Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Nelson Ascher

‘Durante a recente convenção do Partido Democrata, que o nomeou seu candidato à eleição presidencial americana de novembro, o senador John Kerry declarou, em tons ensaiadamente marciais, que estava se apresentando para o serviço militar. Ele havia de fato, 36 anos atrás, combatido alguns meses no Vietnã, de onde, com ferimentos superficiais e condecorado, regressou para assumir um lugar de destaque nos protestos contra a guerra. No ponto alto destes e assumindo sua parcela de culpa, ele acusou em público as tropas do país de cometerem na Indochina crimes dignos de Gêngis Khan.

Foi o movimento antiguerra que impulsionou sua carreira política, aliás pouco notável, e ele a passou se opondo sistematicamente à aprovação de verbas para novos armamentos e à projeção do poderio bélico nacional no exterior. Kerry jamais repudiou o movimento de que participara e o converteu amiúde no fundamento de sua autoridade moral. Por que é que ele resolveu agora ressuscitar seu breve passado de ‘criminoso de guerra’ confesso?

Simplesmente porque a maioria de seus concidadãos acredita estar em guerra, não apenas no Iraque, mas no mundo inteiro, contra o islamismo radical. Embora muitos democratas discordem, os eleitores indecisos preferem um candidato preparado a defendê-los. Daí a tentativa de enfiar, graças a um mínimo de ação que, além de ter ocorrido há muito, fora repudiada pelo próprio, um político essencialmente pacifista no uniforme de um agressivo ‘falcão’.

As reações não demoraram e duas centenas de veteranos puseram no ar, aqui e ali, anúncios que lançavam dúvidas sobre o Kerry guerreiro. Como as medalhas daquele conflito haviam sido distribuídas generosamente, não lhes foi difícil mostrar que as do senador envolviam bem menos heroísmo do que seria de supor e, ademais, eles denunciaram contradições ou equívocos em suas afirmações sobre, por exemplo, uma improvável incursão cambojana no Natal de 1968. Nada disso foi refutado e, por duas ou três semanas, a grande imprensa e as principais redes de TV americanas ignoraram a história.

No entanto, a internet e as estações de rádio dedicadas a discutir política não permitiram seu silenciamento. Quando o resto da mídia acordou, boa parte da nação já sabia das acusações e os democratas começavam a perder pontos nas pesquisas eleitorais. As emendas posteriores se revelaram piores do que o soneto, pois o que se tentou fazer foi redirecionar a discussão contra os republicanos através da insinuação, tampouco demonstrada, de que era o atual presidente que estava por trás dos veteranos.

A estratégia que consistia em, deixando de lado a guerra atual, abordar outra, concluída há décadas, falhou e a convenção democrata não rendeu pontos suplementares a seu candidato. Quanto à convenção republicana, o que se verificou foi o contrário: o presidente que busca a reeleição emergiu dela com uma vantagem substancial.

O contra-ataque veio na última quarta-feira quando Dan Rather, o âncora do popular programa ‘60 Minutes’, da CBS, revelou memorandos ‘recém-descobertos’ que questionavam o passado militar de Bush. O presidente, que não lutara na Indochina, alistara-se em vez disso na Força Aérea da Guarda Nacional. Os memorandos, assinados por um oficial superior que morreu faz 20 anos, falavam de sua falta de profissionalismo, irresponsabilidade e de pressões exercidas para melhorar sua avaliação.

Clinton, um democrata que escapara do serviço militar, reelegera-se derrotando Bob Dole, um herói mutilado da Segunda Guerra Mundial. Desde então havia um acordo tácito entre os partidos segundo o qual o que acontecera nos dias do Vietnã seria considerado irrelevante para os atuais. Os tempos, porém, mudaram e quem divulgou os memorandos pretendia atingir os republicanos. A CBS inclusive colocou no seu site, em formato PDF, os papéis que recebera.

Estes desencadearam uma tempestade na blogosfera e, cerca de 12 horas depois, apareceram as inconsistências. Não obstante os memorandos terem sido supostamente redigidos entre 72 e 73 numa máquina de escrever, sua aparência é exatamente a de um documento do Microsoft Word.

Logo, peritos profissionais e amadores em datilografia, tipografia e software entraram na refrega opinando que nenhuma máquina de escrever disponível na época era capaz de produzir o mesmo espaçamento entre os caracteres, um idêntico alinhamento vertical, tal ou qual centralização dos títulos etc. Outros interessados, conferindo documentos militares contemporâneos, encontraram mais incoerências. A internet divulgou também o testemunho da viúva e do filho do oficial em questão, ambos desconfiando da autenticidade dos memorandos. Em resumo, tudo no momento aponta para uma falsificação. E malfeita.

Caso esta se comprove, os danos, tanto para a candidatura Kerry quanto para organizações noticiosas como a CBS, são incalculáveis. Seus competidores na mídia liberal, que em geral se atiram como abutres sobre ‘revelações’ assim, optaram pela cautela. O mais importante, contudo, é a rapidez com que o processo se desenrolou. Dispersas pelos EUA, milhares de pessoas que nem sequer se conhecem formaram, em horas, com suas suspeitas e conhecimentos, seu ceticismo e perícia, uma rede capaz de realizar, em tempo recorde e de graça, uma investigação minuciosa que, em circunstâncias diferentes, duraria meses e custaria milhões. Trata-se de um fenômeno absolutamente novo e, seja qual for seu resultado neste caso específico, a relação entre produtores e consumidores de notícias nunca mais voltará a ser como antes.’



Miriam Leitão

‘Mil mortos’, copyright O Globo, 13/09/04

‘O conflito do Iraque era uma guerra de mortos sem rosto até a divulgação do gráfico interativo na edição on-line do ‘The New York Times’ de quinta-feira. Até quarta-feira, eram 994 americanos mortos na guerra. A semana terminou com o país tendo atravessado a barreira psicológica dos mil mortos. Ainda assim, a pesquisa do ‘Washington Post’ feita com prováveis eleitores mostrou que o presidente Bush está seis pontos à frente de John Kerry.

Quando a pergunta é sobre que candidato o eleitor acha que enfrentará melhor o problema do Iraque, a diferença sobe para 53, para Bush, contra 37 para John Kerry. Os acadêmicos divergem sobre os efeitos das notícias sobre mortos em combate na intenção de voto, mas, até agora, George Bush foi poupado do desgaste, porque a censura e a autocensura da imprensa têm limitado a publicação de fotos de caixões ou dos mortos. A cobertura da guerra tem sido menor do que a que se esperava da imprensa americana. No gráfico do ‘NYT’, com o sugestivo título de ‘A look at those who died’ (Um olhar sobre aqueles que morreram), pode-se ver rosto a rosto, nome a nome, bastando pôr o cursor sobre cada um dos 994 quadrinhos. Entre os rapazes e moças mortos, mais da metade tinha entre 18 e 24 anos.

Analistas que acompanham o dia-a-dia da eleição americana acham que ela ainda é um jogo aberto. Cada um dos candidatos armou seu jogo durante a convenção e John Kerry errou mais. As pesquisas feitas logo após as convenções mostraram que George Bush foi mais convincente, na opinião dos eleitores.

Os democratas, nos cinco dias de convenção, apostaram tudo na criação da imagem de comandante-em-chefe de Kerry. O erro foi, segundo analistas, ter subestimado o contra-ataque. Kerry foi um jovem notório. Voltou da Guerra do Vietnã como herói, deu longas entrevistas e foi ao Congresso depor com críticas à guerra e denúncias de excessos no trato com prisioneiros. Era parte da bem-sucedida campanha pacifista dos jovens americanos que cantavam com John Lennon o inesquecível ‘Dê uma chance à paz’. A resposta do então presidente Richard Nixon foi desacreditar o jovem soldado, mobilizando ex-companheiros para ataques diretos a ele. Eles mesmos voltaram agora com anúncios na televisão e um livro em que acusam Kerry de farsante. Oficialmente, o Partido Republicano não assume a campanha, mas é inspirador – se não for também financiador – dos anúncios que foram divulgados intensamente nos Estados Unidos.

Kerry, na convenção, criticou os erros econômicos de Bush, mas não se aprofundou no tema e, deliberadamente, não fez ataques pessoais, com quase nenhuma menção ao nome do presidente. George Bush fez o oposto: atacou diretamente John Kerry em críticas para formar a imagem de alguém que muda de idéia facilmente. Vendeu-se como o único comandante-em-chefe capaz de proteger a nação. Em uma tentativa de aparecer como um veterano que não foi, Bush apareceu nos filmes de campanha com roupa de piloto embarcando num avião de guerra. As notícias mais recentes mostram que ele não apenas fugiu da guerra, como serviu à Guarda Nacional de forma tão relapsa que foi afastado. O atentado de Beslan jogou a favor de Bush e a declaração dele foi que a tragédia mostra os perigos a que a civilização está submetida.

A resposta de Kerry ao ataque aos seus feitos militares foi lenta e fraca, mas, nos últimos dias, ele firmou a estratégia de atacar os problemas econômicos e a falta de propostas para a política interna que Bush demonstrou no seu monotemático discurso. John Kerry fixou-se nos custos da guerra, não apenas na questão fiscal, mas no que Bush está deixando de fazer pela redução da pobreza, pela melhoria da saúde (o ponto fraco na visão dos eleitores demonstrado na pesquisa do ‘Washington Post’) e na elevação da qualidade de vida. É uma boa estratégia, apesar de a economia estar crescendo 4% e o desemprego ter caído para 5,4%. As propostas econômicas do presidente são mesmo pífias: programas sem importância e promessa de mais gastos e nova redução de impostos, em um país que já está com um déficit recorde.

Na área comercial, que nos interessa mais de perto, não há escolha boa. Bush foi protecionista – aprovou uma lei agrícola muito protecionista e aumentou as barreiras ao aço – mas John Kerry está prometendo ser mais. Kerry tem falado muito no conceito do ‘Made in America’ e já disse que não vai mudar a Lei Bird, que foi considerada ilegal pela OMC. A lei permite que o dinheiro dos direitos alfandegários pagos pelos países atingidos pela legislação antidumping seja transferido para a empresa reclamante. Isso incentiva os processos antidumping. Bush disse que aceita o veredicto da OMC; Kerry disse que não. Esse é o quadro, dois meses antes das eleições presidenciais.’



ITÁLIA & EUA
John Hemingway

‘Notícias diárias’, copyright Direto da Redação (www.diretodaredacao.com), 9/09/04

‘Os jornais italianos têm muito a escrever sobre os dias de hoje. Ultimamente, a guerra contra o terrorismo tem lembrado um dos mais fortes aliados de George Bush, exatamente o sentido das guerras. Primeiro, teve o jornalista e tradutor italiano da história em quadrinhos americana ‘Doonesbury’, Enzo Baladoni, que foi sequestrado e morto por seus captores. Baldoni podia ser tudo, menos a favor da guerra e tinha ido lá para ajudar a Cruz Vermelha italiana e escrever sobre as experiências dele no Iraque. Quando foi capturado, seus amigos e muita gente da mídia italiana imaginaram que ele seria libertado logo, porque ele era um italiano e pacifista. Um mercernário da Itália tinha sido atingido nas proximidades de Falluja poucos meses antes, mas Baldoni era diferente e passou sua vida a promover a paz ao redor do mundo. Não se mata um homem que acredita na paz,ou assim eles pensavam.

Na terça-feira, duas mulheres italianas, Simona Torretta e Simona Pari, foram sequestradas no escritório onde trabalhavam numa organização não governamental. Ambas estavam em Bagdá para ajudar crianças. O trabalho delas era muito apreciado pelas pessoas da vizinhança que elas visitavam diariamente, e é difícil não perceber os sentimentos de choque e descrença entre a esquerda italiana com a notícia da captura delas. Todos gostam de pensar que seu país é bem aceito no mundo e entre os italianos este sentimento é muito forte. Tristemente, para os que lutam na guerra de guerrilha contra o exército americano não faz diferença se você é italiano,francês, alemão ou nepalense; qualquer um que não seja do Iraque pode virar um candidato ao martírio no confronto colonial de civilizações.

Eu gostaria de pensar que elas serão libertadas, mas ontem um general do Serviço de Inteligência Italiano disse ao Parlamento que ‘a situação no Iraque está completamente fora de controle e a crise estará em total escuridão também’. Palavras fortes vindas de uma organização que tem sido historicamente considerada uma inflamada defensora dos governos direitistas e o de Berluosconi em particular. Ele disse ainda que havia uma explosão de novos grupos de resistência e que ficara praticamente impossível para qualquer de seus agentes recolher informações neste clima. Todo ocidental torna-se alvo em potencial, um prisioneiro, que pode ser morto por razões políticas ou resgatado mediante o pagamento de enormes somas que são canalizadas para os esforços da resistência. A França, por exemplo, estava prestes a pagar o resgate pedido pela libertação de seus dois jornalistas, até que a Inteligência Americana ficou sabendo e disse que isso estaria ajudando a Al Qaeda. A França discordou educadamente e, ao mesmo tempo que fechava o acordo, os EUA faziam uma incursão na cidade onde haveria a tranferência de dinheiro e homens.

É claro, se você acredita no que o Pentágono diz, então há uma boa chance de que esse desafortunado francês nunca mais seja visto na França. Grande parte do Iraque está agora ocupada pelos rebeldes e há muitas áreas no país onde os soldados e tanques americanos não ousam ir. Se você for capturado ou enviado como ocidental para um território sem homens do novo Iraque de Bush, pode permanecer lá por um longo tempo.

Às vezes eu penso que Bush e sua administração não podem ser tão estúpidos, que eles não invadiriam um país, criariam uma horrível e confusa invasão e subsequente ocupação, e não teriam a mínima idéia do que fazer quando a merda batesse noventilador. Eu penso que eles não podem ter criado esse caos e saído como se nada tivessem feito, lavando as mãos desse barril de pólvora que eles acenderam.

Mas é isso que eles estão fazendo, eles estão acocorados nas quatorze bases que construíram e contanto que Bush ganhe as eleições que estão chegando tudo estará OK. E mesmo que isso não aconteça, quem se importa? Halliburton já conseguiu seus bilhões e Bush pode se aposentar e ir para o rancho que ele tem no Texas. Um herói para os olhos daqueles que o seguiriam para a Siria, Iran e além. (*) Escritor e tradutor, historiador formado pela Universidade da Califórnia (UCLA). Neto do célebre escritor Ernest Hemingway, John está escrevendo um livro sobre o relacionamento entre o pai dele, Gregory, e o avô.’



TV NA FRANÇA
Mario Sergio Conti

‘Falar claro: a TV vende cérebros’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 12/09/04

‘É recorrente na França a preocupação em ser claro, em dizer com precisão o que se pensa. A preocupação começa na escola, permeia o cotidiano, impregna o debate político e a elaboração de idéias. O idioma reflete a preocupação, pois é cheio de interpolações do tipo ‘isto quer dizer’, ‘isto é’, ‘ou seja’ e perguntas como ‘está compreendendo o que digo?’ e ‘como vou dizer isto?’ Quando se encontra uma boa fórmula verbal, o interlocutor até comemora, exclamando ‘voilà!’ – que significa algo como ‘eis aí!’

A TF1 é a principal emissora de televisão francesa. Noventa e cinco por cento dos programas de maior audiência são apresentados pela rede, que pertence ao poderosíssimo grupo Bouygues. Quando a televisão aberta começou a perder telespectadores para os canais a cabo, a TF1 se associou ou comprou vários deles. No cômputo geral, manteve a audiência. No primeiro semestre de 2004, a receita publicitária da TF1 cresceu 6%. A dos seus canais temáticos subiu 18%.

Num livro de entrevistas de empresários e executivos, o presidente da TF1, Patrick Le Lay, disse o que é e para que serve a televisão. Disse com clareza e precisão.

A princípio, ninguém comentou. Entende-se: pouca gente quer ficar mal com a TF1, que emprega centenas de integrantes das classes opiniosas – jornalistas, escritores, intelectuais, atores, artistas – e entrevista e convida a classe política para debates e entrevistas. Houve um silêncio, constrangido e reverencial, ante a a entrevista de Le Lay.

Até que um diretor de cinema, Robert Guediguian, escreveu um artigo na primeira página do ‘Le Monde’. Mais do que desancar Le Lay, Guediguian se espantava com o silêncio. E se perguntava se o sistema mediático havia se tornado poderoso o bastante para calar a consciência crítica.

Voilà!, houve um Voilà!> coletivo e surgiu então o caso Le Lay. Ele virou até capa da revista ‘Télérama’.

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Uma pequena interpolação, dirigida aos cinéfilos: desconfio que Guediguian seja o cineasta francês mais interessante da atualidade, no campo da ficção. Ele trabalha sempre com os mesmos atores (Ariane Ascaride e Jean-Pierre Daroussin), na mesma cidade (Marselha e adjacências) e além de dirigir é produtor, ator e roteirista. Seus temas são a desindustrialização, a perda de espaço histórico da classe operária, e a problematização das noções de engajamento e militância política. Seus filmes são para gente adulta e que pensa, tanto na forma como no conteúdo. Recomendo especialmente ‘A cidade está tranqüila’, lançado em 2000, e ‘Meu pai é engenheiro’, este último o melhor filme francês de ficção do ano. Fim da interpolação.

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Patrick Le Lay disse o seguinte:

‘Há muitas maneiras de falar da televisão. Mas numa perspectiva ‘business’, sejamos realistas: basicamente, o ofício da TF1 é ajudar a Coca-Cola, por exemplo, a vender o seu produto. Ora, para que uma mensagem publicitária seja captada, é preciso que o cérebro do telespectador esteja disponível. Nossos programas têm como vocação torná-lo disponível: ou seja, diverti-lo e relaxá-lo entre duas mensagens. O que vendemos à Coca-Cola é tempo disponível no cérebro humano.’

Convenhamos: o que ele diz é o beabá. A televisão aberta é gratuita para o telespectador. O seu mercado, os seus clientes, são os anunciantes. O que a TV vende é tempo para que os anunciantes vendam o que produzem. Os programas são o que é apresentando entre os anúncios. Eles servem para atrair a atenção do espectador, e para condicioná-lo a apreender as mensagens publicitárias.

O raciocínio de Le Lay ecoa o célebre dito sobre imprensa: um jornal são anúncios com notícias impressas no verso. Com a diferença que os jornais são pagos, e a televisão aberta, não.

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Le Lay foi acusado de cinismo, de desconsiderar o papel social da televisão e o seu compromisso com o telespectador, de pregar a alienação, de defender o admirável mundo novo de Aldous Huxley, de ‘negar o ser humano’ (essa é da subprefeita parisiense, Anne Hidalgo), de ser um manipulador, etc., etc. Mas a base da discussão foi, sempre, o caráter capitalista da televisão comercial.

O presidente da Francetélévisions, a rede pública, saiu-se com uma estocada ferina: ‘Nós apelamos para a inteligência e não para a capacidade de consumo dos telespectadores’. Olha, assistindo os canais da Francetélévisions, juro que não dá para perceber o tal apelo à inteligência. Ou melhor: não é todo dia que ele aparece. Até porque a rede se baseia em propaganda comercial.

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Le Lay deu então uma longa entrevista à ‘Télérama’. Reclamou um pouco: ‘fui transformado num comerciante de cérebros’. Disse que tudo que faz é legal: ‘a lei nos autoriza a vender 10% (do tempo de emissão), com um máximo de doze minutos de publicidade por hora’. Chamado a explicar a nada sutil transgressão da legislação, na forma de patrocínio de ‘eventos especiais’, ‘merchandising’ e ‘sinergia’ (‘reportagens’ sobre programas da emissora ou produtos dos grandes anunciantes), Le Ray foi hilariante: ‘Ninguém é perfeito’, disse.

No essencial, o presidente da TF1 não voltou atrás. Disse que a fórmula que usou foi ‘um pouco caricatural e estreita’. Pode ser. Mas antes de tudo ela está certa, vai ao centro da questão.

E foi a partir dela que a polêmica evoluiu. Discutiu-se o Conselho Superior do Audiovisual, o órgão teoricamente encarregado de evitar que a televisão não seja apenas um comércio. Debateu-se a responsabilidade dos profissionais da TF1. A ditadura dos índices de audiência. As obrigações do poder público. O consumismo desvairado que a televisão incentiva.

É difícil que a televisão francesa mude. Que deixe de ser o mecanismo que Le Ray descreve. Mas ao menos se soube do que estava se falando.

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Não há cabimento em comparar a França com o Brasil. A televisão de um país com a do outro. Ou a produção cultural de ambos. Mas vale comparar as polêmicas.

Acompanhei, a princípio com interesse, e depois com tédio, as discussões sobre o tal Conselho de Jornalismo e a produção independente televisiva. Confesso que entendi pouco do debate. Acho que ele foi poluído pela imprecisão.

O governo, por exemplo, foi acusado de ‘stalinismo’. Num outro bate-boca, José Dirceu comparou o Ministério Público à KGB. Não acho que as acusações sejam apenas exageros retóricos. Elas traduzem uma ignorância profunda, abismal mesmo, ofensiva não só a qualquer cidadão razoavelmente formado, mas sobretudo às milhões de vítimas do stalinismo e da KGB.

Em nenhum momento se chamou a atenção para o caráter comercial da televisão e da imprensa. De interesses materiais, nem pensar. O tom geral foi o da honra ofendida, com inúmeras conclamações à defesa do que é ‘bom para o Brasil’. Como era de se esperar, a discussão não foi a lugar algum. Está sepultada. O que parece ter sido a intenção inicial dos principais envolvidos.’