Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O assombro que nunca termina

A morte é sempre absurda, mas a morte de J.D. Salinger transforma o absurdo em uma noção insuficiente. Salinger foi um dos casos extremos de escritores engolidos pela própria obra. Arredio, invisível, ele se escondeu dentro de seus escritos e por isso foi não só um escritor genial, mas um personagem inesquecível.


Pensamos em Salinger, que viveu longos anos recluso em uma fortaleza de Cornish, EUA, e, imediatamente, pensamos em Holden Caulfield, o narrador de O apanhador no campo de centeio, seu romance mais célebre. Salinger seguiu à risca as instruções deixadas por Caulfield nas últimas linhas do romance: ‘A gente nunca devia contar nada a ninguém. Mal acaba de contar, a gente começa a sentir saudade de todo mundo.’


O silêncio, para ele, era uma tentativa de escapar do sofrimento.


Sua vida de ermitão parece ter algo a ver com seu envolvimento com o zen budismo. Jerome David (o nome que se esconde sob o J.D.) nunca negou suas inquietações metafísicas, que seus livros, em um estilo debochado e cruel, transformaram em agonia.


A fuga interminável de Salinger – que sua morte, agora, interrompe – carregava, ainda, uma dose de ironia. Com ela, criticou o comodismo, a repetição, o tédio que marcam a vida do americano comum. O estilo desleixado e nervoso que cultivou, talvez na esperança de não ser amado, porém, se voltou contra ele.


Sensação de desafogo


Seu melhor biógrafo, Ian Hamilton (Em busca de J.D. Salinger, Casa Maria Editorial, 1990), o definiu assim: ‘Ele era famoso por não querer ser famoso.’


Quando lançou O apanhador, refugiou-se na Inglaterra porque não suportaria ter seu herói dividido – fatiado –com gente estranha.


A revista Time se espantou: ‘Ele consegue entender a cabeça de um adolescente sem ter uma.’ Recordo a sensação de desafogo que senti quando, nos anos 60, em plena adolescência, descobri seus livros. Isso não tem nada de espantoso porque milhares de outros leitores, em todo o mundo, experimentaram o mesmo assombro. O que realmente espanta é que esse assombro nunca termine. Até hoje, de cabelos brancos, nos assustamos com Salinger.


A opção pelo silêncio


A morte de J.D. Salinger se torna mais absurda porque, tendo se oferecido em sacrifício ao mundo da ficção, sua morte é, de certa forma, a morte da própria ficção. Mais absurda ainda porque, de certa maneira, ela perpetua aquilo que o sustentou em vida: o silêncio.


Salinger poderia repetir, sem vacilar, a célebre tirada de Holden Caulfield: ‘Se eu fosse pianista, ia tocar dentro de um armário.’


Não suportava a ideia de que pudessem ouvi-lo, e ele mesmo não suportava se ouvir.


Sua morte consagra essa opção pelo silêncio, através da qual se esforçou para morrer em vida. A ficção também morre um pouco, não só porque Salinger foi um escritor extraordinário, mas porque, escondido atrás das palavras, ele se tornou parte inseparável de seus livros. Não contava, provavelmente, com isso: a partir de agora, cada vez que lermos suas ficções, ele retornará.


 


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Jornalista e escritor