Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

No Mínimo

POLÍTICA & ESCÂNDALOS
Mario Sergio Conti

Estética: escândalos e ‘affaires’, 15/05/06

‘Um escândalo político gera toneladas de reportagens e editoriais, ironias e indignação, e o fim é sempre o mesmo: não dá em nada. Mesmo os escândalos, por assim dizer, clássicos, os que têm prólogo, enredo claro, personagens bem definidos, choque e desenlace, não dão em nada. O de Collor, por exemplo, levou à sua destituição. Num sentido mais amplo, no entanto, também ele não deu em nada. Ao contrário do que se dizia, o Brasil não foi passado a limpo. O país permaneceu sujo, se sujou ainda mais. A corrupção continuou não só a existir como se fortificou. O escândalo dos anões do orçamento (alguém lembra?) provocou a cassação de uma dúzia de de parlamentares. Agora, com o escândalo das sanguessugas, seria preciso cassar um terço da Câmara dos Deputados. Ninguém tem vontade e paciência para tanto.

Os escândalos, pois, devem ser apreciados pela sua lógica, pela sua forma. Criticá-los é comentário estético. É avaliar desempenhos, consistência interna, seus tênues laços com a vida social. Os escândalos atraem atenção não porque se refiram à política. Sua dimensão verdadeira é a da estética. Eles têm narrativa. Eles têm dramas, mistérios, suspense, personagens em conflito, golpes de cena. Parece que se vai descobrir algo importantíssimo. No fim, não dá em nada. Vida que segue. Mas, enquanto durou, foi divertido.

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Esse escândalo de agora, o do mensalão, que já dura quase um ano, no início tinha a forma de um programa de tele-realidade. Com voyerismo, contemplava-se os personagens, à espera da eliminação paulatina de todos. O que restasse, seria o vencedor. A ser eliminado no escândalo seguinte.

A forma tele-realidade se esvaneceu porque, contra todas as evidências e torcidas, os personagens não foram eliminados. Os deputados mensaleiros, ao contrário, foram absolvidos em plenário. O eixo da trama se perdeu em várias subtramas (dólares de Cuba, a volta do caso Celso Daniel, a roubalheira em Ribeirão Preto, as ligações da Telemar com o filho do presidente, a disputa dos Fundos de Pensão com Daniel Dantas etc.), que deram origem a outras subtramas, que por sua vez alimentaram mais desdobramaentos (a conexão angolana, a Casa do Lobby, a quebra do sigilo do caseiro, a queda de Palocci, o envolvimento do ministro da Justiça na patranha). Aí vieram o guarda-roupa de Lu Alckmin, as ONGs turbinadas de Garotinho, a sua greve de fome, as Sanguessugas, o chilique de Silvinho Land Rover. Para piorar, Evo Morales nacionalizou o gás. Embolou tudo. O escândalo perdeu sua forma, se bem que comporte epifenômenos interessantes. O meu preferido foi a vaia que José Dirceu, ex-líder estudantil, levou de estudantes da PUC de Minas.

Não é ruim que um escândalo perca sua forma, que descambe para a chanchada aloprada. É um passo necessário para que ele acabe, na prática, mas continue a ter uma existência retórica. Nessa categoria se enquadram os dois maiores escândalos da adminsitração de Fernando Henrique Cardoso, o das privatizações e o da compra de votos para a emenda da reeleição. A existência retórica também um dia acabará. Hoje ninguém lembra mais do maior escândalo do governo de José Sarney, o da Ferrovia Norte-Sul.

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O que aqui se chama de escândalo, na França recebe o nome de ‘affaire’. A mecânica é a mesma. O que muda é a sua duração, o seu encadeamento, os seus ritmos. Lá, escândalo bom é o que dura mais de uma década, pelo menos. O melhor de todos é ‘l’affaire des emplois fictifs’, que completará daqui a pouco trinta anos. Ele é do tempo em que o presidente Jacques Chirac era prefeito de Paris. Não acaba nunca.

O que está em cartaz no momento é ‘l’affaire Clearstream’, que foi alçado à pretigiosa categoria de ‘escândalo de Estado’. Na verdade, ele é a transmutação de ‘l’affaire des fragates de Taiwan’, que começou há quinze anos. O seu estopim foi a encomenda, com propinas e corrupção, de fragatas de Taiwan, e na sua atual encarnação envolve uma sociedade bancária do Principado de Luxemburgo, a Clearstream, onde teriam conta figurões da República. O caso, como se vê, é infernalmente complicado. Ele envolve governo, juízes, espionagem, parlamentares, banqueiros. Tem até denunciantes anônimos, que os franceses chamam de ‘corvos’.

Mas, como convém a um bom escândalo, subitamente ele ficou claríssimo. Ou melhor, um detalhe significativo ficou evidente: o presidente Jacques Chirac e seu primeiro-ministro, Dominique de Villepin, disseram a um espião, o general Philippe Rondot, que ele deveria descobrir que o ministro Nicolas Sarkozy tinha uma conta, secreta e bem fornida, na Clearstream. Ou seja, manipularam um serviço do Estado para prejudicar um adversário político. Adversário que integra o governo.

Esse é o cerne. Em torno dele se multiplicam figuras impagáveis, a começar pelo general Rondot. Ele é um espião maniáco pela palavra escrita. Ele teve a pachorra de anotar tudo o que Chirac e Villepin lhe diziam em reuniões secretas. O desastre se produziu porque a Justiça determinou que a polícia apreendesse seus papéis, computadores e documentos. Apesar do processo correr em sigilo de Justiça, as anotações do general acabaram nas páginas do ‘Le Monde’. Mais uma vez, como na crise do Contrato Primeiro Emprego, se fala na queda certa de Villepin, na renúncia de Chirac, na antecipação das eleições presidenciais do ano que vem.

Um comentarista, Patrick Jarreau, notou que o ‘affaire Clearstream’ lembra os romances de Alexandre Dumas. Há o rei (Chirac), nobres que disputam a sua sucessão (Villepin e Sarkozy), espiões, tipos misteriosos (os corvos), heróis que viram vilões (o juiz de instrução, um ferrabrás de escândalos anteriores, foi pego em atitude suspeita), vilões que viram heróis (um repórter doido, com delírio persecutório, que descobriu coisas importantes), corrupção, golpes baixos etc. Um romance rocambolesco, em suma. Que no plano estético mostraria a persistência do antigo regime na política republicana. É bem achado.

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Fica a recomendação, portanto. Não percam o ‘affaire Clearstream’. No momento, ele é bem mais emocionante que o do mensalão. Tomara que mantenha o pique até a Copa.’



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