Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O Estado de S. Paulo

MEMÓRIA / ALEXANDER SOLJENITSIN
Gilles Lapouge

Soljenítsin, a alma da velha e eterna Rússia

‘Corria o ano de 1975 quando conheci Alexander Soljenítsin, o escritor russo morto há uma semana. Eu já havia lido Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, obra-prima que nos mergulha no inferno dos campos de trabalhos forçados por meio das provações do camponês Denisovich. Gostei. Mas para abarcar a magnitude da tragédia russa, esperei alguns anos até O Arquipélago Gulag ser lançado na França.

O historiador Angelo Segrillo discute o legado de Soljenitsin

Eu reagi como muitos, muito lentamente. Para que o Ocidente tivesse a medida do horror, foi preciso que um escritor nos ensinasse o nome do horror, Gulag, e nos permitisse ver o invisível daqueles tempos – os campos de trabalhos forçados.

Em 1974, Soljenítsin, que perdera o apoio de Nikita Kruchev, pois este havia sido deposto e substituído por Leonid Brejnev – que detestava o escritor -, foi expulso da União Soviética. O proscrito passou então alguns meses na Suíça antes de seguir para os Estados Unidos. Foi nessa ocasião que eu o vi.

Naquela época, eu participava toda semana de um programa sobre literatura na TV, Apostrophes, de Bernard Pivot. Pivot convidou Soljenítsin. Ele veio. Pela primeira vez no Ocidente, eu creio, aparecia o rosto do autor do Gulag.

Do que foi dito naquela noite, pouco me recordo. A presença física daquele homem era esmagadora. Poderia dizer-se que era alguma coisa pertencente à natureza, uma árvore, um rochedo gigante. Ou uma catedral. Austero, inspirado, e, de vez em quando, explosões de riso. No set, todos estavam intimidados. Pivot fez uma bela entrevista. Eu permaneci no meu canto, quase mudo. Havia dois outros convidados, Jean d?Ormesson, do Le Figaro, e Jean Daniel, do Nouvel Observateur, mais aguerridos, o que lhes permitiu fazer melhor figura. Daniel tentou obter de Soljenítsin uma condenação da guerra que a França movia contra os nacionalistas argelinos. Em vão.

Durante a transmissão e depois, Soljenítsin nos contou o seguinte: em um daqueles campos, ele escrevia, em folhas recuperadas, textos breves, fragmentos, poemas, mas não podia guardá-las por causa das buscas. Assim, ele as lia e relia e, depois de memorizá-las bem, as comia. Essa lembrança me impressionou: comer seu próprio pensamento para não o entregar ou perder.

Mais tarde, no enorme A Roda Vermelha, uma personagem diz: ‘Já não tenho acesso às bibliotecas públicas. Os arquivos ficarão fechados para mim até a minha morte. Mas encontrarei na taiga uma casca de pinheiro ou de bétula. Meu privilégio, nenhum espião me tirará: o cataclismo que experimentei em minha pessoa e vi nas outras pode me soprar muitos achados sobre a história.’

Em 1976, Soljenítsin partiu para Vermont, nos EUA. Ali, ele morava em uma casa cercada de pinheiros e bétulas como na Rússia. Ele se recusou a aprender inglês. Desprezava o ‘modo de vida ocidental’ e vociferava contra os EUA. Em 1994, ele finalmente voltou à Rússia.

Era um combatente que voltava. Ele vituperava Boris Yeltsin, a nova Rússia, desprezava Mikhail Gorbachev que, no entanto, participara da destruição da URSS. Ele não mudara: uma vez ‘imprecador’, sempre imprecador! Mesmo com o Gulag extinto, Soljenítsin pratica o incansável anátema.

Aqueles anos de exílio, mais os de retorno à terra russa, foram objeto de lamentos, indignações, acusações, mesmo da parte dos que admiravam a contribuição do ‘colosso’ para a extinção da URSS. A partir de seus novos livros e de suas conferências, ele completava a estátua de um homem intacto aos olhos do qual verdadeiramente nada encontra graça, e principalmente o Ocidente, imoral, fútil, glutão, amante de música ruim.

Henry Kissinger precipitou-se e pediu para Gerald Ford não recebê-lo. O russo replicou com uma conferência feroz. Ele aceitou voltar à França em uma ocasião: para celebrar a revolta sangrenta dos vendeanos, em 1792, contra a Revolução Francesa de 1789. E quando lhe falavam dos direitos humanos, ele dava de ombros: uma ‘tolice’.

Seu romance A Roda Vermelha mostra um anti-semitismo virulento. Ele repreendeu os americanos por terem saído do Vietnã. Mais estranho: quando Vladimir Putin chegou ao poder – Putin, o antigo agente daquela KGB que o deixou preso por tanto tempo -, ele o encontrou. Putin sofreria os raios do imprecador? Absolutamente. Os dois homens se entenderam muito bem. E se o escritor censurou a primeira guerra da Chechênia, ele aprovou a segunda, a que lançou os soldados de Putin contra muçulmanos nos escombros da Chechênia.

Esse fim de vida foi mal compreendido e severamente julgado mesmo na Rússia. Os indulgentes diziam que ele envelhecera, que continuava prisioneiro de seu velho heroísmo. Os maledicentes diziam que, mesmo no tempo de seu gênio, ele já era assim: um reacionário, um eslavófilo, um xenófobo, um fascista, etc. Para mim, essas interpretações são ineptas.

São ineptas porque o colocam onde ele não está, ou jamais desejou estar. Quiseram fazer dele um ‘dissidente’, o ‘príncipe dos dissidentes’. Ele não era um dissidente. Não gostava de Andrei Siniavski.

Mesmo o grande Varlam Chalamov, que passou 17 anos na Kolyma, em campos ainda piores que os de Soljenítsin, não encontrou simpatia aos olhos do escritor.

O cientista Andrei Sakharov, o mais célebre dos dissidentes, não foi melhor tratado. O choque dos dois homens aconteceu nos anos 70, após a breve abertura na época de Kruchev, na dacha do músico Mstislav Rostropovich.

O que Soljenítsin reprovava em Sakharov não foi ele ter criado a bomba atômica soviética, mas inscrever-se e trabalhar para o futuro. Sakharov era a ‘modernidade’. Soljenítsin se situa no passado, ou melhor, numa espécie de eternidade, na sagrada e eterna Rússia.

Quem quiser compreendê-lo, admirá-lo, como ele merece, isto é, absolutamente, não será à luz de Hegel, Nietzsche, Karl Marx ou Tocqueville, Lenin ou Raymond Aron que deverá auscultá-lo.

É naqueles ‘loucos de Deus’ que no século 19 palmilhavam os caminhos poeirentos da Rússia em busca da fé e da verdade.

É naqueles antigos cristãos que preferiam se enfurnar nas florestas a se dobrar ao calendário gregoriano proclamado no século 16 pelo papa de Roma, Gregório XIII, em 1582, que cometera o sacrilégio de mexer no tempo de Deus. Nos intratáveis aos quais Pedro, o Grande havia ordenado que cortassem a barba porque eles rejeitavam a lei do czar em nome da reverência a Deus (não é por acaso que Soljenítsin deixava crescer aquela imensa barba).

Em O Carvalho e o Bezerro ele escreve: ‘Eu havia afrontado sua ideologia. Mas ao marchar contra eles, é minha própria cabeça que eu carregava sob meu braço.’ Esse texto lembra o ortodoxo Jean François Colosimo, faz eco a um ícone célebre. João Batista, após sua decapitação, metamorfoseado em anjo do Juízo Final, precede a descida de Cristo ao inferno, abre-lhe a porta e anuncia a próxima ressurreição do verbo.

O verbo, porque esta é a ferramenta de Soljenítsin, como é a grande ferramenta, juntamente com os canhões, de todos que moldaram a história dos povos. O que justifica os numerosos estudos que tentam situar Soljenítsin na literatura russa. Dois nomes lhe são opostos constantemente: Tolstoi e Dostoievski.

Essas comparações são inúteis. Cada um desses três gigantes não tem rival. Soljenítsin compara-se melhor a Tolstoi. Isso se justifica: a amplidão das obras está lá. Se Tolstoi escreveu a epopéia da Rússia em face de Napoleão, em 1812, Soljenítsin relatou uma epopéia ainda mais tenebrosa, a do Gulag, mas nos dois casos com uma arte tal que seus livros fixaram para sempre esses momentos do tempo. Napoleão na Rússia para sempre: é Tolstoi.

Mas a comparação com Tolstoi não é absoluta. Tolstoi, como Victor Hugo, como Voltaire, como Soljenítsin, recusava a sociedade injusta de seu tempo, era um ‘rebelde’. Ele queria reformar, arrumar, mas não ignorava a filosofia das Luzes, que Soljenítsin execrava.

Ele é o herdeiro, senão de Voltaire, ao menos de Rousseau. Todos os seres são dotados de razão. O Deus de Tolstoi, também é dotado de razão. Tolstoi se bate por um cristianismo menos injusto, ‘racional’.

Soljenítsin faz alusão crítica a esse cristianismo de Tolstoi em A Roda Vermelha. Seu Deus, por estar presente em toda parte, por habitar cada homem, cada árvore, não é absolutamente um Deus de razão. Uma das personagens de Soljenítsin, nomeado O astrólogo, se dá ao trabalho de demonstrar aos jovens que vieram consultá-lo que o cristianismo não é absolutamente racional: ‘O cristianismo é irracional porque coloca a Justiça acima de todo cálculo terrestre.’

Nesse sentido, Soljenítsin me parece mais próximo do outro grande russo, Dostoievski, este outro ‘louco de Deus’, ‘esse irracional’ (ver a Lenda do Grande Inquisidor em Os Irmãos Karamazov), desse Dostoievski que foi igualmente atacado como ‘eslavófilo’ como se ataca Soljenítsin pela mesma razão.

Resta uma estranheza, uma lição: a obra literária que realizou as maiores proezas nesses dois séculos, a que deixou os traços mais terríveis, mais profundos na figura de nosso tempo, é a obra de um homem que conhecia muito bem a história, a política, mas que as lia com iluminações trazidas de um outro lado do tempo.

Seu pensamento tirava sua força e sua fatalidade da imagem que fazia de uma Rússia eterna, uma espécie de miragem, em suma, que brilhava para além dos dias e das noites, uma ‘miragem’ que é a verdade mesma, e da qual a Rússia dos czares, a de Stalin, a de Ivan, o Terrível, ou de Catarina, a Grande não passa de efígies provisórias, esboços sucessivos da verdadeira Rússia que flutua fora do tempo.

Uma das fortalezas políticas mais poderosas do século 20, a cidadela soviética, foi posta abaixo pela política, pelas legiões e pelas manufaturas do Ocidente, mas também por dois homens, muito enraizados ambos nesse século, mas que tiravam sua força de uma palavra que emanava dos confins do tempo: o papa João Paulo II e o escritor Alexander Soljenítsin.

TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK

*Gilles Lapouge é correspondente em Paris’

 

 

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Do Gulag ao Prêmio Nobel

‘1918 – Alexander Soljenítsin nasce em Kislovodsk, Russia, em 11 de dezembro

1940 – Soljenítsin se casa com Natalia Reshetovskaia

1941 – Se forma na Universidade Rostov. Entra para o Exército soviético e luta na 2ª Guerra

1945 – É preso por criticar, em uma carta, Stalin (foto) pelo modo como conduziu a guerra e enviado a campos de trabalho forçado na Sibéria

1953 – É exilado por três anos no Casaquistão

1956 – É libertado durante a moderada abertura política de Kruchev. Vai viver em Ryazan, região central da Rússia

1962 – Lança o livro ?Um Dia na Vida de Ivan Denisovich?, com base em suas experiências em campos de trabalho forçado

1968 – Lança ?O Primeiro Círculo? e ?Pavilhão dos Cancerosos?

1969 – É expulso da União dos Escritores Soviéticos

1970 – Premiado com o Nobel de Literatura por vários de seus livros

1971 – Lança o livro ?A Roda Vermelha?

1972 – Se divorcia de Natalia Reshetovskaia

1973 – Se casa com Dmitrievna Svetlova. É lançado em Paris o livro ?Arquipélago Gulag? em três volumes, entre 1973 e 1978

1974 – Preso por traição, tem a cidadania cassada e vai para o exílio na Alemanha

1976 – Muda-se para os EUA

1990 – Sua cidadania russa é restaurada

1994 – Retorna à Rússia

1997 – É criado o o Prêmio Soljenítsin para escritores russos

2008 – Morre de insuficiência cardíaca aos 89 anos, no dia 3′

 

MÍDIA & POLÍTICA
Antonio Gonçalves Filho

‘Sergio Vieira de Mello foi um visionário’

‘Há cinco anos, às 8h45 de uma terça-feira, 19 de agosto, o diplomata brasileiro Sergio Vieira de Mello chegou de carro ao quartel-general da ONU em Bagdá, no Iraque. Três horas depois, seu carro blindado estava pronto para ir ao aeroporto buscar uma delegação de congressistas americanos que chegava do Kuwait, mas o vôo atrasou.

Sergio ligou para a noiva, convidando-a para almoçar, mas ela tinha um compromisso à tarde e recusou o convite. Horas depois, o diplomata e outros 21 membros de sua equipe, enviados a Bagdá para ajudar os iraquianos a recuperar o controle do país, estavam mortos.

O atentado terrorista colocou um ponto final na carreira de um dos mais brilhantes homens públicos nascidos no Brasil. É essa a história contada no livro O Homem Que Queria Salvar o Mundo (Companhia das Letras, 670 págs., R$ 59), escrito pela premiada jornalista americana Samantha Power, vencedora do prêmio Pulitzer pelo livro A Problem from Hell: America and the Age of Genocide, que chega amanhã às livrarias. Coincidentemente, o livro é lançado na mesma semana em que as locadoras recebem o DVD Sergio Vieira de Mello – A Caminho de Bagdá, documentário sobre sua trajetória, dirigido há três anos por Simone Duarte.

A biografia escrita por Samantha, que estará no Brasil para participar da 20ª Bienal do Livro, provocou controvérsia entre resenhistas estrangeiros, como o historiador Francis Fukuyama, o mesmo que decretou o ‘fim da história’. Fukuyama apresentou uma série de argumentos para concluir que Sergio foi a soma das contradições e falhas da instituição que representava, a ONU.

Entretanto, não é o que pensa Samantha, que concedeu ao Estado uma entrevista dizendo que os analistas têm o péssimo hábito de usar a ONU como bode expiatório pela indiferença de alguns países membros aos problemas mais graves do mundo.

A missão de Sergio Vieira de Mello, diz ela, foi justamente a de reabilitar a crença em uma organização cuja ajuda humanitária, em momentos de crise, pode decidir os destinos de um povo.

Ao não recusar o diálogo com ditadores ou líderes sectários, o brasileiro foi, segundo ela, o exemplo máximo de um humanista decidido a fazer da ONU um organismo imparcial. Tanto que, na primeira entrevista que ela realizou com o brasileiro, Sergio definiu essa imparcialidade como o maior patrimônio das Nações Unidas.

Nos trechos a seguir, a biógrafa de Vieira de Mello fala mais sobre o carismático alto comissário da ONU para os refugiados (em Bangladesh, Sudão, Chipre, Moçambique, Líbano, Camboja, Bósnia, Ruanda, Congo, Kosovo e Timor Leste) e representante no Iraque do então secretário-geral da organização, Koffi Anan, durante o período mais grave do conflito.

Em ‘O Homem Que Queria Salvar o Mundo’, você mostra Sergio Vieira de Mello como uma pessoa carismática, um árbitro neutro de conflitos mundiais. Como você definiria esse carisma capaz de seduzir tantas pessoas?

Antes de ser apresentada ao Sergio, um colega jornalista descreveu-o como um cruzamento entre James Bond e Bobby Kennedy. Isso foi em 1994. Estava na ex-Iugoslávia e ele concordou em conceder uma entrevista para mim em Zagreb. Carisma é algo pouco comum entre representantes de organizações internacionais, mas ele era de fato diferente, realmente encantador. E tinha de ser mesmo para assumir a missão de pacificação da ONU na vizinha Bósnia, em seu pior momento de crise.

Ter um diálogo aberto com líderes sanguinários, como os do Khmer Vermelho, ou cultivar amizade com ditadores, como Slobodan Milosevic, foi então uma virtude?

Foi. É claro que ele cometeu erros, como todo mundo que tem mais de 30 anos de carreira. Seu maior acerto estratégico, porém, foi o de mostrar ao mundo que não basta só denunciar e tomar partido das vítimas. É importante conhecer os políticos e as motivações dos que as ameaçam para tentar salvar essas vidas. E devo lembrar que ele arriscou a própria por essa missão.

Pouca gente acreditava que a ONU pudesse fazer alguma coisa para tornar a situação em Bagdá mais tolerável. Você acha que Sergio estava convencido de que poderia fazer um bom trabalho mesmo cercado de pessoas contrárias à presença da ONU, como os americanos?

Sergio não queria ir para Bagdá. Sabia que a ONU teria um papel decorativo nessa história, mas que ele poderia se tornar um intermediário confiável, à medida que representava uma organização independente. Examinando a lista dos prováveis candidatos a assumir o posto que seria seu, ele concluiu que seria melhor não recusar a viagem, mesmo sabendo que os EUA tratariam a ONU como a um mosquito impertinente. Infelizmente, logo ao chegar, em junho, os rebeldes já estavam testando dispositivos explosivos, com ordem de atacar as forças de coalizão.

Fukuyama escreveu uma resenha sobre seu livro, dizendo que as operações da ONU desacreditaram a organização e citando particularmente o caso da Bósnia, que só foi resolvido com poder de fogo. Você acha que Sergio foi ingênuo nessa história?

Esse é um tema delicado. Sergio não era ingênuo e nem um acadêmico como Fukuyama, a 3 mil quilômetros de qualquer conflito. Convencer qualquer governante de um país não é tarefa para pessoas ingênuas. Claro que ele sabia que a ajuda humanitária, por vezes, dependia primeiro de uma intervenção armada contra esses ditadores, mas ele escolheu o papel mais desafiador, que foi o de convencer pela palavra.

Ele foi um visionário?

Com certeza. Daqui a 30 anos vamos olhar para trás e perguntar: por que não fizemos o que ele disse? Ele entendia como ninguém o que significa a diplomacia, a necessidade de ser sofisticado nas negociações. Resumindo em uma frase, ele sabia que o mundo todo tem de nadar junto ou vai se afogar junto. Para superar desafios transnacionais, só mesmo visionários como Sergio ou Barack Obama, que dividem os mesmos ideais e não têm medo de dialogar com adversários ou ditadores.

Qual foi seu grande legado?

Acima de tudo, Sergio nos ensinou que é preciso viver sem medo e mostrou que os EUA, que falam muito de liberdade, precisam começar a respeitar a cultura dos outros.

Sergio foi uma das primeiras pessoas a condenar a violência contra os presos de Abu Ghraib. Ele seria um alvo apropriado não só para iraquianos?

Há quem também considere os americanos responsáveis, mas não há evidência disso, como deixo claro no último capítulo do livro. Hoje, cinco anos após sua morte, o Conselho de Segurança da ONU encontra-se mais dividido do que em qualquer outro período e o poder de Sergio não era grande o suficiente para que ele se tornasse um alvo. Ele apenas condenou o que todos condenamos: não se pode ajudar vítimas no domingo e torturá-las na segunda-feira.’

 

 

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Jornalista trabalhou com Obama

‘AP E REUTERS – A jornalista Samantha Power (foto), professora da Universidade de Harvard, foi até março a principal assessora de política externa do senador Barack Obama, candidato democrata à Casa Branca. Ela foi obrigada a deixar o cargo após ter feito um comentário rude sobre a senadora Hillary Clinton, que na época disputava as primárias com Obama. Ao jornal escocês ‘The Scottsman’, Samantha disse ‘em off’: ‘Hillary é um monstro capaz de fazer qualquer coisa para ganhar.’ Obama reagiu negativamente ao comentário e aceitou seu pedido de renúncia. Na época, os principais comentaristas dos EUA consideraram sua saída um sinal de que havia na campanha de Obama uma tensão bem maior do que transparecia.’

 

 

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Marili Ribeiro

Chope sem álcool. E com marketing

‘A indústria de bebidas reage à Lei Seca que, há pouco mais de um mês, pune quem for pego combinando consumo de álcool e volante. Preocupadas em preservar as receitas e também os investidores, as empresas buscam alternativas, enquanto insistem no discurso de que o consumo voltará aos antigos padrões após um período de adaptação.

A Companhia de Bebidas das Américas – AmBev partiu para a ação e pôs no ar uma campanha publicitária para a cerveja sem álcool Líber. Fato raro no setor, já que essa categoria é uma espécie de prima pobre, relegada a coadjuvante no portfólio das empresas. E, além de incentivar o consumo da marca, vai lançar o chope Líber. O primeiro no segmento sem nenhum vestígio de teor alcoólico.

As outras marcas de cerveja vendidas no segmento sem álcool na verdade têm perto de 0,5% de teor alcoólico para garantir a atratividade da bebida. Mas, com isso, não garantem que o consumidor passe pelo teste do bafômetro.

Sem grandes investimentos em marketing, a Líber fez por merecer seu atual lugar de destaque. Segundo a AmBev, o consumo da marca cresceu 63% no mês passado ante o mesmo período do ano anterior. Um porcentual polpudo, mesmo levando em consideração que a base de comparação é baixa, já que a cerveja sem álcool representa menos de 1% do mercado total, que em 2007 consumiu 10,341 bilhões de litros.

Inquieta com as perspectivas de curto prazo, a AmBev está buscando parcerias inusitadas. Discute, por exemplo, com o portal Google um projeto no qual pretende mapear os botecos da cidade e criar roteiros alternativos, na tentativa de desenvolver o chamado consumo de vizinhança. Há forte aposta do setor de bebidas numa migração do consumo de regiões que concentram barzinhos para outros bairros, a fim de evitar o trânsito por zonas mais visadas pela fiscalização.

PILOTO DA VEZ

Outra ação em estudo é a implantação de uma espécie de campanha no estilo ‘Piloto da Vez’ para a marca líder em participação no mercado, a Skol, que detém mais de 30% do mercado total. A idéia embutida nessa proposta é o estímulo à escolha de uma pessoa para não beber e ficar responsável pelo volante. É uma campanha que integra há anos o marketing da gigante de bebidas britânica Diageo, dona do uísque Johnnie Walker e da vodca Smirnoff, entre outras marcas globais.

Tanto a Diageo como outras multinacionais de seu porte presentes no Brasil – caso da Pernod Ricard e da Moët Henessy – já tiveram experiências similares lá fora e garantem que a retração de vendas é temporária. ‘Tanto na Inglaterra, onde a lei a respeito é draconiana, como na França, houve, lógico, um impacto inicial, mas depois as pessoas ajustaram seus hábitos às novas regras’, diz o diretor de Marketing da Diageo, Eduardo Bendzius. ‘O comportamento mudou, mas o consumo de bebidas não caiu.’

No primeiro fim de semana pós-implantação do projeto tolerância zero, a Diageo ofereceu táxis gratuitos a quem telefonasse para a Central de Rádio Táxi em São Paulo com a senha ‘quero ser o Piloto da Vez’. Foram contabilizadas 370 corridas e 2,9 mil quilômetros percorridos. Uma reação imediata com boa repercussão de marketing, mas, como Pondera David Marcovitch, presidente Moët Henessy do grupo LVMH, há um custo alto de logística nessa operação. ‘Para chamar atenção por um tempo é válido, mas nenhuma empresa pode manter isso no escopo de seus negócios.’

Em busca de soluções definitivas, as companhias mantiveram nas últimas semanas reuniões com associações de classe, proprietários de restaurantes e cooperativas de táxis para debater propostas que desanuviem o cenário de cidade fantasma no qual se tornaram algumas regiões badaladas.

Nenhuma das empresas, por exemplo, cancelou o calendário de festas e eventos regados a bebidas. Na próxima semana, por exemplo, realiza-se no quadrilátero do luxo em São Paulo, capitaneado pela Rua Oscar Freire, o Promenade Chandon, no qual serão distribuídas 7,9 mil garrafas do espumante do grupo que dá nome ao evento.

No Rio, neste fim de semana foi realizada no Museu de Arte Moderna a segunda edição do Ballantine?s Impression Party, evento promovido pela Pernod Ricard. Para manter a animação do público, a empresa criou três diferentes rotas, saindo de pontos distintos da cidade, com 25 microônibus. Em São Paulo, a empresa oferece a partir desta semana o evento de gastronomia Chivas Studio, nos moldes do que já realiza na Espanha. Para não correr risco de falta de adesão, montou um esquema de oferta de táxis.

Como reconhece Marcovitch, na fase de adaptação todos devem entrar com sua cota de sacrifício. Mas, para alguns consumidores, não há razões para incômodo. Pelo contrário, pode até haver algum ganho. Os irmãos Daniela e Ricardo Hirsch são consumidores de cerveja sem álcool por motivos diversos e, muitas vezes, têm dificuldade de encontrá-la.

Ricardo, que é triatleta e sócio da Personal Life, não bebe especialmente às vésperas de disputas. Daniela, sócia da empresa de prestação de serviços Butique das Letras, gosta do sabor de cerveja e, na maioria das vezes, prefere o líquido sem álcool. Agora, mais endereços vão oferecer o produto. Sorte deles.’

 

 

TV DIGITAL
Renato Cruz

Conversor para a TV interativa já está à venda

‘A interatividade, que permite serviços parecidos com os da internet no televisor, era o único componente genuinamente brasileiro do sistema nipo-brasileiro de TV digital. No lançamento da tecnologia em São Paulo, no mês de dezembro de 2007, ela não estava disponível. Primeiro, houve demora na especificação do software de interatividade, batizado de Ginga. Depois, o Fórum do Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD) descobriu que existiam problemas de royalties, que deveriam ser pagos a uma empresa estrangeira por componentes de software empregados em parte do Ginga.

Enquanto os grandes fabricantes debatem o que fazer com o software de interatividade no Fórum SBTVD, uma pequena empresa da Rua Santa Ifigênia, que concentra lojas de eletrônicos no centro de São Paulo, lançou um conversor de TV digital com a parte do Ginga que não tem problemas de royalties. O aparelho, que converte o sinal digital para ser visto em televisores analógicos, se chama ZBT-620, e é fabricado pela Neo Security.

‘É o único do mercado com o software interativo’, disse José Carlos de Souza, sócio da Central Santa Ifigênia, uma das lojas que vendem o aparelho. ‘A receptividade do Ginga é interessante. Vendo mais desse aparelho do que outros.’ Ele custa cerca de R$ 600. Um modelo de outro fabricante, sem o Ginga, é R$ 100 mais barato.

Segundo Souza, os consumidores preferem comprar o conversor com Ginga, apesar de as emissoras ainda não estarem transmitindo programas interativos. Ele chegou a vender 150 peças em junho, mas, no mês passado, a procura pelo aparelho caiu, e foram vendidos menos de 100. O lojista apontou como motivo o anúncio do conversor de R$ 200 pela Proview. ‘As pessoas vão às lojas dispostas a pagar esse preço e não acham o produto’, disse Souza.

A Neo Security preferiu não comentar o produto, limitando-se a informar que a Mopa Embedded Systems, que tem escritórios em João Pessoa e Natal, foi quem forneceu o Ginga para o seu conversor. A Mopa foi fundada por ex-alunos do professor Guido Lemos, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), um dos criadores do Ginga.

‘Já tenho acordos com cinco fabricantes’, disse Luiz Eduardo Cunha Leite, diretor-executivo da Mopa. Ele explicou que não poderia comentar o produto da Neo, por causa de cláusulas de confidencialidade que tem com seus clientes. Leite está animado com as perspectivas do Ginga. Segundo o executivo, a Mopa foi procurada até por uma empresa que atua no mercado europeu, interessada no software.

O Ginga é dividido em duas partes: Ginga-NCL (que é uma linguagem de marcação, parecida com o HTML usado para as páginas de internet) e o Ginga-J (uma linguagem de programação, parecida com o Java). Houve problemas de royalties com o Ginga-J, criado na UFPB. O Ginga-NCL, disponível no conversor da Neo, foi criado na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, e não embute propriedade intelectual internacional.

Moris Arditti, vice-presidente do Fórum SBTVD, ficou surpreso ao saber do conversor da Neo. ‘Não tenho informações sobre esse aparelho’, disse Arditi. ‘Não é impossível, porque as especificações já existem.’ Ele disse que lançar um conversor de TV somente com o Ginga-NCL contraria as determinações do fórum.

‘Não existe meio Ginga’, explicou o executivo. ‘Até o fim do ano, é possível que apareçam no mercado máquinas com o Ginga como deve ser.’

Houve alguma resistência dos radiodifusores ao Ginga durante o processo de definição da tecnologia de TV digital no País. Eles temiam que os espectadores pudessem achar as aplicações interativas mais interessantes que os programas. Mas a resistência ficou para trás. As emissoras têm se preparado para a interatividade, que vêem agora como uma ferramenta para conquistar audiência.

Todas as iniciativas de interação com o público que fazem usando o celular, o telefone fixo e a internet podem ser reforçadas e feitas diretamente pelo controle remoto, com o Ginga. Além disso, muitas outras aplicações podem ser criadas.

‘A maioria das emissoras já está preparada’, afirmou o professor Valdecir Becker, da Universidade Metodista. ‘Está na hora de mostrar ao mercado que a interatividade existe e é viável, que está pronta para ser lançada comercialmente.’ No dia 25 deste mês, a Metodista vai realizar um evento de TV digital, onde serão demonstradas as aplicações em Ginga desenvolvidas pela primeira turma do curso de especialização em produção de TV interativa.

Becker também é diretor da empresa ITV Produções Interativas, que oferece treinamento de programação em Ginga. Ele já ministrou o curso para mais de 350 pessoas, a maioria delas de emissoras de televisão.’

 

 

Ethevaldo Siqueira

Mais blablablá de semicondutores e TV digital

‘O assessor-chefe de Comunicação Social do Ministério das Comunicações, Francisco Câmpera, nos escreve:

‘1. O artigo O BlaBlaBlá dos Semicondutores e da TV Digital, do sr. Ethevaldo Siqueira, publicado dia 20-07-08, comete uma série de equívocos e desinforma mais uma vez o leitor. Em primeiro lugar mostra que o colunista não lê o próprio jornal no qual escreve. Ele afirmou que o ministro das Comunicações criou falsa expectativa de set-up boxes a R$ 200. Na semana anterior à coluna, foi lançado em São Paulo o set-up box a R$ 199,00, inclusive com cobertura desse veículo.

2. Afirma ainda que o projeto da TV Digital não teve ?muita sintonia entre governo, emissoras, universidade e indústria?. Ora, foram 1.200 cientistas e professores de mais de 100 instituições de ensino que participaram do desenvolvimento, como a USP, Universidade Mackenzie e UFMG. As emissoras participaram ativamente assim como a indústria. O comitê executivo foi composto por 11 ministros. Onde está a falta de sintonia?

3. Sobre as outras vantagens que o colunista diz não se concretizarem, vamos aos fatos: passados sete meses do lançamento estão disponíveis a alta definição, a portabilidade nos celulares e a mobilidade.

A interatividade está pronta, faltam pequenos acertos relativos ao uso de direitos autorais.

4. A incoerência do colunista confunde o leitor, porque ao mesmo tempo desqualifica e elogia a TV Digital: ?Não me surpreendo com o atual estágio da TV digital. No começo é assim mesmo…?; ?Nenhum país poderia fazer melhor, no mesmo período, nas mesmas condições?.

5. O processo de implantação da TV Digital requer tempo e esforço continuado, tanto que a implantação prevê 10 anos para completar a transição. Ainda assim estamos avançando o cronograma estabelecido: SP, RJ e BH lançaram a operação com mais de um ano de antecedência.

6. Sobre a fábrica de semicondutores: após a falência desta indústria no Brasil nos últimos 20 anos, o atual governo está recuperando o tempo com investimentos de R$ 400 milhões em iniciativas como: criação de incentivos fiscais; desenvolvimento tecnológico e formação de técnicos. O objetivo não é só atrair investimentos japoneses, mas de todo o mundo.

7. Por fim, sobre o rádio digital vamos adotar o sistema que melhor atenda ao País. Temos que fazer a digitalização na mesma freqüência em que operam o sistema analógico e as faixas FM e AM. Tomaremos a decisão baseada nas pesquisas feitas pelo Mackenzie, Abert e Anatel.

8. Se o sr. Siqueira nos procurasse, o que nunca aconteceu, faríamos todos os esclarecimentos. Quem perde é o leitor desse tradicional veículo que todos nós admiramos e respeitamos.’

NOSSA RESPOSTA

Vejamos de quem são os equívocos:

1) O zeloso assessor sabe que o set-top box de R$ 199 anunciado não decodifica sinais de alta definição – mas só standard definition. E pior: o produto ainda não chegou às lojas. Faltam agora os mais baratos, abaixo de R$ 150, prometidos pelo ministro.

2) Três exemplos de falta de sintonia: a) Mesmo com um comitê de 11 ministros, o trabalho de pesquisa foi atrasado mais de uma vez, por falta de liberação de recursos; b) A indústria não recebeu em tempo hábil as especificações completas para a fabricação dos set-top boxes. c) Até hoje, o middleware Ginga, essencial para a interatividade, não está disponível. E pior: quem quiser interatividade no futuro terá que gingar, comprando novos set-top boxes.

3) Para o assessor, tudo está pronto, mas nada funciona. Interatividade é futuro. No caso do celular, só há nas lojas três modelos de celulares capazes de receber imagens de TV digital no padrão ISDB.

Mesmo assim, não existem acordos entre operadoras e emissoras nem definição do modelo de negócios.

4) O artigo não contém nenhuma incoerência nem elogio ao projeto. Afirma, isto sim, que no mesmo período, nenhum país faria melhor se tivesse que implantar a TV digital, nas mesmas condições que o Brasil, isto é, diante de expectativas irrealistas e de um projeto tão mal coordenado.

5) O assessor reconhece: ‘o processo de implantação da TV digital requer tempo e esforço continuado’ – mas com seriedade e profissionalismo.

6) Continuamos cobrando a instalação da indústria de semicondutores no País, que o ministro Hélio Costa disse, várias vezes, ser compromisso japonês, em contrapartida à escolha do padrão ISDB pelo Brasil. Na verdade, esse compromisso nunca existiu.

7) O ministro Hélio Costa tem anunciado sua preferência pelo padrão de rádio digital HD Radio (Iboc), tecnologia que ainda tem sérias limitações. Mais grave ainda é o fato de o ministro das Comunicações sugerir que o Brasil faça parceria com a Ibiquity, a empresa americana dona da tecnologia, para que ela se instale no País com apoio do BNDES. Tudo isso antes dos resultados das ‘pesquisas do Mackenzie, da Abert e da Anatel’.

8) Diante de tantos equívocos do assessor, fica claro por que não o procuramos: exatamente para informar corretamente nossos leitores.

Com esta resposta damos o assunto por encerrado.’

 

 

JORNALISMO LITERÁRIO
Francisco Quinteiro Pires

Uma cidade de pessoas que partem

‘A vida é um milagre. E tem a cor amarela. O Livro Amarelo do Terminal, de Vanessa Barbara, é uma extensa reportagem sobre o Terminal Rodoviário Tietê. Além da cor das páginas – amarela -, que se presta como metáfora à passagem do tempo, que a tudo vai destruindo, a obra relata o vaivém dos passageiros da maior rodoviária da América Latina, embarques e desembarques que bem podiam ser a imitação dos ciclos da própria vida.

‘Eu queria escrever sobre as ruas, mas precisaria falar de bueiros, pedrinhas e semáforos, então pensei que a rodoviária seria uma rua sem calçadas’, ela diz. Tietê, Vanessa explica, significa ‘rio fundo e corrente, que corta a cidade, com gente de todo tipo que chega e vai embora, que corre e perde suas muletas, que conversa com o Papai Noel’.

Querendo escrever sobre a rodoviária de um rio fundo e corrente, Vanessa escreveu sobre o absurdo da existência. O terminal se transformou em modelo miniaturizado do mundo. ‘Se o mundo é um lugar onde passam dezenas de freiras buliçosas segurando pranchas de surfe, onde há chicletes por toda parte e uma senhora acende velas no guarda-volumes, como eu acredito piamente, então a rodoviária é o mundo.’ Ela prefere afirmar que a rodoviária é uma cidade esquisita, ‘onde nada de estrondoso parece acontecer e tudo se perde na multidão, mas há detalhes inacreditáveis e pessoas jogando pife-pafe enquanto aguardam a partida do ônibus’. Tudo se perde, e passa, até as pessoas. Quando voltou ao local, em abril, para escrever o epílogo, arrematando os 21 capítulos, ela reencontrou apenas alguns personagens da reportagem iniciada em outubro de 2002. ‘E igualmente falhei em descobrir o faturamento do banheiro.’

Antes de ser publicado pela Cosac Naify, O Livro Amarelo do Terminal (256 págs., R$ 35) era um Trabalho de Conclusão de Curso (o famigerado TCC), necessário para receber o diploma universitário. Vanessa visitou a estação rodoviária durante um ano. Como morava perto, no bairro do Mandaqui, ela passava a tarde inteira lá. ‘Ao terminar, cheguei a uma conclusão negativa, eu achava que era um lugar de desencontros e tristezas’, diz. ‘Depois de 5 anos, relendo o texto, vejo que é muito mais um lugar de pequenos encontros, de momentos sutis, de histórias extraordinárias.’

O capítulo 8 – História Oral do Tietê – é inspirado em O Segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell. Jornalista da New Yorker, Mitchell (1908-1996) extraía detalhes fantásticos da matéria bruta da realidade. Era capaz de ficar observando, durante duas horas, um pica-pau derrubar uma árvore. Os textos de Mitchell nascem de uma escuta/observação humilde e apaixonada. ‘Há várias formas de escutar as coisas e acho bom experimentar o máximo possível delas.’ O jornalismo precisa de descrição e observação, segundo ela.

E de paciência. Vanessa, de 26 anos, precisou conversar com alguns dos 60 mil passageiros diários do terminal, além dos 1.806 funcionários que trabalham em três turnos. Era preciso nadar nesse oceano numérico – 100 mil cafezinhos mensais, 12 toneladas de pães de queijo por mês, mil quilômetros de papel higiênico jogados no lixo… A técnica parece simples. ‘Em certos dias, ia com um propósito certo: visitar o balcão de informações, os banheiros’, ela diz. ‘Em outros, apenas vagava pelos corredores puxando conversa e arrumando encrenca.’ Ela chama isso de ‘histórias de vida’: fazer perguntas bem abertas e deixar o entrevistado falar livremente – ‘de frango com quiabo a carrapatos e bijuterias’.

Porque assim é mais fácil perceber o que importa de fato para as pessoas. A disposição para ouvir sem interferências se choca com o ‘gerador automático de reportagens’, nome inventado por Vanessa para qualificar as reportagens da grande imprensa (trânsito lento nos dois sentidos, liquidação de estofados, alta da taxa de juros) – ‘leio pouco jornal.’ O mais do mesmo. ‘Faltam histórias’, afirma. E um olhar mais humanista nas redações. Entre os milhares de indivíduos do terminal, Vanessa, jornalista da revista Piauí, selecionou, entre outros, a Rosângela, o Bruno, o Marcos, todos personagens modestos e sem sobrenome. ‘Porque às vezes a conversa era tão tranqüila que perguntar sobrenome e RG era a última coisa que se aplicava no momento.’

Autora da ficção O Verão do Chibo (Alfaguara), com Emilio Fraia, Vanessa é adepta da noção de que a solenidade não leva a lugar nenhum. Concentrada nos detalhes bobos ou nas reações pequenas, ela aplica o recurso do humor, ‘um bom ingrediente para o jornalismo’, para narrar o surpreendente e o nonsense, como a senhora à espera da Marinha Britânica. ‘O mundo não faz necessariamente sentido e eu adoro essas pequenas bobagens que às vezes revelam muito e nada ao mesmo tempo’, diz. O segredo é achar o tom, para não cair no sarcasmo fácil, e ele não está no exagero, revela.

A afinação da narrativa se realizou em dois tons – no recurso ficcional e no projeto gráfico original. ‘É possível se valer mais de técnicas e noções de ficção para fazer reportagem, sem prejuízo do texto.’ Vanessa convocou a ajuda de, entre outros, Truman Capote, Gay Talese, John dos Passos, João do Rio, George Orwell e até do quadrinista Will Eisner. E incluiu um capítulo inventado: Sala de Controle.

Todas as páginas são amarelas, de gramatura mais fina, cuja transparência mais acentuada permite a sobreposição das letras. A leitura às vezes embaralhada lembra o vertiginoso vaivém do local. ‘O objetivo foi emular a bagunça estética e polifônica do Tietê.’ A exceção, dada para a cor azul, fica entre as páginas 145 e 192, sobre a construção, inauguração e consolidação da rodoviária. São os três capítulos históricos, em que o papel é semelhante ao carbono, usado na confecção de bilhetes de ônibus.

Nessas páginas, Vanessa misturou reportagens de época com músicas populares. ‘Achei a seqüência de acontecimentos tão absurda que precisava de uma trilha sonora à altura’, explica. ‘Declarações como ?Não voltam porque eu não vou deixar. Quando for sair, que saiam todos os ônibus? encaixam exatamente numa letra como ?Levanta, me serve um café/ Que o mundo acabou?, sem falar de clássicos como ?Ai, coração alado?.’ A vida é mesmo um milagre. E, caso discordem, terão de aceitar ao menos um ponto: ela é uma bela de uma travessia absurda.’

 

 

***

Editora realiza ciclo sobre o gênero

‘FICÇÃO REAL: A Cosac Naify passou a apostar no jornalismo literário. O Livro Amarelo do Terminal, de Vanessa Barbara, e O Santo Sujo – A Vida de Jayme Ovalle, de Humberto Werneck, são as primeiras obras. Para marcar a estréia, ela promove um miniciclo de jornalismo na Livraria da Vila (mais informações no 3814-5811). Na terça, às 19h30, Vanessa Barbara, Matinas Suzuki Jr. e João Moreira Salles debatem na palestra Os Outros na Vida – A Reportagem. ‘Vou falar de pudins, meu assunto predileto, jornalismo literário e raízes quadradas’, diz Vanessa. Na quarta, às 19h30, Humberto Werneck e Fernando Morais falam em A Vida dos Outros – A Biografia.’

 

 

UBALDO PREMIADO
João Ubaldo Ribeiro

O dinheiro do prêmio

‘Não é para me promover, não só porque não faço isso, como porque a notícia já é velha e saiu em tudo quanto é canto. É porque preciso lembrar que ganhei o prêmio Camões para o que vou contar possa ser bem compreendido. Tudo bem, ganhei o prêmio, soube atrasado e me entrevistaram logo em seguida. Eu ainda não tinha nem processado a informação direito, embora isto não seja desculpa, até porque não agi de forma a ter de pedir desculpas por nada. Me perguntaram de chofre por que eu achava que tinha sido contemplado e respondi que era porque merecia.

Recebi e ainda estou recebendo várias censuras por ter dado essa resposta. Quer dizer, o sujeito é obrigado ou a ser hipócrita, a ser falsamente modesto ou a ser criticado por ser imodesto. Vejam que atraso de mentalidade, ou então má vontade, ou falta do que fazer mesmo. Todo mundo que, todo dia, em alguma parte do mundo, aceita e recebe um prêmio seria desonesto, se não achasse que o merecia. Se a pessoa acha sinceramente que não merece um prêmio, então é desonesta ao aceitá-lo. Não mereço, mas, já que me dão, eu meto a mão, seria este o raciocínio.

Portanto, claro que acho que mereço, embora não seja cabotino o suficiente para dizer por quê, a não ser que me perguntem. E, mesmo aceitando o prêmio e deixando implícito achar que o mereço, a situação ridícula ainda se estende, porque eu devia ter sido ‘modesto’, ou seja, balbuciado algo sobre minha abissal carência de méritos, de ser ‘apenas’ issozinho ou aquilinho e fazer a mais baixa apreciação possível de minhas duvidosas qualidades. Neste caso, as pessoas me ouviriam e comentariam: ‘Olha aí a falsa modéstia, é óbvio que ele não pensa assim, isso é ele fazendo gênero.’ Aí eu não digo nada dessas coisas farisaicas, respondo também que ganhar o prêmio não foi surpresa – e, claro, corri e o bicho não comeu, mas fiquei e o bicho pegou. Imodesto, que coisa feia, que arrogância, que deselegância, devia pelo menos manter as aparências e por aí vai.

Mas isso eu já sabia, como, aliás, numa medida ou outra, todo mundo sabe. Só que a sensação foi mais intensa desta vez. Mas nada que se compare à repercussão do dinheiro do prêmio. Disseram também que eu menosprezei o prêmio, porque, quando me perguntaram sobre o seu valor, não agi como se tivesse ganho a Microsoft de presente. 100 mil! Fiquei com cara de quem receberia 100 mil mesmo (com quase 30% descontados do imposto de renda) e todo mundo se revoltou. Em todas as entrevistas, me perguntavam o que eu ia fazer com o dinheiro, como ia ficar minha vida agora, quais eram meus planos e assim por diante.

Tenho uma geringonça neste computador que faz conversão instantânea de moedas. Nunca a usei antes, mas desta vez recorri a ela e cheguei a achar que estava com defeito, porque demorei a me convencer de que ela me respondia a verdade. Os 100 mil redondos, sem a mordida do imposto, davam mesmo, nesse dia, R$ 241.910. Não fizeram ainda um roubômetro de confiança para a presente república, mas acho que isso é menos que o total do que aqui roubam por segundo, em falcatruas, maracutaias e malversações diversas. Não sei nem se é quantia suficiente para pagar uma parcela das restituições que o dr. Daniel Dantas disse que recebia da Receita. Não paga nem um fígado na fila dos hospitais, isso eu sei também.

Mas não cessam de chegar e-mails sobre o dinheiro (não, não saiu ainda; não, não sei quando vai sair; sim, sim, creio que um dia sai). Quais são seus planos, qual é a destinação (encher bem as bochechas, ao pronunciar a quantia) dos 100 mil eeeeeeuros? Acredito que, ainda neste domingo, alguém me perguntará ou entrevistará sobre o assunto, de maneira que preparei a entrevista, acreditando haver coberto todas as dúvidas possíveis.

– Quais são seus planos para o dinheiro do prêmio?

– Bem, ainda não está nada definido. O mundo das altas finanças é bastante mais complexo do que vocês, leigos, imaginam. Estou pensando em contratar os serviços de uma consultora econômica americana, dessas cujos diretores cobram US$ 10 mil para levantar o fone do gancho. São caras, mas quem quer o melhor tem de estar preparado para pagar.

– Mas não há um plano já feito assim mais informalmente, pela família mesmo?

– Sou obrigado a confessar que sim, a gente meio que – ‘meio quê’, não é assim que se fala? – endoidou com a notícia do dinheiro. Por enquanto, o plano que estou mais tentado a seguir é simples. Pensei em comprar a Dinamarca. É meio fria, mas é do tamanhozinho certo, bem arrumadinha, acho que pode sair em conta. Com outra parte do dinheiro, acho que vou comprar oito coberturas aqui no Leblon, uma para cada um dos meus quatro filhos, uma tríplex para mim e as outras para investir mesmo, ou alojar os amigos que eu convide para uma temporada no Rio. O resto eu invisto em ações de empresas cujo controle eu possa vir a adquirir depois, como a Petrobrás ou a Vale. E, para acabar de gastar tudo, passo uns dois anos viajando com minha senhôra e meus pequerruchos pela Europa, sem pressa, curtindo o Tour d?Argent toda noite em Paris, essas bobagens de novo-rico mesmo.

– Mas na área social, em projetos de assistência aos excluídos, por exemplo…

– Ah, certamente! Isso não poderia faltar na minha agenda, como fui me esquecer? Na parte dos programas para excluídos, eu mando chamar a senhora sua mãe. Aí eu pego sua mãe, digo a ela que espere um pouco e…’

 

 

TELEVISÃO
Keila Jimenez

Sono x esportes

‘A vista embaçada, de sono, é claro, não consegue distinguir qual é a modalidade da vez. Não tem bola. Nem água, nem cavalo. Ah, tem roda. É ciclismo, acho. Corta para um cara mexendo em uma tela imensa no ar, movendo imagens, dando zoom. Cadê o Tom? O Cruise, oras. Não é Minority Report? Não, o moderninho em questão tem um logo da Globo na camisa. Deve ser o narrador da vez com o mais novo brinquedinho da rede.

No vôlei feminino percebo que a bola diminuiu… Nossa, tem areia na quadra? Ué, Só dois jogando? Ah, são os meninos do vôlei de praia. Boxe, remo, tiro com arco, badminton, meu travesseiro…

Lee, Kim e Jung me acordam com um chute de três. Chute? Como esse Silvio Luiz fala bobagem. Foi chute sim, insiste o comentarista da Band no embate entre Brasil e Coréia no basquete feminino. ‘Acho que não vai dar’, profetiza Cléber Machado na Globo. Ué, ele fez ponte área para a China? Deixa para lá, afinal, ele acertou. Ele e Silvio Luiz, que disse que a cesta do Brasil estava ‘macumbada’. Na Band, Fernando Fernandes leva cantada ao vivo de um torcedor chinês gigante. Que bom, pelo menos alguém está se divertindo a essa hora.

Sonolento como eu parece estar Bruno Laurence, que troca Luís Roberto por Galvão no futebol feminino. Galvão? Cadê? Foi parar no Cubo d?Água, que está ‘enlouquecido’, segundo o próprio, pelo revezamento na natação. Cubo enlouquecido? E a TV vai bombardeando. ‘O tubarão americano já abocanhou uma.’ Coitada. ‘O twist carpado garantiu classificação’. Quem é esse? Saudade do tempo em que o sono disputava com um esporte só.’

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Folha de S. Paulo – 1

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O Estado de S. Paulo – 1

O Estado de S. Paulo – 2

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