Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O Globo



CRISE POLÍTICA
Luis Fernando Verissimo

Os Invisíveis

‘Já contei, mais de uma vez, que comecei no jornalismo em Porto Alegre, em 1967, fazendo até horóscopo. No velho ‘Zero Hora’, não confundir com o atual ‘Zero Hora’. O jornal tinha, então, uma existência precária. O que era ruim – você nunca sabia se e quando ia ser pago – e bom, pois as carreiras dentro da redação eram vertiginosas. Pouco tempo depois de começar como estagiário (naquele tempo ainda não precisava ter diploma) fazendo copydesk , virei editor de ‘frescuras’ (cultura, lazer, sociedade – e horóscopo), depois editor nacional e, logo em seguida, editor internacional, não por qualquer mérito meu, mas porque faltava gente. Tanto que tinha voltado a ser copydesk quando me convidaram para substituir um colunista do jornal que passara para a concorrência. E comecei a ter um espaço assinado, e meus primeiros encontros pessoais com o Indizível.

Como editor nacional eu tinha orientação superior sobre o que podia e não podia sair no jornal – um problema que nunca enfrentara fazendo o horóscopo, onde entrava de tudo, às vezes até astrologia. Com a coluna, me obrigava a testar, diariamente, os limites da opinião assinada no Brasil da ditadura. O Indizível tomava várias formas, abstratas – nunca falar de ‘militar’, maneirar na crítica ao governo – e personalizadas: Brizola, nem pensar, Dom Hélder Câmara, tá doido. Fidel, só contra. Mesmo trabalhando em jornal, com acesso a informações que não circulavam, e com colegas e amigos participando da oposição ativa ao governo militar e sendo perseguidos, presos ou exilados, tinha-se uma idéia difusa do que realmente acontecia, do que o Indizível encobria. Só se soube da guerrilha no Araguaia quando ela não existia mais, por exemplo. E o Indizível era povoado de vultos maldelineados, de cuja atividade também só se ficou sabendo depois da sua derrota. Eram os que tinham optado pela resistência armada e oficialmente não existiam, os Invisíveis. Durante muitos daqueles anos convivemos com um Brasil Indizível e um Brasil Invisível apenas adivinhados. Era mais ou menos inevitável que os Invisíveis se transformassem em mitos, mesmo para quem não concordasse com a opção armada. A própria invisibilidade favorecia o mito.

Me lembrei daquele tempo ouvindo a defesa do Zé Dirceu na Câmara. Ele tinha se tornado um dos mais visíveis dos ex-Invisíveis, talvez estivesse pagando por ter se tornado visível demais. Não pensei na sua culpa ou inocência. Pensei, banalmente, sobre o que o tempo e a História fazem com os mitos. O tempo geralmente os destrói. A História às vezes os salva.’



Aydano André Motta

‘Não votei no Lula para duplicar o superávit’

‘O homem que mais vende livros no Brasil prega um pouco de organização na permanente orgia em que vive o país. Para a missão, escala o ministro Antonio Palocci, que, assim, ‘teria de deixar a Fazenda’. A palavra, no plural, batiza a nova coletânea de crônicas de Luis Fernando Verissimo, que está sendo lançada pela Objetiva. Em entrevista por e-mail, ele bate no presidente Luiz Inácio Lula da Silva por causa da obsessão com o superávit primário, mas enxerga vantagens na desilusão com o PT. ‘Uma das maneiras de não perder a esperança é estar sempre disposto a se desiludir’, ensina o mestre, apostando que ‘de ilusão em ilusão’ o Brasil e os brasileiros chegarão a algum lugar. ‘Ou nossos netos chegarão’.

O Brasil é mesmo uma orgia que precisa de organização? Ou é o caso de radicalizar na bandalheira?

LUIS FERNANDO VERISSIMO: Acho necessário um mínimo de método, até na loucura.

Como organizar essa nossa orgia? Quem deve ser o encarregado da tarefa?

VERISSIMO: O Palocci. Assim ele terá que deixar o Ministério da Fazenda.

Muitos leitores acham que o senhor está desencantado com o governo Lula. Ele deve ser eleito novamente?

VERISSIMO: Meu desencanto vem desde o começo, quando anunciaram que a prioridade seria duplicar o superávit primário. Não votei no Lula para duplicar o superávit primário.

Tentamos um sociólogo e agora um operário. Chegou a hora de um técnico de futebol no poder? Se o Parreira ganhar o hexa, o ‘caminho natural’, como dizem os políticos, é o Planalto?

VERISSIMO: Prefiro o Felipão. Mas espera aí, o Felipão defende o Pinochet. Esquece, esquece.

A política brasileira ‘é assim mesmo’ (como repetem vários petistas) ou existe um jeito de fazer diferente?

VERISSIMO: O PT prometeu que faria diferente, e não fez. Mas uma das maneiras de não perder a esperança é estar sempre disposto a se desiludir. De ilusão em ilusão a gente chegará a algum lugar. Ou nossos netos chegarão.

O senhor acredita na existência do mensalão?

VERISSIMO: A alternativa que resta qual é, não acreditar no Roberto Jefferson? Impensável.

Qual é o presente de Natal ideal para os brasileiros (além, claro, do seu livro)?

VERISSIMO: Dois livros meus.

‘A reacionarada está em alta. É a vez deles’

É chocante ouvir de petistas frases como ‘Caixa dois não é novidade, todo mundo faz’?

VERISSIMO: Todo mundo fez. Só que fez com mais cuidado do que o PT. E era gente fina, que falava português corretamente, o que já era meio caminho andado para o perdão.

Palocci ou Dilma?

VERISSIMO: Dilma.

A crise da esquerda no mundo inteiro e a do governo Lula, em particular, geraram no Brasil o que Chico Buarque chamou, meses atrás, de ‘direitismo de salão’. As pessoas parecem gostar de quem adota essa atitude. O senhor concorda com ele? Ser conservador está na moda?

VERISSIMO: A reacionarada está em alta. Tudo bem. É a vez deles.

A gripe do frango, o Bush, o PIB e, para completar, um argentino como melhor jogador do Brasileiro: é castigo demais ou nós fizemos por merecer?

VERISSIMO: E ainda por cima, a Jacqueline Bisset envelheceu!

Com a pancadaria nos banlieus, a idéia de que ‘nós sempre teremos Paris’ também caiu por terra? Até isso?

VERISSIMO: Paris continua lá, de pé. Só tremendo um pouco.

A Velhinha de Taubaté continua morta? Diante dos fatos recentes, ela mandou alguma mensagem do além? Há possibilidade de ressurreição?

VERISSIMO: Parece que guardaram o DNA dela, para uma ocasião mais feliz.

Por fim I: e o Internacional, hein?

VERISSIMO: Pois é. Depois a gente fala em separar o Rio Grande do Sul do Brasil e nos chamam de radicais.

Por fim II: e o Grêmio, hein?

VERISSIMO: Quem?’

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Irracionalidades

‘A tentação demoníaca (para alguns) do excesso, da entrega sem pudores nem temores, do mergulho de cabeça na festa radical. ‘Orgias’, reunião de crônicas de Luis Fernando Verissimo, trata dessas irracionalidades, das quais costuma sobrar arrependimento na manhã seguinte – mas quem se importa? O livro é o mais novo, no relançamento da obra revista e atualizada do escritor gaúcho e colunista do GLOBO, feito pela Editora Objetiva.

‘Quando se diz que o Brasil está parecendo uma orgia, não se está sendo exato. De certa forma isso aqui sempre foi uma orgia, uma simpática convivência de apetites mais ou menos desenfreados, mais ou menos safados. O que mudou é que não parece haver mais a menor coerência no deboche’, observa o autor, na crônica que abre o livro. ‘Quer dizer, orgia está certo. Mas um mínimo de organização!’

Os textos da mais nova obra de Verissimo foram colhidos de sua vasta produção, e selecionados a partir de um trabalho que o escritor desenvolveu ao longo dos últimos 20 anos. São ‘Orgias’ no sentido amplo. Nelas, ele passeia por réveillon, carnaval e dias ensolarados na praia, mas visita cenários improváveis para o tema, como festas infantis.’



CENSURA
O Globo

Fenaj e ANJ criticam decisão judicial que impôs censura à Folha Online

‘O presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Sérgio Murillo de Andrade, classificou ontem de ‘censura prévia’ a decisão da Justiça Federal em São Paulo de proibir a Folha Online, serviço de notícias na internet da ‘Folha de S.Paulo’, de divulgar informações sobre o processo criminal que apura o caso de espionagem envolvendo a contratação da empresa Kroll pela Brasil Telecom, com o intuito de investigar a concorrente Telecom Itália. Sérgio Murillo disse que a Fenaj levará dossiê com os principais casos de censura prévia ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para o conselho editar resolução para tentar evitar interferências indevidas do Judiciário na imprensa.

A Associação Nacional de Jornais (ANJ) também condenou a decisão do juiz Silvio Luis Ferreira da Rocha, da 5 Vara Federal Criminal de São Paulo. A entidade enfatizou que a censura prévia contraria a Constituição.

Fenaj: ‘Caso tem que ser denunciado e condenado’

Sérgio Murillo destacou que cabe à Justiça decidir sobre a reparação de eventuais danos provocados pela imprensa, mas não impedir previamente a divulgação de informações:

– É mais um caso de censura prévia que tem de ser denunciado e condenado. A Justiça está gradativamente reconstituindo a censura prévia no Brasil. Há prejuízo aos jornalistas e à empresa, mas o maior atingido por arbitrariedades do Poder Judiciário é a sociedade, que tem direito a informações de forma livre e sem qualquer constrangimento – disse Sérgio Murillo.

Segundo a ‘Folha’, a decisão foi tomada em 21 de novembro e só chegou à empresa anteontem. O processo tramita sob sigilo judicial e tem entre seus réus o empresário Daniel Dantas. A direção do jornal informou ontem que vai recorrer. O ofício com a sentença foi encaminhado à direção do jornal pela juíza substituta Margarete Morales Simão Martinez Sacristan.

‘A Folha acata a determinação da Justiça, mas discorda da decisão e dela vai recorrer, por considerá-la uma afronta ao direito do público de informar-se livremente’, disse a direção da empresa ontem, em nota. Enquanto recorre da decisão, o jornal retirou da internet 165 páginas (108 da versão impressa publicada na internet e 57 do site Folha Online).

A juíza informa que a Justiça Federal acolheu solicitação de ‘um dos envolvidos’ no processo criminal número 2004.61.81.001452-5, que tramita em segredo. Nele, além de Daniel Dantas, são réus Carla Cico, ex-presidente da Brasil Telecom, e 13 outros diretores e funcionários da empresa. Todos são suspeitos de terem participado de um processo de espionagem que teria atingido autoridades do primeiro escalão do governo.

Processo apura uma série de crimes

Na sentença, o juiz determina que ‘cesse imediatamente qualquer forma de divulgação de dados pertinentes aos fatos e às pessoas envolvidas no processo em questão, seja por intermédio de notícia jornalística, televisiva, rádio ou qualquer outro veículo de divulgação, inclusive por meio de página da rede mundial internet, mantida por essa empresa’.

No processo, apura-se vários crimes, como quebra de sigilo telefônico, falso testemunho, falsa perícia, crimes contra a administração pública, crimes contra a paz pública e violação do segredo profissional. Já foram ouvidos funcionários da Kroll envolvidos na espionagem, além de servidores da Receita Federal, da Caixa Econômica Federal e da Polícia Civil paulista. Dois diretores e três funcionários da Kroll já foram presos na sede da empresa em São Paulo, onde foram apreendidos também documentos sobre a espionagem da Kroll.’

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No ES, justiça autoriza grampo na imprensa

‘A Fenaj e a ANJ também criticaram ontem a autorização da 4 Vara Criminal de Vila Velha (ES), prorrogada depois pelo desembargador Pedro Valls Feu Rosa, do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, para a Polícia Civil a realizar a escuta telefônica de jornalistas e funcionários da Rede Gazeta de Comunicações. A rede engloba as redações da Rádio CBN no Espírito Santo, do jornal ‘A Gazeta’ e da TV Gazeta, afiliada da TV Globo em Vitória.

As gravações foram realizadas durante a investigação do assassinato do juiz Alexandre Martins, em março de 2003. O pedido de autorização de grampo, feito pela Polícia Civil e o Ministério Público, informava que o número de telefone em questão seria de uma empresa de fachada de um dos acusados do crime. O número, porém, era o do telefone central da Rede Gazeta. De acordo com a ANJ, a autorização contraria a Lei de Imprensa, que garante ao jornalista manter a fonte em sigilo.

‘O caso da escuta telefônica é estarrecedor e nos remete aos piores momentos do autoritarismo, quando a privacidade das pessoas e empresas era invadida pelo aparato estatal’, diz a nota divulgada pela ANJ. O desembargador Feu Rosa informou que autorizou a escuta porque foi induzido ao erro. O secretário de Segurança do Espírito Santo, Rodney Rocha Miranda, também afirmou que a inclusão do telefone foi um erro e disse que vai mandar investigar o caso para saber quem o cometeu.’

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O Globo

Sábado, 10 de dezembro de 2005



JORNALISMO LITERÁRIO
Ascânio Seleme

A história verdadeira de dois impostores

‘Trata-se da história de dois mentirosos. Um dos mais renomados jornalistas da ‘New York Times Magazine’ é demitido por inventar um personagem para uma grande reportagem que havia feito na África sobre trabalho escravo de meninos. O jornalista Michael Finkel reuniu diversos meninos que ouviu ao longo de três semanas de apuração em um só personagem. A ele deu um nome, Youssouf Malé, e, pior ainda, deu-lhe uma cara ao escolher um dos muitos meninos ouvidos e fotografados para encarnar o inventado Youssouf.

Não é preciso ser jornalista para saber que a história inventada seria natural e rapidamente descoberta. Sobretudo pelo fato de ela ter sido publicada na ‘New York Times Magazine’. O outro mentiroso é um jovem testemunha de Jeová acusado de matar sua mulher e seus três filhos, de 4, 3 e 2 anos, e fugir para o México. Em Cancún, Christian Longo, o acusado, apresentou-se a todos que conheceu como Michael Finkel, jornalista do ‘New York Times’.

Os dois mentirosos, que obviamente não se conheciam, acabaram entrelaçando suas vidas, pelo menos um ano de suas vidas, a partir do momento da prisão do acusado de assassinato. Longo foi preso na mesma semana em que Finkel foi demitido. O jornalista estava em casa, aguardando a publicação no dia seguinte da nota de redação anunciando a sua demissão, quando recebeu telefonema de um outro jornalista dizendo que um acusado de assassinato acabara de ser preso no México enquanto se fazia passar por Michael Finkel, ele próprio.

A história dos dois mentirosos, contada por Finkel num texto empolgante e envolvente, com suspense crescente que mantém o leitor preso ao livro, querendo ler logo o capítulo seguinte, nasceu de um momento de desespero do jornalista. Finkel que, segundo ele mesmo, tinha ‘um dos melhores e mais invejados empregos do mundo’, via sua carreira desmoronando e percebia que seu futuro estava comprometido.

No auge da sua crise pessoal surge a história que poderia restaurar, se não a sua carreira jornalística, pelo menos o espaço editorial que lhe permitisse continuar exercendo a sua inquestionável capacidade de escrever, de escrever bem. Ao saber da existência de um assassino que, foragido no México, usava seu nome porque gostava dos textos que ele escrevera na revista do ‘New York Times’, Finkel começou a encontrar uma alternativa para seu destino.

A partir desse momento, por iniciativa do jornalista, Finkel e Longo se encontraram algumas vezes, enquanto o segundo aguardava julgamento em um presídio no estado do Oregon, onde ocorreu o crime, e trocaram uma frenética correspondência que deu a Finkel um acervo impressionante sobre a vida familiar de Longo. As cartas do preso ao jornalista eram escritas aos metros ou quilos. Uma vez por semana, durante mais de 50 semanas, Longo ligava a cobrar para Finkel e com ele falava uma hora, prazo que tinha para usar ao telefone de acordo com as regras do presídio.

Relato lembra ‘A sangue frio’, de Truman Capote

É desse compêndio de conversas e cartas que Finkel escreve a trajetória de Christian Longo desde o momento em que conheceu a sua mulher até a morte dela e de seus três filhos. O relato é pungente e, pela sua dinâmica mais do que pela sua qualidade, embora esta seja muito boa, lembra em alguns momentos o histórico ‘A sangue frio’, do também jornalista Truman Capote, que há 40 anos inaugurava um tipo novo de estilo literário, o romance sem ficção.

Da mesma forma que Capote, que em 1966 tornou-se amigo íntimo do assassino Perry Smith, Finkel não esconde em seu livro o encanto que sentiu por Christian Longo. Longo nega inúmeras vezes que tenha sido ele o assassino de sua mulher e seus três filhos, embora todos os indícios e testemunhas apontem para ele. O desencadear de sua vida, contada em detalhes por Finkel, também parece querer provar que Longo é mesmo o assassino. A verdade vai ser revelada nos últimos capítulos. Por isso também, além do bom texto e da crueldade da história, o livro tende a grudar nas mãos do leitor.



André Machado

Um bom guia para conhecer todas as facetas de João do Rio

‘João do Rio poderia ser definido como um autor datado? Poderia. Mas é justamente este o seu charme, e o que lhe dá, também, dimensão histórica. Se por um lado o dândi número um do Rio da belle époque é fortemente influenciado por Oscar Wilde e as filigranas de seu texto sabem por vezes a século XIX, por outro, ao fazer da crônica disfarçada de reportagem (ou da reportagem disfarçada de crônica) seu veículo maior, João do Rio se mescla como ninguém ao presente, ao efêmero e tece um quadro inesquecível do nascer do século XX na cidade que foi (e ainda é) a maior vitrine brasileira.

Renato Cordeiro Gomes, professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-RJ, reúne nesta antologia de textos de Paulo Barreto (nome verdadeiro de João do Rio), de maneira exemplar, as diversas facetas do jornalista-escritor. (Na introdução, Renato lembra que Drummond o definiu como escritor-jornalista, mas ao percorrer os textos de João do Rio não é difícil perceber que o jornalismo, a observação, é o recheio que torna seus textos mais saborosos e às vezes o salva um pouco do próprio estilo.)

Estão lá o cronista da época do ‘bota-abaixo’ de Pereira Passos, falando das novidades da era do automóvel, do cinematógrafo e da ‘pressa de acabar’ – dolorosa moléstia de que os modernos sofrem -; o repórter que mostra, por trás do Rio que se quer Paris a miséria persistente, em obras como ‘Sono calmo’, ‘As mulheres mendigas’ e ‘Os trabalhadores de estiva’; o dândi elegante, presente na seção ‘Frívola City’ da antologia; e o autor de frases e reflexões como ‘Só há uma coisa mais desagradável de ser vista que a penúria: a mediocridade. A penúria causa medo. A mediocridade causa medo e raiva, porque a mediocridade é sempre feliz’. Pior que é.

O vislumbre de uma favela no Rio de 1911

A antologia é perfeita para quem deseja se iniciar no universo de João do Rio e conhecer um pouco de cada vertente. E engana-se quem pensa que encontrará somente o Rio antigo nos parágrafos. Neste momento em que se volta a discutir a questão da favelização, cumpre ler, por exemplo, ‘Os livres acampamentos da miséria’, em que já se vislumbra o germe de uma favela no alto do Morro de Santo Antônio. De onde, escreve o cronista, ‘imaginei chegar de uma longa viagem (…) pelo arraial da sordidez alegre, pelo horror inconsciente da miséria cantadeira, com a visão dos casinhotos e das caras daquele povo vigoroso, refestelado na indigência em vez de trabalhar, conseguindo bem no centro de uma grande cidade a construção inédita de um acampamento de indolência, livre de todas as leis.’ Isto foi publicado em 1911, e é a visão do dândi: favela, sabemos, nunca foi sinônimo de preguiça.

Renato Cordeiro Gomes faz uma introdução em que apresenta o homem e seu tempo, mostrando a fronteira entre o artista e o repórter e fornecendo uma cronologia compreensiva, ainda que curta, já que João do Rio morreu dentro de um táxi, de infarto do miocárdio, em 1921, com apenas 39 anos. Mas, como diria o próprio João, ‘partir é o verbo que pauta a vida e a desagregação que ela explica’.’