Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

O Estado de S. Paulo

LITERATURA
Antonio Gonçalves Filho

A viagem de Lorca em busca de sua identidade perdida

‘Havia mais coisas entre o pintor Salvador Dalí e o poeta Federico García Lorca do que sonhava a vã filosofia dos mexeriqueiros. Não propriamente um caso amoroso, como esses insistem, mas uma ligação surrealista que levou os dois, no mesmo ano, a trocar o pincel e a caneta pelo cinema. Em 1929, Dalí (1904-1989) lançou com Luís Buñuel (1900-1983)o filme experimental surrealista O Cão Andaluz (Un Chien Andalou). García Lorca (1898-1936), amigo íntimo e colega de escola dos dois, sentindo-se excluído do triângulo, viajou para Nova York após passar por Paris quando o filme estreou, no dia 6 de junho daquele ano. Não há documento que comprove ter Lorca visto o filme dos amigos, mas sabe-se que ficou consternado com o título. ‘El perro andaluz soy yo’ (O cão andaluz sou eu’), teria dito o poeta, enlouquecido com a menção aos tempos em que os três viveram juntos na Residência dos Estudantes de Madri (entre 1919 e 1925). Em tempo: ?perro andaluz? era uma ofensa gravíssima aos estudantes meridionais que moravam na capital espanhola. Lorca não tardou em dar a resposta. Já instalado em Nova York , escreveu o roteiro de um filme, também surrealista, La Viaje a la Luna, com o pintor mexicano Emilio Amero (1901-1976). É essa obra rara que a editora Perspectiva lança no dia16, na Livraria da Vila da Casa do Saber.

Viaje a la Luna: Uma Biografia em Projeção (216 págs., R$ 36), do professor Reto Melchior, é mais que uma simples interpretação desse roteiro que ficou perdido por anos após a morte de Lorca, até ser filmado em 1998 pelo pintor cineasta catalão Federic Amat e exibido há alguns anos pelo Itaú Cultural. Melchior, que ensina cinema na Suíça, viu o média-metragem lá e sua primeira impressão foi a de que havia entrado na sala errada, ao topar com a primeira imagem do filme, a de uma cama da qual saem números, enquanto um menino chora e aparece na tela um letreiro com as palavras ‘Socorro, socorro, socorro’. Aos poucos, porém, as figuras mais conhecidas do repertório poético de Lorca vão surgindo, ocupando os 19 minutos do filme com mulheres enlutadas, um arlequim, um violão com as cordas cortadas e um jovem efebo desfilando sua nudez até desaparecer numa rua noturna.

Não tem muito a ver com uma viagem à lua, mas tampouco Un Chien Andalou tem a ver com cães andaluzes. Em síntese: parece apenas uma obra surrealista em que imagens oníricas surgem autônomas como num sonho. Ou num pesadelo. 1929 foi um ano pesado para Lorca – e isso tem pouco a ver com o crack da Bolsa de Nova York e mais pelo fato de Dalí ter conhecido sua futura mulher Gala e Buñuel ter tornado pública a homossexualidade do poeta, além de arrasar, numa carta ao escritor José Bello, o livro mais popular de Lorca, o Romancero Gitano (de 1928) – uma obra, segundo ele, para agradar aos ‘poetas bichas’ de Andaluzia.

Buñuel foi cruel, mas deu um jeito de corrigir a injustiça ao escrever a autobiografia Meu Último Suspiro, em que define Lorca de forma um tanto suspeita para um homófobo: ‘Federico tinha uma atração, um magnetismo ao qual ninguém podia resistir…’ Lorca não viveu para testemunhar a retratação. Morreu em 1936, aos 38 anos, no começo da Guerra Civil Espanhola, pelos fascistas que levaram Franco ao poder. De qualquer modo, seu roteiro Viaje a La Luna responde às provocações de Un Chien Andalou apropriando-se do imaginário de Dalí e Buñuel. Se Lorca não viu o filme, devia estar bem informado. Uma da cenas de Viaje a la Luna mostra uma procissão de formigas sobre um lençol, enquanto no filme da dupla Dalí/Buñuel, os mesmos insetos saem sem parar de uma onanista mão furada. Também sobre um lençol, um casal deita ao lado de um morto, no qual pintam um bigode igualzinho ao de Dalí. Freud explica. Ou deveria explicar.

Por que Lorca pensava no filme de Buñuel e Dalí em Nova York? O autor do livro, Reto Melchior, arrisca um palpite. Até 1929, o poeta andaluz nunca tinha saído da Espanha e, embora não se sentisse particularmente atraído pela cultura norte-americana, era a sua maneira de empreender uma ‘viagem à Lua’ enquanto seus amigos tentavam conquistar Paris. Lorca, ao menos, seria aplaudido como o ‘poeta em Nova York’, distanciando-se da própria produção artística espanhola em busca de sua identidade sexual. Anônimo numa metrópole e em contato com novas estéticas, Lorca estava livre para explorar um de seus temas mais caros, a androginia. O resultado, para quem se interessar, está no livro. Ou no YouTube, que exibe excertos do filme catalão de Federic Amat.’

 

 

CINEMA
Sérgio Augusto

O homem que melhor nos ensinou a ver um filme

‘Um minuto de silêncio precedeu o jogo do Flamengo contra o Volta Redonda, domingo passado, pelo Campeonato Carioca. Quantos dos presentes no Maracanã conheciam, ainda que vagamente ou só de nome, Antonio Moniz Vianna?, perguntei-me ao saber da homenagem, seguro de que jamais teria uma resposta satisfatória. Moniz Vianna, morto na madrugada do último sábado de janeiro, aos 84 anos, não era uma celebridade, apenas um dos mais ilustres torcedores do Flamengo, sua maior paixão depois do cinema. Célebre ele fora em décadas passadas e famoso há de ficar como o primeiro crítico de cinema brindado com um minuto de silêncio no Maracanã.

Se vivêssemos no melhor dos mundos, todas as salas de exibição brasileiras também lhe teriam prestado alguma forma de homenagem em suas matinês do último domingo, pois o cinema lhe deve mais, muito mais, tributos que o futebol do Flamengo.

Moniz foi, simplesmente, o mais influente crítico de cinema do país. Não há controvérsias sobre o que acabo de afirmar. Ele não só escrevia todos os dias, sobre quase todos os filmes em cartaz, como seus comentários, quase sempre tomando duas ou mais colunas de alto abaixo do jornal, saíam no então mais lido diário de circulação nacional, o Correio da Manhã. Isso numa época (de 1946 ao final dos anos 60) em que, no mundo inteiro, a crítica de cinema diária era curta, ligeira e pedestre.

Seus competidores, portanto, não foram Bosley Crowther (por longo tempo o principal crítico do New York Times) ou Louis Chauvet (idem do France-Soir), mas aqueles, mais ensaísticos, com mais tempo para escrever e espaço para se espalhar em publicações semanais, mensais e especializadas, como André Bazin e Jacques Doniol-Valcroze (que dividiam a seção de cinema do L?Observateur, futuro Nouvel Observateur), James Agee (Time), Otis Ferguson (The New Republic), Robert Warshow (Partisan Review), Manny Farber (The Nation). Daí porque boa parte dos cineastas (Nicholas Ray, Robert Aldrich, Budd Boetticher, os que trabalharam na unidade de Val Lewton, na RKO) cuja descoberta costuma ser atribuída aos franceses, notadamente aos da revista Cahiers du Cinéma, foram na verdade ‘revelados’ por Moniz.

Como escrevia com extrema elegância, incisividade e inigualável erudição, pois, afinal de contas, via de tudo, ao contrário dos franceses, que ficaram, por alguns anos, alheios ao que Hollywood produziu durante a 2ª Guerra, e dos americanos, com limitada intimidade com a produção comercial europeia, conquistou admiradores da Amazônia ao Rio Grande do Sul. Influenciou duas ou três gerações de críticos, alguns dos quais discípulos diretos, como Valério Andrade (que, aos 20 anos, se mandou de Natal, no Rio Grande do Norte, para conhecer o mestre pessoalmente, tornando-se, ainda em 1959, seu primeiro assistente na coluna do Correio da Manhã), Walter Lima Jr., Paulo Perdigão, e, mais tarde, Ruy Castro. Foi também o ‘wagonmaster’ de toda uma linhagem de críticos surgida no início dos anos 1950, no Rio (Ely Azeredo, Décio Vieira Ottoni), em Belo Horizonte (Cyro Siqueira, Mauricio Gomes Leite), e onde mais o Correio da Manhã pudesse ser lido.

Ainda do tempo em que a palavra fita era sinônimo de filme, Moniz preferia chamar de cenário (do francês ‘scénario’) o que há tempos chamamos de roteiro e também só em francês (e no masculino) se referia à montagem (‘o montage’). Passou anos traduzindo ‘novel’ por novela, em vez de romance, até que, à falta de reclamações ou cobranças para as quais guardara uma explicação etimológica arrasadora, capitulou ao termo corrente. Tinha especial apreço pelo adjetivo ‘admirável’, peculiaridade que só fui notar relendo a única coletânea de suas críticas, reunidas, em 2004, por Ruy Castro: Um Filme Por Dia (Cia. das Letras).

Venerava John Ford. Não procede, contudo, que em sua lista dos ‘dez melhores filmes de todos os tempos’ figurassem 11 ou 12 criações de Ford. E não foi ele quem, instado a indicar os três maiores gênios do cinema, respondeu: ‘John Ford, John Ford e John Ford.’ Se o fizesse, estaria plagiando Orson Welles. Seu filme predileto sempre foi Aurora, de Murnau.

Mas ao genial irlandês do Maine reservou o melhor altar de sua catedral. Acima de todos, O Delator (The Informer), seguido, mais ou menos nesta ordem, por No Tempo das Diligências (Stagecoach), Depois do Vendaval (The Quiet Man); O Sol Brilha na Imensidade (The Sun Shines Bright) – isto mesmo, na imensidade, e não na imensidão; Como Era Verde o Meu Vale; A Longa Viagem de Volta; O Homem que Matou o Facínora; Rastros de Ódio (The Searchers). Sua última crítica, no Correio da Manhã, publicada em 9 de setembro de 1973, foi, justamente, sobre John Ford, , que morrera 10 dias antes.

Fui também seu assistente, junto com Valério Andrade, no começo dos anos 1960, suprema conquista profissional acalentada desde os 14 anos, quando, por acaso, bati os olhos na primeira crítica assinada por ele, e, mesmerizado pela leitura, decidi ali mesmo o meu destino. Moniz foi meu maior mestre, meu mentor. Era uma figura mítica, assaz fordiana: rigoroso e gentil, ranheta e bem-humorado, um pouco como o pater famílias encarnado por Donald Crisp em Como Era Verde o Meu Vale. Divergíamos em muitas coisas (inclusive no futebol); quase entramos em rota de colisão por causa da crítica (‘demasiado sionista’) que fizera de Exodus, de Otto Preminger; e para alguns dos cineastas brasileiros que ele mais apreciava (Lima Barreto, Jorge Illeli, Rubem Biáfora, Walter Hugo Khouri) eu vivia torcendo o nariz.

Apesar da fama de ‘inimigo número um do cinema brasileiro’, ajudou-o como poucos, e sem favoritismos, quando à frente da Comissão de Auxílio à Indústria Cinematográfica, no governo Carlos Lacerda, e do Instituto Nacional de Cinema. Não foi o único a atacar, com implacável rigor, a chanchada, achincalhada por todos os críticos em atividade nos anos 1940 e 1950. Até por Alex Vianny, proverbial defensor do cinema brasileiro. Não havia clima nem distanciamento suficiente, naquele tempo, para se avaliar, sem parti-pris, o fenômeno da chanchada. Mas não há dúvida que, de todos os seus detratores, Moniz foi o mais virulento.

Os Fla-Flus, de inegável cunho ideológico, que ainda se promovem entre Moniz e Alex ou entre Moniz e Paulo Emílio Salles Gomes me parecem ociosos, se não estapafúrdios. Paulo Emílio foi um (grande) ensaísta, de produção mais compassada, não um crítico ativo cotidianamente, exposto a escolhas e julgamentos tangidos pela urgência. Moniz e Alex, ao menos, jogavam na mesma liga: eram ambos críticos de militância diária, mas Alex tinha contra si dois fatores: seus textos não possuíam o brilho e o charme dos de Moniz, nem desfrutavam da mesma periodicidade, profusão e difusão. Passo ao largo de suas idiossincrasias ideológicas, vale dizer, de seu tropismo stalinista, porque, em matéria de idiossincrasias, Moniz tampouco era fácil.

Preferia René Clair a Jean Renoir, valorizava De Sica, Visconti e Fellini em detrimento de Rossellini, não trocava Pietro Germi por De Santis ou qualquer outro regista supervalorizado pelo PCI. Implicou, desde o início, com a Nouvelle Vague e o Cinéma-Verité (que considerava uma reciclagem tardia do Cinema-Olho de Dziga Vertov); detestava os atores formados (ou deformados, segundo ele) pelo Actor?s Studio; as produções de Jerry Wald para a Fox; o teatro-filmado de Delbert e Daniel Mann (ambos apelidados de ‘Little Mann’, para evitar confusão com o ‘grande Mann’, Anthony Mann, cujos westerns estrelados por James Stewart adorava); as neuroses de Tennessee Williams (‘aquele mal psicanalisado dramaturgo’); as afetações e os modismos da crítica parisiense (desde o final dos anos 1940, quando alguém da La Révue du Cinéma, ancestral do Cahiers, proclamou: ‘Abaixo Ford! Viva Wyler!’).

Moniz foi a primeira pessoa que Glauber Rocha, seu fã ardoroso, procurou, ao chegar ao Rio pela primeira vez. Ficaram amigos, depois brigaram e fizeram as pazes, como bons e passionais baianos (Moniz nasceu em Salvador e veio para o Rio com 11 anos). Estavam brigados quando Moniz elogiou Deus e o Diabo na Terra do Sol e de bem quando Moniz pichou Terra em Transe (a seu ver, ‘caótico e ininteligível’), o que não impediu que o fero mas generoso crítico, então no INC, se esforçasse para liberar Terra em Transe, proibido pela ditadura militar.’

 

 

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