Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O Estado de S. Paulo

GUERRA NO ORIENTE MÉDIO
O Estado de S. Paulo

Israel bombardeia torres de TV

‘REUTERS E AP, BEIRUTE E JERUSALÉM – A aviação israelense bombardeou ontem torres de transmissão de TVs no centro e norte do Líbano e tomou o controle de um povoado libanês perto da fronteira de Israel. Também lançou bombas contra áreas ligadas ao Hezbollah em Beirute e Sidon, no sul do país. Pelo menos quatro libaneses morreram e mais de dez ficaram feridos.

O ataque às torres atingiu a principal emissora privada, a LBC, a TV Futuro e a Al-Manar, do grupo xiita libanês Hezbollah, além de várias rádios. Um empregado da LBC morreu e dois franceses que estavam nas imediações ficaram feridos. As transmissões foram afetadas apenas temporariamente. Bombas também danificaram retransmissores da telefonia celular, que deixou de funcionar no norte do país.

Na fronteira, tropas de Israel apoiadas por tanques entraram em confronto com Hezbollah e ocuparam o povoado de Maroun al-Ras, a 8 quilômetros da fronteira, desalojando os militantes do grupo. Também entraram por algumas horas na vila de Marwahin. Os militares deram um ultimato aos moradores que permaneciam em 14 vilas perto da fronteira para abandoná-las até as 18 horas de ontem (meio-dia em Brasília), aparentemente antes de iniciarem bombardeios intensos. Quase todos partiram, mas até a madrugada de hoje (horário local) o Exército não ampliou a ofensiva.

Milhares de pessoas fugiram para o norte e a estimativa é que 500 mil deixaram suas cidades, principalmente no sul.

Centenas de soldados já vinham realizando há dias incursões temporárias em território libanês na semana passada para destruir armas e bases de lançamento de foguetes.

Ontem, o Hezbollah disparou mais de 130 projéteis contra cidades em Israel, ferindo 16 pessoas. A aviação e a artilharia israelense bombardearam mais de 150 alvos no Líbano, incluindo bases do Hezbollah, pontes, as torres de comunicações e 12 estradas de ligação com a Síria.

‘Isto é parte do esforço especificamente ao longo da fronteira para destruir todos os equipamentos e infra-estrutura do Hezbollah’, disse o capitão Jacob Dallal. Embora tenha convocado milhares de reservistas, o comando militar israelense diz que a ‘dimensão e intensidade’ das operações pode variar nos próximos dias, mas permanecerão limitadas. A TV CNN diz que foram convocados 6 mil soldados e a Reuters, 3 mil, mas não há um número oficial.

Desde o início do conflito, no dia 12 – quando o Hezbollah invadiu território israelense e capturou dois soldados – morreram 362 libaneses e 34 israelenses. Mais de 1.500 pessoas ficaram feridas. Israel levantou ontem temporariamente o bloqueio dos portos do Líbano para a entrada de navios com alimentos e outros itens essenciais. O intervalo permitirá a remoção de milhares de pessoas. O chefe do setor humanitário da ONU, Jan Egeland, é esperado em Beirute para organizar a ajuda.’



MEMÓRIA / GIANFRANCESCO GUARNIERI
Beth Néspoli

Morre Gianfrancesco Guarnieri

‘O ator e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri morreu ontem à tarde, aos 71 anos, na capital paulista. Internado no Hospital Sírio-Libanês desde o dia 2 de junho, ele sofria de insuficiência renal crônica e estava sedado desde quinta-feira. O corpo do ator começou a ser velado na noite de ontem no hospital. O enterro está marcado para as 15 horas de hoje no Cemitério Jardim da Serra, em Mairiporã, na Grande São Paulo, numa cerimônia restrita a amigos e parentes.

Em 1958, aos 24 anos, Guarnieri mudou os rumos da dramaturgia brasileira com a obra Eles não Usam Black-Tie, que explorava as relações trabalhistas a partir de uma greve de operários. Mas foram outras dezenas de criações inesquecíveis no teatro, cinema e televisão. Seu último papel foi na novela Belíssima, da Rede Globo, como Pepe. A participação teve de ser interrompida por causa da doença. Guarnieri escreveu também mais de 20 peças, sem contar episódios para casos especiais ou seriados da TV. Recebeu quatro Prêmio Molière e dois Prêmio Saci, entre outros.

Guarnieri nasceu em Milão, na Itália, no dia 6 de agosto de 1934, filho do maestro Edoardo e da harpista Elsa de Guarnieri. Dos pais herdou o talento musical: compôs Upa, Neguinho com Edu Lobo e Castro Alves Pede Passagem, com Toquinho. Em 1937 seus pais imigraram para o Brasil e foram morar no Rio, onde ele morou até 1953, quando mudou-se para São Paulo.

Em várias entrevistas, creditou à empregada Margarida, que cuidou dele na infância e adolescência, o aprendizado da cultura popular, da vida nas ruas, no morro e nas favelas cariocas. ‘A mãe de Margarida morava no morro, era analfabeta, mas também uma mulher de grande sabedoria. Foi nela que eu me inspirei para criar Romana.’

Matriarca de Eles não Usam Black-Tie, Romana foi interpretada por Lélia Abramo na primeira montagem teatral, por Fernanda Montenegro no cinema e por Ana Lúcia Torre, em 2001, em uma montagem recente da peça. Foi também no morro próximo a sua casa, em Laranjeiras, que conheceu Gimba, uma espécie de guarda-costas de bicheiro, que mais tarde inspiraria o malandro e anti-herói que seria o personagem central da peça Gimba.

Ainda garoto, Guarnieri debatia-se entre duas vocações – a militância e a poesia. De certa forma, ele uniu as duas vocações ao estrear, no palco do Teatro de Arena, com Eles não Usam Black-Tie, inaugurando no teatro um novo caminho de investigação da realidade brasileira. A obra fez com que a greve de operários subisse à cena pela primeira vez no País e lhe valeu, entre outros, o Prêmio Governador do Estado de autor revelação e o Prêmio APCA de ator.

O sucesso se repetiria 22 anos mais tarde, com a adaptação cinematográfica dirigida por Leon Hirszman. Se na primeira montagem teatral ele interpretou o filho fura-greve Tião, que trai os interesses coletivos em busca da solução individual, no filme ele assumiu o papel de Otávio, o pai, operário e líder sindical.

O filme foi lançado em 1981 e só não foi censurado porque venceu o Festival de Veneza daquele ano, ganhando o Leão de Ouro. Naquela época, os filmes eram mandados para festivais sem passar pela censura, o que só acontecia antes de iniciarem carreira comercial. No caso de Eles não Usam Black-Tie, houve todas as indicações de que a censura viria, mas o atual ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, que na época era presidente da Embrafilme, negociou com a direção do festival para que o filme recebesse alguma premiação e assim tornasse inviável sua interdição no Brasil. Só que, chegando lá, a obra encantou o júri e o filme foi o grande vencedor. Acabou um sucesso de bilheteria, faturando outros nove prêmios internacionais e seis nacionais.

APRENDIZADO

Sua primeira lição como escritor veio ao 13 anos, ainda no Rio, quando começou a escrever para o jornal da Juventude Comunista. ‘Eu achava que escrever para jornal era escrever difícil. Ao ler meu primeiro texto, o editor rasgou a matéria e quase me agrediu fisicamente.’

O aprendizado sobre como escrever com clareza e concisão levaria a outra lição importante na sua primeira tentativa de escrever uma peça teatral, no colégio de padres Santo Antônio Maria Zacharias, no Rio. A peça chamava-se Sombras do Passado e tinha como ‘alvo’ um vice-reitor prepotente. ‘Era horrível’, reavaliaria Guarnieri, depois de tornar-se autor consagrado. Mas o padre que tomava conta do teatro gostou, e a peça foi montada.

O duplo talento que explodiu nessa primeira experiência – o de retratar uma realidade observada, ou vivida, e interpretar os personagens dessa realidade – jamais o abandonaria. O episódio escolar seria lembrado mais tarde, em 1961, quando A Semente foi proibida pela censura na véspera da estréia no Teatro Brasileiro de Comédia. Nesse texto, curiosamente, ele criticava a rigidez do Partido Comunista e a excessiva determinação de líderes da esquerda que atingiam a indiferença com o ‘lado humano’ das causas políticas.

O forte movimento dos intelectuais e da imprensa acabaram anulando a interdição, e a peça estreou com Cleyde Yáconis, Nathalia Timberg, Leonardo Villar e Guarnieri no elenco.

ARENA

Assim que chegou a São Paulo, Guarnieri decidiu investir no talento que causou sua expulsão do colégio. Em 1955, ajudou a fundar o Teatro Paulista do Estudante e ganhou seu primeiro prêmio de ator como protagonista da peça Está lá Fora um Inspetor, de Priestley. Em 1956, entrou para o Arena, onde ganhou um dos mais cobiçados prêmios da época, o APCA de revelação de ator no papel de George da peça Ratos e Homens, de Steinbeck, dirigida por Augusto Boal. Na mesma época foi chamado pelo diretor Roberto Santos para fazer sua primeira atuação em cinema, no filme O Grande Momento.

Depois do estrondoso sucesso de Black-Tie, nunca mais parou. Gimba, A Semente, Ponto de Partida, O Filho do Cão, Marta Saré, Castro Alves Pede Passagem, Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes e Um Grito Parado no Ar. Foram muitas as peças em que ele também integrava o elenco, sempre em boas atuações. E não só no teatro. Guarnieri integra aquela geração de atores que ajudou a televisão a dar os seus primeiros passos, seja no Grande Teatro Tupi ou nas primeiras novelas.

Quem viu jamais esquecerá o personagem Tonho da Lua, o maluquinho da novela Mulheres de Areia, mais tarde regravada na Rede Globo. Igualmente inesquecível foi o Jejê, o trambiqueiro da novela Cambalacho.

Guarnieri casou-se pela primeira vez em 1958, com Cecilia Thompson, com quem teve dois filhos, Flávio e Paulo Guarnieri, ambos atores. Com sua companheira dos últimos 35 anos, Vanya Sant’Anna, teve mais três filhos – Cláudio e Mariana Guarnieri, que também seguiriam a carreira teatral – e Fernando Henrique. O ator tinha sete netos.

REPERCUSSÃO

Fernanda Montenegro

Atriz

‘A bruxa está solta. Está indo embora toda uma geração de ouro e não há reposição de peças. Fizemos Eles Não Usam Black-tie, teleteatros, novelas. Meu Deus, tivemos um reencontro emocionante em Belíssima. Mesmo doente ele era um menino no palco, tocava a platéia no coração. Além de um grande ator, era um homem de ação política, visão social e um amigo e tanto.’

Nicete Bruno

Atriz

‘Trabalhamos muito na TV, tanto eu como o Paulo (Goulart) tínhamos uma amizade e uma admiração muito grande por ele. Nossos filhos cresceram juntos. Perdemos um homem de valores extraordinários.’

Zé Renato

Dramaturgo

‘Com as mortes de Guarnieri e Raul (Cortez) todo um tempo se acaba e a gente nunca mais vai recuperar. Guarnieri deu uma imensa contribuição de vida, de trabalho e de dedicação.’

João Batista de Andrade

Cineasta e secretário de Estado da Cultura

‘Lamento profundamente. São duas perdas tristes, dolorosas para a cultura, a dele e a do Raul Cortez. Guarnieri tem um significado imenso para a cultura brasileira, ajudou a criar toda uma geração, ensinou a pensar. Eu o dirigi em dois filmes, Eterna Esperança (1969) e A Próxima Vítima (1982). A secretaria vai criar uma manifestação para reverenciar Guarnieri e Cortez.’

Benedito Ruy Barbosa

Dramaturgo

‘Ele é o grande responsável por eu ter iniciado minha carreira de dramaturgo. Ele me incentivou a escrever minha primeira peça e, quando foi assisti-la, invadiu o palco e puxou os aplausos da platéia para uma das cenas. Até então, eu era um jornalista que tinha cinco empregos. O Guarnieri era assim, uma inspiração. Fez duas participações especialíssimas em novelas minhas (Terra Nostra e Esperança), mas já estava doente. Perdi um mestre.’

Zé Celso Martinez Corrêa

Diretor teatral

‘Um excelente ator, maravilhoso. O potencial era extraordinário. Excelente compositor. Um homem de teatro, de TV, de cinema, completo. Agora vai fazer companhia a Raul Cortez. Eles devem estar impressionando todo o Olimpo de Dionísio. Ele era um sujeito que sempre lutou pela transformação. A morte não é um obstáculo. Fica a obra, o afeto dele.’

Esther Góes

Atriz

‘Que pena. Estava no auge da sua vitalidade. Ele ajudou a me formar, no Arena. Eu era do teatro infantil, e aprendi muito. Há interpretações que marcam o teatro, como o Renato Borghi no Rei da Vela. E O Tartufo de Guarnieri. Eu disse isso a ele, foi inesquecível, deslumbrante. Ele deu vida real, credibilidade absoluta ao personagem. Não quis fazer a comédia, embora tivesse o recurso para fazer a blague. Ele e Raul eram corajosos. Falta gente como eles, que não verga.’

Bete Mendes

Atriz

‘Grande amigo, grande talento, grande companheiro político, tinha uma sensibilidade incrível. Sua obra é uma referência para o teatro brasileiro. Fiz a Maria no filme Eles não Usam Black-Tie, um presente que ele e o Leon Hirszman me deram.’

Milton Gonçalves

Ator

‘Foi um dos primeiros espectadores da minha vida artística e companheiro há 50 anos. Tinha um projeto para o Brasil e acreditava na palavra como instrumento da mudança. Foi meu amigo, meu mestre e, às vezes meu aluno.’’

Mariangela Alves de Lima

Autor questionou cânones do teatro e convicções sociais

‘Cristãos e marxistas partilham pelo menos um artigo de fé: ninguém se salva sozinho. Na obra dramática de Gianfrancesco Guarnieri, construída peça a peça por mais de quatro décadas, a convicção de que a realização do homem só se completa por meio do resgate da coletividade não se desgastou sequer sob o sucessivo impacto de golpes que a História recente desfechou sobre os projetos e as práticas socialistas.

Em Eles não Usam Black-Tie, primeira peça de um jovem autor de 24 anos, que estreou com grande impacto no Teatro de Arena de São Paulo em 1958, entrava em cena, pela primeira vez nos palcos brasileiros profissionais, um coletivo de trabalhadores brasileiros cujo dilema ético era a solidariedade de classe. O operário Tião, filho de um líder da classe trabalhadora, trai os companheiros ao furar uma greve e é, ao final, exilado do morro onde vivem a família e a moça com quem pretende se casar. Renuncia, enfim, ao seu lugar de classe em nome do bem-estar individual.

A repercussão dessa primeira peça entre a crítica e o público fez dela o marco inaugural de uma nova etapa do teatro brasileiro. Assim como para os trabalhadores, não haveria salvação individual para os artistas e intelectuais. Era imperioso, portanto, encontrar alternativas para a expressão estética do ideário coletivista. Essa primeira peça questionava a um só tempo os cânones da dramaturgia e da encenação do teatro burguês. O que se impunha como valor, ao mesmo tempo dramatúrgico e cênico, era a autenticidade. Sábato Magaldi observaria mais tarde que o conjunto, dirigido por José Renato, ‘não seguiu também a pista falsa do pitoresco do morro, despreocupando-se da tarefa, quase impossível na arena, de mostrar a cor local’.

Com esse despojamento material e essa tônica no valor testemunhal da expressão, o espetáculo peregrinou por diversas capitais brasileiras, foi apresentado em locais inusitados como circos e sindicatos, e tornou-se pioneiro de uma estratégia que se tornaria em breve usual entre os grupos de arte militante: ir à procura da classe social que protagonizava o drama. Alguns desses procedimentos de concepção e produção da obra dramática estão gravados como marca de origem nas peças subseqüentes de Guarnieri. Em primeiro lugar, o foco concentrado sobre a situação de classe das personagens e do drama que protagonizam. As situações, as opções morais, o ser das suas criaturas, só se concretiza dramaticamente na interação social.

Gimba, que estreou em 1959 em uma produção do Teatro Popular de Arte dirigida por Flávio Rangel, era um experimento no palco italiano que iluminava a vida da comunidade da favela carioca sob outro ângulo, o da marginalidade. A mitificação do transgressor, uma constante na experiência das comunidades pobres que até hoje intriga a sociologia bem-pensante, servia de pretexto para exaltar a potência criadora de uma comunidade excluída da riqueza e confinada nas encostas dos morros.

Com essas duas peças o dramaturgo era, aos 25 anos, um fenômeno, como nota Décio de Almeida Prado: ‘Em menos de um ano e meio de atividade pública como autor, Guarnieri já teve certamente mais espectadores do que a maioria dos nossos dramaturgos em toda uma existência dedicada ao teatro’.

EQUILÍBRIO

Com A Semente, peça que estreou em 1961 no Teatro Brasileiro de Comédia sinalizando uma alteração nos rumos de um conjunto até então de perfil culturalista, também dirigida por Flávio Rangel, a fase de caracterização, de namoro um tanto quanto idílico com as virtudes de proletariado, cedia lugar a uma impiedosa análise das virtudes e dos vícios da militância comunista junto ao operariado.

Em perfeito equilíbrio, os dois pratos da balança se ofereciam à apreciação do público. No protagonista Agileu Carraro, um sofrido militante curtido por 20 anos de luta, é notável a entrega ao bem-estar coletivo, o desprezo pela felicidade pessoal e a confiança inquebrantável no futuro. Mas são também traços inalienáveis dessa integridade entre teoria e prática a insensibilidade, a incapacidade para a relação afetiva e a argúcia do aproveitador que, em nome da ‘oportunidade política’, explora a dor dos seus companheiros de fábrica.

‘Política é incompatível com sossego!’ – afirma Agileu em uma reunião – ‘E pouco me importa que sua mulher esteja doente ou que seus filhos comam terra. Há muitas mulheres doentes e muitos filhos comendo terra. Muitos filhos mortos – e a hora é de ação.’

As crises internas do Partido Comunista, nessa ocasião disciplinado por uma orientação internacionalista nem sempre adequada à realidade brasileira, eram representadas por cenas que criticavam agudamente a burocratização. Por outro lado, a selvageria do comportamento patronal permanecia fiel ao realismo, mostrando que o simples cumprimento da legislação trabalhista em vigor (bem menos do que luta revolucionária) demandava dos trabalhadores uma luta permanente.

Pelo equilíbrio de forças e pelo perspectivismo consciente, que abordava a luta proletária pelo ângulo do afeto, incluía o ponto de vista das mulheres, detalhava a desvalorização do valor do trabalho e estabelecia, a partir desse patamar concreto, a discussão política, essa peça permanece até hoje como uma das mais complexas e perfeitas realizações do corpo da dramaturgia brasileira. Seus aspectos contingentes, ligados à existência de uma militância comunista, contribuíram para alijá-la do repertório contemporâneo.

Relida e reencenada hoje, no entanto, parece-nos de um vigor trágico e pode-se dizer que atualiza o conflito grego entre as exigências da polis e a necessidade individual. De qualquer forma, seus contemporâneos souberam reconhecer de imediato a importância da peça. De um lado da trincheira política, o Estado e a Igreja se obstinaram em condenar a peça enquanto, do outro, artistas, intelectuais e jornalistas se uniram para defendê-la.

DESAFIO

Falar abertamente sobre a atuação dos comunistas sob a batuta conservadora de Jânio Quadros e no interior da atmosfera fanática e dualista da Guerra Fria era, já nessa ocasião, um desafio considerável aos poderes estabelecidos. Em 1964, quando o Arena apresentava no seu repertório O Filho do Cão, uma peça que dava continuidade à investigação da realidade brasileira enfocando a exploração do misticismo em uma comunidade de agricultores miseráveis, a situação política do País se radicalizava institucionalmente por meio de um golpe militar.

Para Guarnieri, como de resto para todos os artistas e intelectuais da sua geração, os 20 anos da ditadura militar significaram ao mesmo tempo uma camisa de força imposta aos seus projetos originais e um estímulo para propor formas de comunicação que, de alguma forma, conseguissem driblar a mordaça.

Os musicais do Arena, obras em colaboração onde é possível distinguir a sua marca nas tônicas da poesia e na ênfase dada à esperança, abandonavam a trilha do realismo documental e enveredavam por narrativas de valor analógico. Arena conta Zumbi (1965), Tempo de Guerra (1965) e Arena conta Tiradentes (1967) consolidaram um novo tipo de musical brasileiro, com uma estrutura fluida e uma lírica combativa inspirada no modelo brechtiano, exortando à resistência (no caso dos dois primeiros espetáculos) e encontrando uma forma original para a autocrítica dissimulada da atuação da esquerda no caso de Arena conta Tiradentes.

RESISTÊNCIA

De 1964 a 1970, data em que a prisão e o exílio de Augusto Boal determinam o fim do núcleo ideológico do Arena, o dramaturgo Guarnieri praticamente se dissolve nesse empreendimento coletivo de resistência cultural. Escreve em conjunto as peças, compõe músicas em parceria e se responsabiliza pela interpretação de personagens com um talento que lhe garante até hoje um lugar incontestado na galeria dos grandes intérpretes do teatro brasileiro. Quem já teve o privilégio de ver no palco o ator Gianfrancesco Guarnieri não o esquecerá.

Talvez se deva a esse trânsito simultâneo entre o palco e a escrita – e não só ao treino forçado para driblar a repressão – a ênfase no simbólico das suas peças escritas após o fechamento do Teatro de Arena de São Paulo. Escreve peças menores, curtas e nitidamente circunstanciais, para expressar de modo direto os efeitos da opressão sobre a consciência e os hábitos de uma população mantida deliberadamente na irresponsabilidade política ou para retratar, sob a forma de vinheta, aspectos da experiência militante.

São desse teor duas peças curtas escritas para as ‘feiras de opinião’, espetáculos compostos de peças de diferentes dramaturgos. Mas, além da opinião, da reiteração do credo político e ideológico, dá continuidade a um projeto pessoal de fazer incidir o foco dramatúrgico sobre a realidade que lhe é contemporânea, prescindindo cada vez mais do instrumento do realismo e incorporando ao texto aberturas para a música, para a expressão poética e para a inventividade plástica da encenação.

REDENÇÃO

Essa linguagem meio cifrada, que oculta para estimular a atividade analógica do público e, em grande parte, para preservar a comunicação emocional das obras, mantém-se até hoje como um traço característico dos textos de Guarnieri. Botequim, Ponto de Partida, Pegando Fogo Lá Fora, Anjo na Contramão e A Luta Secreta de Maria da Encarnação, que estreou em 2001, são, vistas como um conjunto, alegorias não só dos acontecimentos que moldaram a vida do País no último quartel do século 20, mas também a história íntima de todas as lutas travadas pela redenção dos oprimidos. Não são 20 ou mesmo 40 anos que estas peças simbolizam, mas ‘Séculos de luta, mulher! Séculos de luta que ninguém desfaz!’’



PROJETO DA FENAJ
José Maria Mayrink

Autor de projeto sobre mídia agora defende vetos

‘Surpreso com as críticas ao projeto de lei de sua autoria, o PLC 79/2004, sobre a regulamentação do exercício da profissão de jornalista, o deputado Pastor Amarildo (PSC-TO) sugere que o texto seja sancionado com vetos, depois de passar por uma revisão na Casa Civil da Presidência da República.

‘Espero que o presidente Lula vete o que julgar necessário, como, por exemplo, aqueles casos mais questionados – a exigência de curso superior e diploma para comentarista, arquivista e ilustrador’, disse o deputado ao Estado. Lula tem prazo até o dia 28 para sancionar ou vetar o PLC 79.

Técnico em Contabilidade, Estatística, Economia Doméstica e Administração e licenciado em Teologia em sua igreja, a Assembléia de Deus, Amarildo Martins da Silva, 40 anos, esclarece que não tem nenhuma ligação com jornalismo e que, se tomou a iniciativa de apresentar um projeto para atualizar o Decreto-Lei 972, de 17 de outubro de 1969, foi para valorizar a profissão.

‘Em vez de ter apenas um registro, o jornalista precisa de uma regulamentação’, argumenta o deputado, acrescentando que por essa razão apresentou o projeto na Câmara. ‘Pedi à assessoria legislativa da Câmara que me ajudasse e ela me preparou uma espécie de pré-projeto, pois é assim que a coisa funciona aqui’, informou.

Pastor Amarildo insiste que não discutiu a questão com a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). Ao saber que a entidade o desmente, alegando que ele ‘está enganado, ou foi mal informado, ou mente’, diz que não pode aceitar nenhuma dessas hipóteses. ‘Devem ter entregue sugestões à assessoria legislativa da Câmara, não foi a mim’.

Diante da observação de que, como lembrou a Fenaj em seu site, sua proposta repete, com ligeiras modificações, um projeto apresentado em 1989 pela deputada e jornalista Cristina Tavares, já falecida, Pastor Amarildo garantiu que não conhecia essa versão. ‘Eu me baseei no que me apresentaram (os assessores técnicos), não sabia desse projeto. Pode ser que essa federação, a Fenaj, tenha feito isso. Estranho que o projeto tenha tramitado por quatro anos, muito tempo, e ninguém me tenha procurado. Os interessados poderiam ter sugerido emendas’.

De acordo com o arquivo da Câmara, a Proposição PL 2304/1989, da deputada Cristina Tavares (PSDB-PE), definia 25 funções a serem exercidas por jornalistas. Os 23 itens que constam do projeto do deputado Pastor Amarildo (ele amplia de 11 para 23 as atividades privativas de jornalistas, ao alterar o decreto-lei de 1969) coincidem com a lista da proposta de 1989.’



BLOGOSFERA
Daniel Piza

Dos sarrabulhos aos blogs

‘A noção comum diz que folhetins eram os romances publicados em capítulos, como os de Alexandre Dumas e Eugène Sue, tão populares em suas épocas quanto as telenovelas ou ‘sitcoms’ hoje em dia. Mas folhetins eram também as seções, em geral no rodapé da primeira página e com corpo tipográfico maior, que misturavam crônicas sobre as artes, notas, aforismos e até receitas e anedotas políticas. Foi nessa época que os jornais, até então muito parecidos com livros ou panfletos, começaram a ganhar páginas de ‘variedades’ e as revistas ilustradas começaram a surgir com o mesmo cardápio, bastante voltado ao público feminino então em expansão; a inglesa The Spectator e a brasileira O Espelho, por exemplo, falavam de moda e dos costumes urbanos no mesmo espaço em que discutiam Balzac, Shakespeare ou Darwin.

Foi dessa miscelânea de temas e gêneros, cuja proposta era tirar os debates das academias e trazer para os cafés, que nasceu o jornalismo cultural. Martins Pena, um dos primeiros grandes articulistas nacionais, dizia que os folhetins de não-ficção eram ‘sarrabulhos lítero-jornalísticos’ (sarrabulho era um prato português feito com miúdos de porco, antecessor da feijoada, e metáfora de bagunça, mistura). Eram saladas em que os frutos dos assuntos ‘intelectuais’ como letras e filosofia se embaralhavam com as folhas do que era considerado ‘fútil’, como o último estilo das saias de tafetá. Boa parte da modernidade pode ser explicada por essa busca de aproximar, como dizia Nietzsche, o conhecer e o viver. Idéias fazem parte do cotidiano; valores estão em jogo constante na sociedade, não pairam num plano abstrato aonde só os doutos chegam. Gente como Karl Kraus, Bernard Shaw e H.L. Mencken é produto dessa mentalidade. Até Barthes e Adorno sabiam que a crítica cultural ou fala dos fenômenos coletivos ou morre.

Ao longo do século 20, com a modernização dos jornais, que se tornaram saudavelmente mais objetivos e autônomos, e a tentativa de conversão da crítica em ciência acadêmica, com grandes contribuições ao estudo dos livros e das artes, algumas coisas se perderam sem necessidade. Com o atropelo da indústria do entretenimento, o jornalismo cultural começou a ficar sem impacto, submetido à agenda de eventos, e os textos se tornaram cada vez mais burocráticos e balcanizados. O tom autoral – em que se pode reconhecer o autor mesmo sem olhar sua assinatura -, a fusão de gêneros e os diálogos entre as artes e os fatos, como faziam os velhos e bons folhetins (Ao Correr da Pena, de José de Alencar, A Semana, de Machado de Assis, etc.), viraram minoria. Mesmo na Alemanha, onde as páginas culturais dos jornais até hoje se chamam Feuilleton, resta pouco dessa liberdade temática e estilística.

No Brasil, as crônicas passaram a abandonar os debates da hora, coisa que só Rubem Braga era capaz de fazer sem cair no vazio, e a análise crítica foi se tornando exclusiva dos professores universitários. Hoje é comum ouvir que jornais devem informar, e não formar, como se essas esferas fossem separáveis, e que um sujeito que trata de literatura, artes ou política não deve ‘baixar’ a temas como futebol, telenovela e moda. Machado, que inovou ao levar tudo isso para a ficção, dizia que não agradaria nem aos graves nem aos frívolos, as duas modalidades dominantes na opinião pública. Mas todos que ainda escrevem com propriedade sobre diversos assuntos – Luis Fernando Verissimo, Arnaldo Jabor, Roberto Pompeu de Toledo, Marcelo Coelho e outros, para ficar por aqui – não raro são os mais lidos, e pela mesma razão.

Quanto a mim, o que sempre me fascinou na tríade Millôr Fernandes, Paulo Francis e Ivan Lessa, que coincidiu apenas no Pasquim, foi que fizessem isso na mesma coluna, recorrendo à combinação de textos longos e breves (no caso de Millôr, junto a desenhos ainda subestimados como arte visual), em versões modernas do folhetim oitocentista. E por isso gosto cada vez mais desse novo-velho gênero que é o blog, o diário virtual, feito de ‘posts’ ou notas (‘Tomar notas é mais difícil que escrever’, dizia Ivan Lessa) organizadas por data, que estou praticando desde o mês passado. Há blogs temáticos, como o de Alex Ross sobre música ou Instapundit (Glenn Reynolds) sobre política, para citar dois americanos que acompanho, e há blogs de criação literária, como o do poeta Fabrício Carpinejar. Mas o espírito que rege a todos é o da reação ao dia-a-dia, desprendida, pessoal, conversacional, de um cidadão que vive sob o bombardeio da mídia e sabe que os nexos não se bastam em disciplinas.

Era uma questão de tempo para que emplacassem, graças às centrais da rede virtual que são ainda os grandes grupos de comunicação, e se tornassem viáveis para quem rejeita escrever de graça. Como Ricardo Anderáos disse no caderno Link da semana passada, é impossível não se viciar. Trabalha-se muito; tudo que você vê, lê ou escuta pode ser material; mas anos de estudo sobre cada tema devem convergir para que a opinião emitida tenha fundamento, e não seja o palpite, a rotulação emotiva típica dos adolescentes e, pois, de muitos blogs por aí. E, como disse Juca Kfouri, agora blogueiro, é preciso maturidade para assimilar os golpes baixos que muitos leitores são capazes de dar, ao trocar argumentos por insultos (ou então, em vez de trocar de leitura, querer que o autor perca o emprego), mesmo que se possa filtrá-los. Mas, ao contrário dos folhetins e pasquins de antanho, a vantagem é justamente criar um ambiente de discussão nesse deserto de idéias que é a grande mídia.

Quem sabia que o espírito ensaístico e as saladas culturais brotaram juntos era George Orwell, um prosador como poucos no jornalismo. São para comemorar os relançamentos de seu Lutando na Espanha (Globo), que contém Homenagem à Catalunha, seu vivíssimo livro-reportagem de 1938 sobre a Guerra Civil Espanhola, e de Na Pior em Paris e Londres (Companhia das Letras), relato inesquecível de 1933 sobre sua convivência com mendigos na depressão.

Outro da estirpe era Otto Maria Carpeaux, novamente a estrela dos volumes As Obras-primas Que Poucos Leram, organizados por Heloisa Seixas (Record), dedicados a poesia e teatro (vol. 3) e não-ficção (vol. 4). Escrevendo sobre Dante, Büchner, Villon ou Nietzsche, Carpeaux é o explicador perfeito.

Trabalho de coleta admirável é também o de José Domingos de Brito, que acaba de publicar a segunda edição de Por Que Escrevo? e a primeira de Como Escrevo? (editora Novera), reuniões de frases célebres e depoimentos sobre os temas.

DE LA MUSIQUE (1)

Se lançado em outro país por músicos locais, o CD de João Donato e Paulo Moura, Dois Panos para Manga (da ótima gravadora Biscoito Fino, que dá provas do grande momento que a música instrumental brasileira vive no momento), seria celebrado à exaustão. O repertório tem clássicos brasileiros como Copacabana (João de Barro e Alberto Ribeiro), americanos como Swanee (George e Ira Gershwin) e That Old Black Magic (Harold Arlen e Johnny Mercer) e faixas da própria dupla, como Pixinguinha no Arpoador, para citar as interpretações de que mais gostei, por sua dose de inventividade e frescor. Donato e Moura contrariam a moda corrente de gravar ‘standards’ com harmonia convencional ou de tratar a bossa nova como música ambiente de novela.

DE LA MUSIQUE (2)

Fiquei impressionado ao tomar conhecimento dos projetos de óperas, operetas ou récitas propostos para o Theatro São Pedro abrigar em 2007. A variedade é imensa: vai de obras menos conhecidas de Orff e Rossini a Gilbert e Sullivan ou Benjamin Britten, e até se sente falta de outras idéias convencionais como Lucia di Lamermoor. Existe, portanto, uma demanda reprimida por encenações operísticas no Brasil. Por sinal, o teatro começa na próxima semana – quando apresenta O Elixir do Amor – um programa de ‘grandes vozes’, com ‘master classes’ de veteranos como Evgeny Nesterenko e Niza de Castro Tank, que são o embrião de um breve estúdio de ópera, dedicado a formar cantores líricos.

UMA LÁGRIMA

Para Raul Cortez, morto aos 73 na última terça. Um bom símbolo de sua carreira é o fato de ter trabalhado com Antunes Filho e com Zé Celso, considerados ‘antípodas’ estéticos no teatro brasileiro. Fez muitas novelas sem cair como tantos outros – Tony Ramos, Antonio Fagundes – na atuação em piloto automático, ou no representar a si mesmo. E no cinema deixou muitos personagens marcantes, o último dos quais o pai de Lavoura Arcaica. Luiz Fernando Carvalho conta que Raul Cortez quase abandonou a filmagem, devido às exigências do texto de Raduan Nassar, mas, depois de ler uma carta do diretor, decidiu continuar e no dia seguinte realizou aquela cena antológica do sermão ao filho. Ele tinha uma combinação única de elegância com malícia, e se buscou uma carreira variada não foi para currículo, mas para aprendizado. Tanto é que foi melhorando com a idade, enquanto seus contemporâneos pioravam.

POR QUE NÃO ME UFANO

Importou-se o debate sobre Israel com a mesma polarização que o asfixia. O Hezbollah, apoiado por Síria e Irã, representa o que há de pior no radicalismo islâmico. Mas a reação de Israel não mede conseqüências; dizem que o objetivo é desmantelar o arsenal do grupo no sul do Líbano, mas não consigo entender como isso explica a destruição de tantos prédios e vidas civis em Beirute. Os EUA falam em intervir pela paz; no entanto, quase ninguém se dá ao trabalho de notar que a escalada de agressões deriva da invasão ao Iraque, que, em vez de espalhar democracia pelo Oriente Médio, dá força a líderes medievais como Ahmadinejad, para quem Israel nem sequer deveria existir.

Aforismos sem juízo

O caminho do meio é o da vertigem, não o da virtude. Só nos extremos o conformismo vence.’



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Folha de S. Paulo – 1

Folha de S. Paulo – 2

O Estado de S. Paulo – 1

O Estado de S. Paulo – 2

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