Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Moacir Japiassu

‘O leitor Luiz Astorga, do Rio de Janeiro, costuma amarrar O Globo num botijão de gás, para que não fuja à revista diária, e na manhã de ontem (7/7) foi surpreendido com este título de medonho corpo que lhe feriu as retinas:

VEREADOR DO RIO É MORTO COM UM TIRO NO CAJU

O alvejado Astorga quedou-se perplexo, porém recuperou-se a tempo de fazer o seguinte comentário:

‘São impressionantes essas gírias que aparecem para certas partes do corpo. Não basta o pobre do vereador ter sido assassinado; o tiro foi bem no meio do caju!’

O tal caju também é chamado de pulmão, lembra o leitor, para alívio de Janistraquis, cujo suspiro teve o frêmito do esvoaçar de pombas na Rocinha de antigamente: ‘Ainda bem, considerado, ainda bem; todavia, ainda acho mais digno alguém morrer de tiro no pulmão do que de tiro no caju…’.

Eu também!

Fora do penico

O mestre Roldão Simas Filho, Diretor de nossa sucursal no Planalto, de cuja área de serviço avistam-se os aparelhos sanitários do Ministério da Agricultura, onde a funcionária Fabíula, etc., etc., Roldão leu na Revista D do Correio Braziliense notícia sobre os banheiros para travestis em escola tailandesa. O texto informava: ‘O banheiro tem quatro reservados mas não tem urinóis.’

O viajado Roldão garante: ‘A notícia deve ter vindo de Portugal, onde chamam os mictórios de urinóis. No Brasil, urinol é o penico.’

O velho e bom penico! A notinha do nosso Diretor fez Janistraquis recordar: ‘Considerado, aqui no Brasil houve um tempo em que o sujeito fazia xixi fora do penico e entrava pelo cano!’

É mesmo. Se não me engano, foi no tempo do Vidigal, tão bem retratado em Memórias de um Sargento de Milícias, indispensável romance de Manuel Antônio de Almeida.

Que fez o homem?

Deu na coluna do Cláudio Humberto:

Troca-troca – Ex-chefe do cerimonial de FhC, Valter Pecly troca a missão brasileira na OEA, em Washington, pela chefia da embaixada em Assunção. O atual embaixador, Luiz Augusto de Castro Neves, vai para Beijing, na China.

Janistraquis ficou desolado: ‘Considerado, o embaixador na OEA não era ‘representante permanente’? Que terá feito o Pecly Moreira, então, além de ser amigo de Fernando Henrique, pra merecer um destino desse? É homem bom, pai de família; por que não mandam Itamar pro Paraguai? Afinal, é solteiro!’

Grampeador desta coluna no Planalto garante que o nome do divorciado Itamar ‘foi ventilado’, todavia alguém lembrou que o Paraguai fica muito perto.

É muito senador…

Vizinho do nosso mestre Roldão Simas Filho, o leitor Valdir Suzin não disse ainda o que dá para ver da janela de sua casa em Brasília, mas já estamos sabendo que ele tem olhos e ouvidos escancarados, como deixa claro nesta mensagem:

‘O NBr Noite, da estatal Radiobrás, esbanja falhas e nunca corrige o erro, por mais gritante que seja. Entre as pérolas mais recentes está a matéria sobre a liberação de verbas do Ministério da Defesa para a infra-estrutura em São Gabriel da Cachoeira(AM). A repórter informou que os recursos seriam aplicados, entre outros serviços, na implantação da ‘rede de lixo’.

Na mesma edição foi anunciada a rejeição do Senado ao projeto que manteria cerca de 5 mil vagas de vereadores das mais de 8 mil que foram eliminadas pelo TSE. A repórter repetiu três vezes seguidas que haviam sido cortadas mais de 5 mil vagas de ‘senadores’. Até o final da edição foi mantida a ‘informação’: o Brasil perdeu mais de 5 mil senadores.’

Janistraquis achou a notícia muito, digamos, estimulante, ó Valdir, porém o Brasil não precisa perder mais de cinco mil senadores; basta perder 81 que tá bom demais…

Ah, essa cultura!

O considerado Celsinho Neto, Diretor de nossa sucursal em Fortaleza, relia o ‘geográfico’ O Povo de 24 de junho e verificou, perplexo, que o jornal havia redesenhado o mapa-múndi:

‘Só volto para Fortaleza nas férias. Meu futuro agora, se Deus quiser, será no México’. Foi com esta explicação que o jogador Clodoaldo revelou que não pretende mais voltar tão cedo ao Ceará. Ele anunciou também que irá participar de jogos amistosos no país da América Central a partir do dia 1º de julho, mostrando esperança de encontrar uma chance num clube da América Central.’

Celsinho pulou da rede armada na Praça do Ferreira:

‘México na América Central?!?!? Desse jeito não é apenas o jogador que não voltará tão cedo ao Ceará, mas o redator vai ter, no mínimo, dificuldade para encontrar o caminho de casa… ou, nesse mês junino, pode acabar pegando o caminho da roça…’

P.S. – O México, esse que disputa a Copa América e ontem empatou com o Uruguai, fica, sim, na América Central, pelo menos na opinião do comentarista do Sportv.

Pisciana enfurecida

Leitora que se assina Cláudia Berlândia ou Cleo-Pátria, dependendo de como se comportam os astros, escreve para protestar contra o horóscopo da Folha On Line:

‘É de acabar de vez com o dia de qualquer um! Vocês não imaginam como é depressivo o horóscopo do jornal; acho que tem alguma coisa contra os do signo de peixes, como eu (…). Tudo bem que horóscopo é uma besteira, uma inutilidade, mas fica até feio um jornal daquele porte publicar algo assim. Reclamo ao Jornal da ImprenÇa porque o ombudsman da Folha, Marcelo Beraba, bloqueou o meu e-mail de tanto que eu reclamava da falta de democracia na FSP. Confira o ‘estilo’:

Peixes – Instabilidade emocional, focalização demasiada em seus próprios problemas, vontade de mudar tudo em si mesmo, descontentamento: todas essas inclinações podem ser bem canalizadas se você se dispuser a dar o primeiro passo objetivo e realista na direção da mudança de qualidade. Seja mais atento as demandas do seu parceiro ou da família!

Agora, dêem uma olhadinha na chamada compatibilidade: Peixes combina com…’

O canceriano Janistraquis leu, envia-lhe abraço solidário, ó pisciana desapontada, e avisa: quando o horóscopo nunca está pra peixes, manda a prudência que se procure a verdade na tiromancia sertaneja.

Nota dez

O mais comovente texto da semana é a oração do jornalista e escritor pernambucano Urariano Mota, na qual ele denuncia o descaso com que a Nação trata um de seus gênios musicais, o violonista Canhoto da Paraíba. O texto completo da oração está no site La Insignia.

‘(…)Esta prece poderia ser tão-só e somente um insulto à dignidade de Francisco Soares de Araújo, se Canhoto da Paraíba não se encontrasse no estado e no ânimo em que se encontra. Sabei, erguida e nobre Senhora dos sonhos dos desesperados, sabei que Canhoto se acha numa cadeira de rodas, com a voz falha, e todo lado esquerdo do corpo, e toda a mão esquerda, cruel e certeira maldição, paralisada. (É assim que a Providência castiga os bons da alma? Se um homem canta pela mão esquerda, será ela a ferida? Se um artista se expande pela voz, será na garganta o seu câncer?) Sabei, Senhora, que Canhoto mal falando, a tropeçar nas sílabas, como uma grande criança que cresceu para ser coroada por uma cadeira de rodas, sabei, Senhora, que Canhoto ainda assim sorri. Com quase o mesmo sorriso com que o vi um dia, à luz do dia, ao meio-dia na Avenida Guararapes (…) ‘

Errei, sim!

‘CIRCO NA LONA – Titulinho intrigante do Diário Popular, de São Paulo: Circo Garcia dá à luz um chimpanzé. Apalermado, Janistraquis comentou: ‘Considerado, desde que a montanha pariu um rato, nunca houve parto tão inusitado, pra não dizer estrambótico!’. Concordo. O que não se faz debaixo de uma lona de circo…’ (agosto de 1993)’



LIBERDADE & MÍDIA
Fernando Orotavo Neto

‘Liberdade, apenas uma palavra?’, copyright Jornal do Brasil, 12/7/04

‘Poucas palavras evocam tanta emoção nos homens como liberdade. Poucos, entretanto, conhecem o seu verdadeiro significado e os seus tortuosos limites. Por isso, não raramente, quando uma notícia envolvendo o tema bate à porta, com ela surgem opiniões acaloradas, a mais das vezes irrefletidas e precipitadas.

Intimamente associado à estória de Alexandre III, dito Magno ou Grande (que o cortou com a sua espada), mas também à lenda mitológica do Rei Midas (que transformava em ouro tudo o que tocava), nenhum símbolo retrata melhor a experiência da ‘precipitação’ e da ‘irreflexão’ do que o nó górdio.

A alusão que, agora, se faz a ele, longe de pretender constituir um preâmbulo, é mera advertência, senão indispensável, extremamente útil: todas as vezes em que se pretender, irrefletida e precipitadamente, outorgar a uma palavra ou locução ressonância emotiva, escrevendo-a, com letras maiúsculas, para mostrar o respeito reverencial que todos, sem exceção, devem ter por ela, é preciso ficar alerta para não se chegar a um sofisma.

Tomemos como exemplo duas recentes notícias jornalísticas – a sentença que condenou um famoso grupo humorístico a indenizar um cidadão tachado por seus integrantes de pilantra e ladrão e a decisão singular de um ministro do STF que concedeu habeas-corpus aos réus envolvidos no que se convencionou chamar de ‘escândalo do propinoduto’ – para demonstrar como a opinião pública vem se manifestando de modo divergente sobre o tema liberdade, em suas mais variadas formas (liberdade de expressão e de manifestação do pensamento, liberdade física): no primeiro caso, a vox populi se levanta em defesa da liberdade de expressão; já no segundo, apregoa a mais absoluta restrição à liberdade física dos acusados.

Para desatar esse nó górdio não será necessário utilizar a espada de Alexandre, contudo será inevitável acentuar e contrapor certos valores, evitando-se, assim, que todos sejam vítimas daquela espécie de unilateralidade que impede não só a discussão como a reflexão, por intermédio das seguintes perguntas: por que a manifestação do pensamento e a expressão da atividade artística são livres, estes direitos não encontram limites ou freios? Por que uma pessoa é acusada de cometer um crime, ela deve, desde logo, submeter-se à sanção correspondente, destinada àqueles que são julgados culpados?

Qualquer criança de colo, dona daquela espécie de saber ‘só de ouvir dizer’, tem, desde tenra idade, a mais perfeita noção de que ‘a liberdade de um acaba quando começa a do outro’, para repetir colorida e significativa expressão popular. Este conceito, quase intuitivo, parece não ter sido perdido de vista desde que Montesquieu, há 250 anos, proclamou que ‘a liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem’.

A beleza e a simplicidade dessa definição – que nos foi legada pelo homem que deixou sua confortável posição na magistratura francesa do século XVIII para ensinar as gerações seguintes como evitar a concentração de poderes, como dividi-lo, para que haja lei, lei de verdade, lei ajustada ao espírito das leis, ao espírito nacional – deixam bem claro esta verdade inelutável: ‘Se um cidadão pudesse fazer tudo aquilo que as leis proíbem, ele já não teria liberdade, pois os outros teriam igualmente esse poder’.

Percebendo, como Montesquieu, que o direito à liberdade, em todas as suas formas (liberdade física, liberdade de expressão), depende para a sua formação da integração do binômio ‘fazer o que a lei permite-não fazer o que a lei proíbe’, é que Lacordaire ensinou que ‘entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, entre o patrão e o empregado, é a liberdade que oprime e a lei que liberta’.

Eureka! – teria dito Archimedes, acaso até aqui tivesse acompanhado o raciocínio deste articulista de ocasião -, a liberdade encontra os seus limites na própria lei. Quisera o romântico que ela não os encontrasse, pois nada há de mais romântico do que tudo se permitir em nome do amor. Todavia, até mesmo o último dos românticos concordaria comigo quando afirmo que não é permitido matar por amor. Quem diria… a própria virtude precisa de limites – in medio virtus (a virtude está no meio). A liberdade, ou a restrição da liberdade, também precisa de limites. A experiência eterna dos povos e das civilizações, desde os seus primórdios, mostra, claramente, que todo homem que detém um poder ilimitado é levado a abusar dele, até encontrar os limites. Para que o abuso não se verifique é preciso que o poder freie o poder, e que até mesmo os direitos mais sagrados (à liberdade), as mais puras virtudes (o amor), sejam exercitados na medida certa.

Portanto, é com a total subversão do conceito de liberdade – ora abusando da palavra liberdade, ora se servindo dela, de forma apenas aparente, para conceber um ideal de justiça que se deva venerar mais do que todos, como se determinada concepção de justiça fosse a única boa, a única que corresponde ao ideal de justiça perseguido pelo coração dos homens, sendo todas as outras apenas embustes – que a opinião pública, assumidamente leiga, tenta justificar e coonestar a atitude de pessoas que, se arvorando em lídimos censores da sociedade, chamam um cidadão de pilantra ou ladrão (a bem do riso) ou, ainda, a necessidade de se manter na prisão, ‘escola do crime’, cidadãos que não foram definitivamente julgados culpados.

A Constituição, a lei das leis, prevê que só existe liberdade de expressão e de manifestação do pensamento até onde não haja violação à honra e à imagem das pessoas, ou seja, até onde não se faça o que ela proíbe. Essa mesma Constituição prevê que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Em todos esses casos, a partir daí, o que há é abuso de poder. Cesse tudo o que a musa antiga canta que um valor mais alto se alevanta!

Não, mil vezes não! Não caiamos nessa tosca arapuca, porque numa manhã você, caro leitor, pode acordar sendo chamado de pilantra e ladrão e ainda ser obrigado a ter que rir disso, achar engraçado. Você pode, igualmente, acordar preso, continuar preso por um longo período, antes mesmo de a Justiça do seu Brasil considerá-lo terminantemente culpado. E tenha certeza: uma hora na prisão, é uma hora irrestituível da sua vida.

O verdadeiro significado da palavra liberdade não reside em adequá-la às nossas conveniências morais e políticas, mas sim em cumprir, fazer cumprir e exigir o cumprimento da nossa Constituição, porque à margem dela só existem o arbítrio e a obscuridade. O nosso país não precisa de justiceiros amadores, mas de juízes competentes, que conheçam os limites da liberdade e que tenham um mínimo de apreço por ela, em suas mais variadas formas, como é o caso do ministro Marco Aurélio Mello. Como dizia Martin Luther King, ‘a injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar’. Lembrem-se disso e que Deus nos abençoe.’



JORNALISMO CULTURAL
Ana Maria Bahiana

‘Perpétua transformação’, copyright Comunique-se, 7/7/04

‘Semana preguiçosa. Todos os luminares se foram ou estão a caminho de Paraty, deixando-nos, pobres mortais, se não na escuridão, pelo menos na penumbra.

Talvez para quebrar o clima, Chorão, vocalista do Charlie Brown Jr. saiu aos tapas , ou melhor, às cabeçadas, com Marcelo Camelo dos Hermanos, teoricamente porque o segundo criticou a participação do primeiro numa campanha publicitária. O affair Zeca Pagodinho de novo, em clima de ação! Num avião! É praticamente o Air Force One do pop brasileiro!

Em semana modorrenta, isso passa por pauta cultural, presumo. Briga de roqueiro era interessante quando tudo era novo e romântico, e os muros em volta tão espessos e irremovíveis que qualquer quebra-quebra de equipamento tirava uma lasquinha de algo muito maior. Mas agora? Todos os gigantes, em cujas pegadas, inevitavelmente, todo o resto caminha, podem ser ouvidos vendendo carros, software, refrigerante. Como se não bastasse ‘Who Are You’ na abertura da (ótima, aliás) série de TV CSI, ‘Won’t Get Fooled Again’, um dos momentos definidores da fúria rock em seu estado puro, serve de tema para sua parceira CSI:Miami. E estão muito bem usadas. Inteiramente fora do contexto inicial, mas muito bem usadas, e as séries ficam mais bacanas por causa delas.

Quem iria descer a mamona em Pete Townshend? Os meninos do White Stripes? Eles estão muito ocupados marcando almoços com os agentes que vão colocar suas músicas nos próximos filmes, comerciais e, com sorte, desenhos animados da DreamWorks. (Mas os White Stripes se embolando com Townshend num jato sobre o Atlântico certamente seria cena diga de registro).

Assim caminha a humanidade – e o rock ‘n roll. E é a perpétua transformação que nos faz todos mais ricos, se soubermos a ela nos entregar.

‘As notícias de hoje são os filmes de amanhã’. Assim escreveu Arthur Lee, um dos gênios perdidos do pop, nos mui distantes idos de 1967. A frase é um verso de ‘A House is not a Motel’, faixa do álbum Forever Changes (muito a propósito, Perpétua Transformação) da banda Love, posta no ar, juntamente com um verdadeiro tesouro de gemas rock ‘n roll, como parte do especial Highway 61 to Zuma, com o qual a rádio KCRW, de Los Angeles, celebrou o fim de semana do 4 de julho, independência norte-americana. A idéia, da DJ Tricia Halloran foi simples e brilhante: três horas contendo apenas música gravada e lançada entre 1965 e 1975, a década em que, diz Tricia, ‘ a música mudou’.

Uma pausa: e como anda o rádio brasileiro, hein? Para quem quiser se inspirar, o especial ainda pode ser ouvido aqui.

Que filmes veremos amanhã? Notícias de ontem continuam enchendo os cinemas dos Estados Unidos. Apesar da gritaria da direita, apesar da concorrência do Homem Aranha e de um ridículo documentário chapa branca produzido às pressas pela Disney, America’s Heart and Soul, apesar do boicote de algumas cadeias de cinema dos bolsões conservadores, Fahrenheit 9-11, de Michael Moore, continua vendendo ingresso e pipoca como se fosse um arrasa quarteirão cheio de espetaculares mortes falsas, e não um documentário sobre horríveis mortes verdadeiras. Foram 21 milhões de dólares apurados no feriadão, e a marca de ouro dos 100 milhões de dólares – até agora impensável para um documentário – está a apenas alguns dias de distância.

Que me perdoe o momento pit boy de nossos popstars, mas este ainda é o fato cultural mais importante de uma semana preguiçosa. Porque tudo se transforma, perpetuamente.’



REVISTAS DE CELEBRIDADES
Ignácio de Loyola Brandão

‘O amor em tempos velozes’, copyright O Estado de S. Paulo, 9/7/04

‘Passei pela banca, meus olhos foram atraídos para a capa de uma dessas revistas que se ocupam de celebridades. Lá estava o casal, ela uma apresentadora de televisão, ele um jogador de futebol, um desses ídolos do Maracanã. Ambos bonitos, modernos, sorridentes, com a expressão de quem flutua no limbo que a fama confere. A chamada de capa anunciava que o casal, feliz, estava comemorando cem dias de namoro.

Continuei meu caminho, apesar da tentação de ver o que a reportagem continha, mas as revistas de hoje chegam às bancas ‘shinkradas’, isto é, envoltas em um plástico que nos impede de folheá-las, hábito antigo que nos levava, eventualmente, a comprar um publicação. Por alguma razão ignota, esse costume terminou, você agora tem de arriscar. Prossegui a caminhada um tanto curioso. Cem dias de namoro, de felicidade, garantia a chamada. A revista chamava atenção para o fato, como se cem dias de namoro representassem algo insólito, um grande feito a ser registrado, um exemplo para as novas gerações. Ou é um exemplo em tempos de amores fugazes? Cem dias representam que tipo de união? Porque para cada ano de ligação (seja casamento, concubinato, etc.) existe uma denominação: bodas de papel, de prata, de ouro, de diamantes e outras mais. Porém, nada encontrei relativo a cem dias.

Duas semanas antes eu tinha estado nas bodas de ouro de meus sogros, Marize e Nelson. Foram 50 anos juntos e ali estavam, além da família, muitos amigos que tinham assistido ao casamento, um fato raro. Aliás, dois. Bodas de ouro e aqueles que testemunharam a união desde o início. Cinqüenta anos significam 18.250 dias em que duas pessoas conversaram, riram, choraram, brigaram, se detestaram, ficaram doentes e se curaram, conheceram as manias e idiossincrasias um do outro, as virtudes e defeitos, se ajustaram, fizeram concessões, romperam e retomaram, viram filhos nascer, netos chegarem, filhos dos amigos, netos deles, viram a cidade mudar, o Brasil se transformar, o mundo se alterar, cantaram juntos, viajaram, viram filmes e shows, teatro, discutiram, votaram para presidentes – menos durante a ditadura -, fizeram projetos de vida, sonharam. Realizaram alguns planos, viram outros frustrados. Porque as pessoas se ligam, se juntam, se casam, se amasiam, para fazerem projetos, construírem uma vida.

Segui pensando nessas coisas e aquilo não me saía da cabeça. Cem dias de felicidade. Parecia para a revista um grande feito, um fato memorável, um exemplo, eternidade. De repente, me dei conta de que cem dias não passam de poucas semanas, alguns meses, uma fase em que ainda se está conhecendo, um buscando ao outro, um querendo o outro, tentando descobrir como agradar, como não desagradar, querendo penetrar no íntimo, um se ajustando ao outro.

De repente, estremeci. Será que cem dias são uma vivência a se celebrar, se homenagear? Será que as ligações hoje em dia estão cada vez mais velozes, rápidas, correndo na velocidade da Fórmula 1, da luz ou do som, que cem dias merecem uma celebração? Não! Nada a ver com aquela felicidade que o casal demonstrava sinceramente nas fotos. O fato é que me assombro, mas talvez eu seja anacrônico, antiquado, passado, meus conceitos superados. Cem dias. Mas é tão pouco, quase nada. Houve tempo em que cem dias era o que se demorava para olhar, assuntar, tentar se aproximar, buscar formas de seduzir, conquistar, inventar atrações, armadilhas. Teve época em que cem dias significavam os primeiros passos, os primeiros movimentos. Era uma coisa que demorava, trazia ansiedade, esperança, dor no estômago, frio na barriga, deixava a cabeça rodando, o peito ardendo, o pensamento fixado, a pessoa se tornava obsessão. Sei, mudaram os tempos. Tanto que não há mais tempo a perder. Vapt-vupt. O conceito de tempo modificou, a hora de 60 minutos parece ter um. O dia de 24 horas parece ter duas. A semana de sete dias tem uma horas, os 12 meses se passam em poucos dias. Subir a um prédio era sofrer vertigem das alturas, mas hoje se vai à Lua e a Marte, são milhões de quilômetros. A noção de tempo e espaço se diluiu. Vivemos tempos de chegar com pressa, conseguir todas as coisas em curto espaço de tempo, porque não sabemos quanto tempo ainda temos. Houve época em que cem dias era um pequeno prazo, hoje cem dias é uma vitória, raridade a ser comemorada. Por favor, me entendam: aqueles dois podem celebrar com euforia os cem dias de namoro. Mas devem saber que em uma história de amor, cem dias não são nada. São apenas o breve momento para se começar. Ou estou enganado, desligado da modernidade, desatualizado, um romântico sonhador que deve ser banido do planeta Terra?’