 9.11’, que deu a Michael Moore a Palma de Ouro do Festival de Cannes? E quem estava mais capacitado para tomar decisões – Eisenhower, que recebia informações de seus assessores mas também lia jornais, ou o atual Presidente, que só confia no seu próprio time?’



ENTREVISTA / MANUEL CASTELLS
Kátia Mello

‘Para Manuel Castells, a política hoje está no espaço da comunicação’, copyright IstoÉ, 2/06/04

‘O sociólogo catalão Manuel Castells é uma sumidade nas análises de novas tecnologias e seu impacto sobre as sociedades. Mas uma particularidade o faz mais interessante: ele analisa a tecnologia sob o foco das questões sociais e políticas. Ativista na juventude contra a ditadura do general Francisco Franco (1939-1975), ele se exilou na França, onde acabou conhecendo em 1963, na Universidade de Sorbonne, o então sociólogo brasileiro Fernando Henrique Cardoso, que se tornou seu amigo desde então. Nesta entrevista a ISTOÉ ele diz que os partidos políticos estão à margem das novas formas de comunicação e expressão. Cita, como exemplo, o caso da recente eleição de Madri, depois dos atentados terroristas, em que os socialistas ganharam surpreendentemente, graças às redes de comunicação dos jovens espanhóis, que denunciaram a manipulação da informação pelo governo conservador. Na política brasileira, que Castells acompanha de perto, ele critica tanto Lula como FHC por não priorizarem o ensino básico. Sobre a guerra do Iraque, o sociólogo diz que ‘os EUA criaram sua própria fábula de que apenas com alta tecnologia se pode conquistar o mundo’.

ISTOÉ – O sr. tem falado do papel cada vez mais fundamental das chamadas ‘comunidades de informação’ nas sociedades modernas. O exemplo mais recente dessa influência foi a virada nas eleições da Espanha – a inesperada vitória dos socialistas sobre os conservadores – em que o papel desses

grupos foi fundamental. Como isso ocorreu?

Manuel Castells – Este é um novo e importante fenômeno. As sociedades em geral desconfiam cada vez mais da política formal e dos políticos. Em todo o mundo, há uma forte crise de legitimidade da política. De vez em quando, existem explosões de entusiasmo, como aconteceu aqui no Brasil com o Lula ou na Argentina com o Kirchner. Mas geralmente, depois de alguns meses de governo, volta o descrédito. Junta-se isso ao fato de que hoje a política está no espaço da comunicação, surgem outras formas de desenvolver redes autônomas de comunicação, como a internet e também os sistemas de mensagens, com os messengers (mensagens instantâneas) e as mensagens dos celulares. Quando as pessoas não encontram a informação buscada, ou a recusam, saem à procura de novas informações entre as próprias comunidades. Em certos momentos, se mobilizam autonomamente utilizando esses canais. Isso pôde ser visto recentemente na Espanha, em dois momentos: entre o atentado de Madri, no dia 11 de março, e as eleições três dias depois, no 14 de março. Muito sinteticamente, foi o seguinte: no dia 11, ocorreu o bárbaro atentado da al-Qaeda. Desde os primeiros momentos, a polícia indicou que o crime fora obra de um grupo terrorista islâmico. Mas o governo de José María Aznar, aliado íntimo de George W. Bush, estava às vésperas das eleições gerais. Aznar decidiu, então, que essa revelação seria muito prejudicial a ele, pelo fato de ter entrado na guerra sem o apoio da população. Então, resolveu ocultar a verdade, mentir. E a mentira veio diretamente de Aznar, que ligou para os diretores dos principais meios de comunicação da Espanha e lhes deu sua palavra que ele teria provas de que o grupo terrorista basco ETA era o autor do atentado. O jornal El País chegou a mudar sua manchete. Como a mídia iria desconfiar que o chefe do governo espanhol estava mentindo? Aznar havia calculado que, depois dos atentados, haveria apenas um dia, a sexta-feira, para circular informações, uma vez que no sábado a propaganda eleitoral estava proibida e domingo já era a votação. Mas, já na manhã de sábado, grupos de jovens, espontaneamente, se conectaram pela internet e começaram a difundir mensagens eletrônicas por seus celulares sobre o atentado. Esse tráfego na internet e nas mensagens de celulares de jovens com menos de 30 anos aumentou em 30% no sábado e em 40% no domingo. E, com essa rede, começou ser criada uma consciência pública, que dava novas informações, rechaçava a versão governamental e ainda convocava manifestações. Havia nessas eleições dois milhões de novos eleitores. Portanto, jovens que geralmente votam em partidos alternativos. Mas, dessa vez, foram eles que disseram ao governo: ‘mentirosos, mentirosos! Nós o tiraremos.’ O principal foi a negação à mentira e à manipulação dos meios de comunicação. Esse movimento permitiu que uma eleição que estava empatada virasse totalmente para uma vitória inesperada dos socialistas.

ISTOÉ – E isso apontaria para uma nova alternativa para a esquerda?

Castells – Eu creio que a sociedade se mobiliza cada vez mais autonomamente, à margem dos partidos políticos. São formas espontâneas. Embora eu não acredite que isso vá substituir os partidos políticos, a forma tradicional da política não funciona mais. O espaço público é o espaço da comunicação. Toda a política passa pelo espaço público da comunicação. A influência política organizada hoje passa por esse movimento autônomo de expressão. A legitimidade política tradicional é muito frágil. Se as pessoas votam em um líder, na esperança de que ele traga mudanças, existe uma relação muito direta da população com esse líder. Quando elegeram o Lula, por um lado havia uma grande esperança no Brasil e no mundo. E nós, progressistas, tínhamos uma obrigação quase moral de apoiá-lo, porque era a esperança deste povo, independentemente de suas alianças políticas. Mas, precisamente porque há enormes expectativas, e esta é a realidade da política atual, as pessoas se dão conta de que suas promessas não podem ser cumpridas. As redes de comunicação comandaram a reação contra a postura do governo nos atentados de Madri

ISTOÉ – E, por falar em Lula, qual é a sua opinião sobre seu governo?

Castells – Acredito que, na esfera econômica, Lula esteja fazendo um bom governo, com a continuidade do que já se fazia no governo FHC. Do ponto de vista macroeconômico, está sendo até mais rigoroso que o governo anterior. Mas exageram em manter uma taxa de 16% de juros. Segue a política do Fundo Monetário Internacional e, em consequência, não sobram muitos recursos para desenvolver uma política social. Para fazer reformas é preciso de dinheiro. Então, os problemas sociais persistem. Mas há determinações que são surpreendentes, como, por exemplo, o relançamento do programa nuclear da Marinha brasileira. Quem no Brasil precisa de um submarino nuclear? E mais, se o Brasil produz um submarino nuclear, os vizinhos como Chile, Argentina também vão querer fazer o mesmo. Não tem nada a ver uma corrida armamentista na América Latina. Além disso, representa um gasto de enormes proporções. Outras políticas de Lula cometem os mesmos erros de FHC. A educação, por exemplo, deveria priorizar, antes de tudo, a melhoria das condições do professor. Tudo bem escolarizar o nível máximo da educação, como fez Fernando Henrique. Mas, se não houver uma boa formação de professores no nível primário, o País não estará pensando na formação dos alunos. E, obviamente, para melhorar a formação dos professores, é preciso dar-lhes um melhor salário. Na política de educação, acredito que o governo continua dando prioridade aos aspectos quantitativos, em vez de dar prioridade aos aspectos qualitativos.

ISTOÉ – Como o sr. analisa a forma como os EUA estão enfrentando o terrorismo?

Castells – Totalmente equivocada. Tanto os atentados de 11 de setembro como de 11 de março, na Espanha, são extremamente simples. O de Madri foi um pouco mais sofisticado por ter sido coordenado por celulares. A idéia de utilizar um avião como um míssil estava nos filmes de ficção e é simples. Mas o trabalho contra o terrorismo, esse, sim, é fundamental e complexo. Uma guerra que não pode ser substituída. E nesse combate contra o terrorismo, algumas considerações devem ser feitas. Além da parte política e social e da cooperação internacional, o fundamental é a informação através da infiltração. Assim faz Israel com seu serviço secreto, o Mossad. Israel tem agentes infiltrados no Hamas, do Hezbolá. É com inteligência que se combate o terrorismo. Prender um punhado de terroristas não adianta, porque imediatamente eles são substituídos. Sou totalmente crítico em relação à ocupação de Israel nos territórios palestinos. O Hamas foi criado por Israel para combater Yasser Arafat, assim como Saddam Hussein é cria dos americanos, aliás do próprio Donald Rumsfeld. E o pior pode ainda vir com atentados com armas biológicas, que são muito mais fáceis e produzem a desgraça em larga escala.’



VENEZUELA
Emir Sader

‘Notícias sobre a Venezuela real’, copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 26/05/04

‘O monopólio da mídia na Venezuela dá a pauta sobre o país. Só se fala da consulta solicitada pela oposição e não se comenta nada sobre os avanços sociais trazidos pelo governo de Hugo Chávez.

Para isso serve o monopólio – nacional e internacional – da mídia: para dar a pauta sobre um país e ocupar todos os espaços com os temas decididos por ela. Assim acontece com a Venezuela. Só se fala da consulta solicitada pela oposição, uma questão que deve se resolver até o fim de maio. Os opositores devem confirmar pelo menos 800 mil das mais de um milhão de assinaturas contestadas, em um procedimento democrático convocado pelo Tribunal Supremo de Justiça. Mas a oposição queria, ao contrário, um procedimento absurdo: deveriam se apresentar novamente apenas os que não confirmassem sua assinatura – assim, os ‘mortos’, que certamente não se apresentariam, teriam confirmadas sua assinatura.

Mas a Venezuela não se reduz a isso. E são seus movimentos que podem representar o desenlace favorável ao governo nessa crise política suscitada pela oposição e multiplicada pela mídia monopólica.

Dia 1º de agosto haverá eleições estaduais e municipais. A oposição havia ameaçado não participar, mas acabou inscrevendo seus candidatos no último momento, na expectativa de que fosse aprovada a consulta ou, caso esta não se desse, teria uma forma alternativa de ação. Existem mais de 10 mil candidatos, incluídos os cargos de 23 governadores. Nesse clima, a petição da oposição vai se diluindo e minguando.

Enquanto isso, a economia se recupera de forma acelerada, apoiada no aumento do preço do petróleo, depois de quase onze trimestres de índices negativos. Os investimentos estatais, que privilegiam as pequenas e médias empresas, são a alavanca dessa recuperação. Neste ano, a empresa estatal do petróleo PDVSA investirá cinco bilhões de dólares.

Mas no começo de 2003, o PIB havia diminuído 27,6%, a inflação era de 38,7%, o desemprego, de 20,7%, e as reservas internacionais tinham diminuído para menos de 14 bilhões de dólares. A reativação começou no quarto trimestre de 2003, e em 2004 o crescimento do PIB será de pelo menos 6%, com a inflação baixando para 21,9% e as reservas internacionais superando os 20 bilhões de dólares. O desemprego continua sendo o principal problema do país, ainda em 15%, mas com um subemprego de quase um terço da população.

As mudanças estruturais estão se dando no nível educacional e de saúde, segundo o ministro de Planejamento e Desenvolvimento, Jorge Giordani. Ele diz que hoje a Venezuela, um país de 17 milhões de pessoas maiores de 15 anos, tem 9 milhões de estudantes. ‘Este é um país que está estudando!’, defende ele. E anuncia: ‘No próximo dia 5 de julho teremos terminado praticamente com o analfabetismo. Em um ano alfabetizamos um milhão, duzentas e cinqüenta pessoas, graças aos métodos de alfabetização maciça dos cubanos, que também nos ajudaram a levar a atenção de saúde aos bairros.’ Tudo isso é sentido pelas pessoas, estendendo o apoio da população ao governo.

Mas o governo de Hugo Chávez não se restringe a usar o aumento dos preços do petróleo para ampliar suas políticas sociais. A Venezuela também ajuda a países do cone sul latino-americano. Assinou um convênio com a Argentina para fornecer 700 mil metros cúbicos de fuel oil e 250 mil de gás oil, em troca de sementes, carne congelada, gado e outros produtos argentinos. O presidente da PDVSA, Ali Rodrigues viajou a Montevidéu e afirmou, em reunião com representantes dos países do Mercosul, sua disposição de fornecer petróleo aos países da região em condições preferenciais. As condições serão as mesmas que o México e a Venezuela vendem petróleo aos países da América Central e do Caribe. Emir Sader, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), é coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de ‘A vingança da História’



Gilberto Maringoni

‘Quem ataca a democracia venezuelana’, copyright Diário Vermelho (www.vermelho.com.br), 26/05/04

‘O artigo abaixo, do cartunista e escritor Gilberto Maringoni, contestando outro artigo do ‘falcão’ norte-americano Roger Noriega contra o governo de Hugo Chavez foi recusado pelo jornal Folha de S. Paulo sob a alegação de ‘disponibilidade limitada de espaço’. Em resposta, o autor escreveu ao jornal: ‘É pena ver que a Folha de S. Paulo acaba – involuntariamente ou não – se somando ao cerco midiático que vitima o país caribenho. Melhor seria tirar do título da página ‘Tendências e debates’ a palavra ‘debate’.

Por Gilberto Maringoni*

Esta página 3 da Folha de S. Paulo abrigou, há poucos dias, um artigo intitulado ‘Preservando a democracia na Venezuela’, de autoria do sr. Roger Noriega, ‘secretário-adjunto de Estado dos EUA para assuntos do hemisfério ocidental’. O texto saiu simultaneamente em vários jornais do mundo. Noriega é mais do que diz seu rodapé biográfico: é um dos falcões do governo Bush, identificado plenamente com a diplomacia dos canhões vigente na Casa Branca.

Após a divulgação das ações norte-americanas nas prisões iraquianas, nos cárceres de Guantánamo e no Afeganistão, é no mínimo exótico que alguém tão comprometido com essas orientações atreva-se a dar lições de democracia a quem quer que seja.

Mas ainda assim, vale a pena examinarmos objetivamente o que se passa na Venezuela. Sua constituição, aprovada no atual governo, é a única do continente americano a conter um dispositivo, em seu artigo 72, definindo que ‘Todos os cargos e magistraturas de eleição popular são revogáveis. Transcorrida a metade do período para o qual foi eleito o funcionário ou funcionária, um número não menor que 20% dos eleitores e eleitoras inscritos (…) poderá solicitar a convocação de um referendo para revogar seu mandato’. Pouquíssimos mandatários no mundo se submeteriam a uma consulta dessas. Especialmente George W. Bush, cujo governo, de acordo com as pesquisas, é reprovado por 59% dos norte-americanos!

O que existe de fato em relação aos dados do referendo? Segundo o Conselho Nacional Eleitoral, um total de 3.086.013 eleitores assinou o pedido para a realização do referendo, em dezembro de 2003. O número ultrapassaria os 20% do eleitorado (2.452.179), não fossem por pequenos ‘detalhes’ constatados após meses de exame. Desse montante, 377.503 foram invalidadas por corresponderem a pessoas não inscritas na justiça eleitoral, menores de idade, estrangeiros, falecidos, e serem incongruentes com os próprios dados preenchidos. Além dessas, 876.017 firmas foram preenchidas por caligrafias que se repetiam em várias planilhas. Fazendo as contas, verifica-se são válidas 1.832.493 assinaturas.

O que fez o CNE? Desautorizou o referendo? Ao contrário. Em medida de extremo zelo e cuidado, reconvocou o processo de consultas, para que as dúvidas sejam tiradas a limpo. Atitude que a justiça eleitoral dos EUA esquivou-se de tomar após os duvidosos resultados das eleições presidenciais de 2000, nas quais saiu vitorioso George W. Bush. Isso, apesar do atual presidente ter comprovadamente recebido menos votos do que seu oponente, Al Gore.

Mesmo assim, além de pretender dar lições de democracia, os membros do atual governo norte-americano admitem publicamente financiar a oposição venezuelana. O porta-voz do Departamento de Estado, Adam Ereli, admitiu, no último 8 de abril, sustentar financeiramente partidos e organizações que se opõem a governo Chávez, sob o argumento de ‘apoiar’ a democracia. ‘Dizemos abertamente e estamos orgulhosos disso’, declarou ele ao jornal El Universal, de Caracas.

A propalada crise venezuelana não foi criada por Hugo Chávez, mas é muito anterior a ele. O presidente representa a resposta dada pela sociedade venezuelana a pelo menos duas décadas de derrocada econômica, social e política que acometeram o país, após a queda acentuada dos preços do petróleo e da crise da dívida latino-americana, no início da década de 1980. Até então, a Venezuela, sustentada nos altos ingressos provenientes das exportações petroleiras, configurava-se como uma das mais perfeitas democracias de fachada em todo o mundo. Por trás desse panorama, existiam as cláusulas de um pacto de governabilidade, firmado em 1958 entre dois partidos que se revezavam no poder, excluindo a participação dos setores populares da disputa institucional.

Enquanto os petrodólares garantiram o funcionamento do sistema – que relegava 80% da população na pobreza e na miséria – tudo aparentemente corria às mil maravilhas. A partir de 1983, um incessante turbilhão de crises tragou a economia, o sistema partidário, a institucionalidade jurídica e uma convivência tida como tolerante entre as diversas classes sociais.

O que pretende Chávez? Se for possível resumir em uma frase, pode-se dizer que busca tornar o petróleo um bem público de fato, cuja renda seja revertida em fortalecimento do Estado, melhoria dos serviços públicos e do padrão de vida da maioria da população. Chávez não privatizou nada, dobrou o orçamento das áreas sociais e coloca-se abertamente contra a Alca. Por isso sofreu duas tentativas de golpe de Estado, é atacado impiedosamente pelos monopólios da mídia e conta com a antipatia de gente como Roger Noriega, que possui um conceito bem particular da palavra ‘democracia’.

*Jornalista, autor de A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez (Editora Fundação Perseu Abramo) e foi observador, a convite do CNE, no processo do referendo revogatório, na Venezuela, em dezembro de 2003.’