Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

No Mínimo

DO GOLPE AO PLANALTO
Guilherme Fiuza

O último romântico, 7/08/06

‘- Liga pro Côsto!

O grito foi dado por um militante de esquerda no Bar Jóia, no Jardim Botânico, em 1986. Um deputado do PT acabara de ser preso, acusado de tramar uma interferência pirata na transmissão do ‘Jornal Nacional’, e era preciso avisar à imprensa. Mas a esquerda achava (eventualmente com razão) que a imprensa fazia o jogo dos poderosos. Um dos poucos jornalistas confiáveis, na ótica dessa militância, era o ‘Côsto’.

O Côsto era Ricardo Kotscho, então repórter do ‘Jornal do Brasil’, cujo sobrenome costumava ser grafado e pronunciado de formas variadas, sempre meio parecidas com a correta, mas cuja reputação não encerrava um pingo de dúvida: era confiável para os movimentos de oposição, que o consideravam um militante aliado; e era confiável para os donos de jornal, que também o viam como um militante, mas do bom jornalismo.

Em 40 anos de profissão, agora contados em primeira pessoa no livro ‘Do golpe ao Planalto – Uma vida de repórter’ (Companhia das Letras, 336 páginas), Ricardo Kotscho, colunista de NoMínimo, harmonizou, talvez como nenhum outro jornalista brasileiro, as militâncias política e jornalística. Nunca escondeu sua identificação com o PT, que acabou levando-o ao poder no governo Lula. Se afastou diversas vezes das redações para arregaçar as mangas pelo partido, e encontrava sempre as portas abertas na volta aos grandes jornais.

Em 2002, foi avisar ao dono da ‘Folha de S. Paulo’, Octavio Frias de Oliveira, que estava deixando o jornal para trabalhar como assessor de imprensa em mais uma campanha de Lula. Seu Frias lançou um olhar de desaprovação, deu-lhe um abraço e disse: ‘Bem, se você quer assim, problema seu. Como o Lula vai perder de novo, assim que terminar a campanha você volta para o jornal.’

Talvez Kotscho conseguisse essa química fina por um detalhe singelo: quem retornava às redações era sempre o repórter. O militante partidário ficava do lado de fora.

Um trunfo que carregava para fazer essa difícil separação estava nos seus próprios interesses profissionais. Nunca vibrou muito com a cobertura da política em si. O próprio Lula, em 30 anos de amizade, deixou claro várias vezes que o considerava ingênuo na matéria (‘no que não estava tão errado’, concorda o autor). E retrucava seus palpites com a pergunta: ‘Você, que se acha tão inteligente, quantos votos teve na última eleição? Então, vai ver quantos eu tive…’

A política que interessava a Kotscho era aquela encontrada na vida das pessoas comuns. Chegou a ser chamado na redação de ‘O Estado de S.Paulo’ de ‘repórter do pipoqueiro’, por causa de uma reportagem feita na porta do palácio de Verão, em São Paulo.

O presidente da República, na época o general Costa e Silva, estava doente e internado no palácio. Kotscho estava de plantão no local para tentar alguma informação sobre a situação do presidente, que naturalmente não surgiu, como era comum naquele regime fechado. O repórter então se aproximou de uma carrocinha de pipoca e, registrando as conversas da freguesia, montou uma reportagem feita de símbolos: mostrou o abismo que se formara entre o poder e as pessoas comuns, que não tinham a menor idéia do que se passava no palácio a alguns metros delas.

Foi dessa época a advertência que ouviu diretamente de Julio Neto, diretor do ‘Estadão’, como conta no livro:

‘Não sei por que vocês vivem fazendo tantas matérias com esses pobres, índios, sem-terra, favelados, moradores da periferia, da Amazônia… Essa gente toda nem lê o nosso jornal…’

‘Do golpe ao Planalto’ tem, evidentemente, a força de trazer um ponto-de-vista privilegiado sobre Luiz Inácio Lula da Silva. Ricardo Kotscho desenvolveu com ele uma sólida e íntima amizade desde 1978 – ‘por razões que até hoje desconheço’ – , quando Mino Carta mandou-o ‘colar’ no líder operário e produzir matérias sobre ele toda semana para a ‘IstoÉ’. Talvez Kotscho tenha visto no nordestino rude e sincero a verdade que não viu nos educados amigos de infância. Estes sumiram de sua vida quando seu pai morreu e os tempos de fartura material acabaram.

Da visão em close de Lula surgem passagens curiosas, como a de uma das primeiras atitudes do presidente ao se instalar no gabinete do Planalto: reclamar que ali não tinha café expresso. Kotscho revela também reflexões importantes do amigo, como a de que o ‘maior erro político’ de sua vida foi não ter aceito a demissão de José Dirceu no escândalo Waldomiro Diniz.

O jornalista toca sem cerimônia num dos pontos mais delicados de sua relação com Lula: a postura do presidente, surpreendente para todos, de não receber a imprensa para entrevistas coletivas.

Kotscho conta que no início do governo levava a Lula amplas propostas de agenda com a imprensa, sempre aprovadas integralmente. Após o despacho do presidente com o chefe de gabinete Gilberto Carvalho, porém, a agenda se desmantelava. Secretário de Imprensa, Kotscho cobrava os itens propostos e Lula apenas respondia: ‘Vamos relaxar, vamos relaxar’. Quando a cobrança transbordou para o noticiário, com matérias mostrando que o primeiro presidente de esquerda era o que menos falava com a imprensa, Lula continuou lacônico nas justificativas ao seu secretário: ‘Por enquanto está bom assim’.

Mas emerge também um Lula muito forte emocionalmente, que, ao contrário do que se comenta, segundo o autor jamais se abateu nos piores momentos de crise. Sempre tirou, não se sabe de onde, a dose necessária de entusiasmo para tocar o barco para a frente. Uma das fontes possíveis dessa força seria o que Tancredo Neves descreveu certa vez a Kotscho como ‘vitamina P’ – P de poder. O livro mostra também um Lula espirituoso, que não perde a piada com a própria mulher quando ela, nos anos 80, conhece o Palácio do Planalto e diz que os ‘donos’ nunca vão deixar o pessoal do PT entrar ali. Lula então responde que Marisa está preocupada porque ‘vai ter que cuidar da limpeza daqueles vidros todos’.

Mas o melhor personagem do livro de Ricardo Kotscho não é Lula. É Ricardo Kotscho. Millôr Fernandes diz que aprendeu jornalismo com seu professor de piano, que a cada erro batia em sua cabeça com um jornal dobrado. Kotscho não despertou para o jornalismo com pancadas de jornal, mas quase. Começou carregando jornal, como ajudante de jornaleiro.

Um jornaleiro fora dos padrões, que se distraía no serviço lendo compulsivamente o produto que lhe cabia apenas passar adiante. Ficou feliz quando sua família conseguiu comprar uma casa própria, nem tanto pela casa em si, mas porque ela ficava em frente a uma banca de jornal – onde, com sua ‘experiência’ de ajudante de jornaleiro, logo estaria trabalhando. Dali iria direto para a redação do ‘Estadão’.

Sua primeira reportagem de impacto, que lhe rendeu um de seus prêmios Esso, sacudiu um vespeiro. Listava, em 1976, os impressionantes gastos com mordomias do governo militar. A palavra ainda não estava na boca do povo, e era tal a imunidade dos militares às críticas, que a primeira pista foi encontrada pelo repórter no próprio Diário Oficial. Ali havia, por incrível que pareça, uma rubrica ‘mordomias’.

Kotscho fez também a primeira reportagem que desbancava a tese de suicídio do operário Manoel Fiel Filho, assassinado pelo regime. A responsabilidade da denúncia era grande naqueles anos de chumbo, e o ‘Estadão’ só topou publicar se o repórter assinasse a matéria. Ele assumiu o risco, e no dia seguinte caía o comandante do II Exército, Ednardo D’Avila Mello.

Mas o ‘Côsto’ militante, querido e respeitado pela esquerda por sua sensibilidade social, já começara a surgir antes disso. Mais precisamente em 1968, quando aos 20 anos mal começara a carreira no ‘Estadão’. Explodiam os famosos confrontos entre estudantes e a polícia na rua Maria Antônia, e numa dessas coberturas o jovem repórter, ao ver uma estudante da USP sendo agredida, não se conformou com seu papel de testemunha dos fatos: se meteu no meio para defendê-la. Um policial lançou seu cão contra ele, e Kotscho voltou para a redação com a perna sangrando. Seu primeiro ferimento de guerra.

A partir dali, nunca mais conseguiria deixar de saltar de um lado a outro o balcão da notícia. ‘Do golpe ao Planalto’, que será lançado no Rio nesta segunda-feira às 19 horas, na Caixa Cultural, é a história de um repórter que não escreveu reportagens – viveu reportagens. No cenário atual do jornalismo, talvez o último romântico.’



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